Usina de Letras
Usina de Letras
152 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62219 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10362)

Erótico (13569)

Frases (50614)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140800)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->Feijoada no Domingos (http://pesp.hpg.com.br) -- 16/11/2002 - 20:01 (Penfield Espinosa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Feijoada no Domingos

P. Espinosa



Como todo mundo da Usina sabe, aos sábados, Domingos de Oliveira Menezes, nosso ex-síndico, o notável escritor, oferece sua famosa feijoada. Parodiando a Bíblia, muitos se convidam, mas poucos são os eleitos.

Depois de muitas insinuações, sugestões, pressões por terceiros, apelos aos melhores sentimentos da humanidade -- e muita persistência, finalmente consegui o tão ambicionado convite.

Num belo final de manhã de sábado, desses que às vezes surgem em SP depois de uma noite de chuva, fui à casa do Domingos. Uma casa sólida e simpática, que transpira energia. Como seu dono.

Bati palmas. Dom Domingos em pessoa veio me atender. Disse um simpático:

-- Pois não?

Pensei que fosse mais uma brincadeira do cordial brasileiro. Respondi rindo:

-- ó, Domingos, vai dizer que não me reconheceu?

Ao que veio a resposa:

-- Puxa, me desculpe, seu Domingos já havia me falado do sr. Penfield, não é?

Achei estranho: Domingos se fazendo passar por ele mesmo. Ao que veio a frase que soou como resposta:

-- Não estranhe: é que seu Domingos e eu somos muito parecidos. Todo mundo confunde...

Parecidos, não: iguais! pensei com meus botões.

-- Por favor, entre!, disse a voz simpática e gentil.

Minha gula venceu a estranheza, e entrei na casa. Pensei cá comigo: se for uma brincadeira do Domingos, vou me vingar comendo mais feijoada do que já comeria... Quando entrei na casa, ouvi a voz conhecida, com vocabulário e ênfase já registrados:

-- Espinosa: você veio!

Neste momento, a dúvida cedeu lugar à forma mais radical de espanto: dentro da casa estava o Domingos. Só que ele era absolutamente igual ao senhor que me havia atendido. Em tudo: idade, postura, gesto e roupa.

Falei:

-- Domingos, você não me falou que tinha um irmão gêmeo!

Ele respondeu:

-- É que eu não tenho, Espinosa... -- disse à guisa de desculpa.

Neste ponto, minha experiência com filmes e livros de mistério, estórias em quadrinho de terror, candomblé, centros espíritas de umbanda e kardecistas ajudou muito a ser aberto ao inesperado. Caso contrário, talvez tivesse ficado assustado.

Domingos disse então:

-- Esse rapaz trabalha comigo há muitos anos. Na verdade, ele já é da minha família... Mesmo sem ser meu irmão.

Concordei com a cabeça, sem dizer nada. Depois de uma pausa, Dom Domingos disse:

-- Bem, ele é mais próximo do que muito irmão por aí... Espinosa, sabe que ele também se chama Domingos?

Respondi:

-- Dom Domingos, nesta altura já estou acreditando em qualquer coisa.

Rimos todos. Então D. Domigos da Usina me convidou para a sala de refeições, enquanto que o outro Domingos se despediu e foi para o interior da casa.

Domingos me pediu desculpas por sua esposa, filhos, netos e acessórios (cachorrinho poodle, gato siamês, namorado da filha, namorada do neto etc.) terem ido viajar para a praia:

-- C"est la canicule --, disse D. Domingos filosoficamente.

Senti-me um egoísta e falei:

-- Puxa vida, D. Domingos: o sr. ficou aqui só para me receber. Não precisava! Por que não me avisou e a gente transferia para outro dia?!

Mas o grande D. Domingos respondeu:

-- Não se preocupe, Espinosa: eu realmente tinha que fazer algumas coisas em casa. De qualquer modo, você é sempre benvindo aqui!

Minha gula uma vez mais suplantou todos meus escrúpuos e lambi os beiços, pensando nas deliciosas feijoadas a que teria direito. Mas o lado espiritual que me resta fez com que passasse a admirar mais ainda a D. Domingos: poucos seriam capazes dassas grandes generosidades.

Chegamos à sala de refeições. Lá nos esperava uma cerveja inteligentemente gelada, uma Brahma de Agudos -- das melhores águas para cerveja que há neste mundo.

Duas observações importantes aqui:

1) disse cerveja "inteligentemente gelada" porque era a casa de um intelectual. Caso contrário, teria dito o usual "estupidamente gelada";

2) cervejeiros das mais diversas orientações religiosas comentam ter encontrado anjos, santos, orixás, eguns, espíritos de luz e sem luz, todos ecumenicamente reunidos em torno de barris de cerveja Brahma de Agudos.

Este fato nos leva a crer que a famosa Brahma de Agudos seja também a melhor cerveja do outro mundo.

D. Domingos e eu, Penfield Espinosa, conversamos sobre literatura, da Usina e fora dela: Dalton Trevisan, Guimarães Rosa, Osaka, o finado Lucio Jr., Dom Kless, Rose de Castro (descendente direta de Castro Alves), os projetos dele, meus etc.

Neste momento, entrou na sala uma senhora loira que disse:

-- Dom Domingos, posso servir a feijoada?

Domingos me informou:

-- Espinosa, esta é a Terezinha, que faz a melhor feijoada de todos os tempos.

E para ela:

-- Terezinha, este é o Espinosa, um colega lá da Usina de Letras.

Eu disse para a moça:

-- Muito prazer!

Menos formal, ela apenas sorriu de volta. Dom Domingos disse para mim:

-- Vamos começar a feijoada?

Tentei bravamente disfarçar minha gana de atacar a feijoada, e apenas inclinei a cabeça, concordando. D. Domingos disse então:

-- Terezinha pode servir. Por favor, que meu amigo Espinosa está faminto. Não é, Espinosa?

Sorri diante da brincadeira de D. Domingos, mas uma dúvida me tocou: estaria a dicção de D. Domingos, normalmente muito clara, falhando? Teria ele dito "Terezinha" cortando um dos "e"s? Portanto, "Terzinha"? Será que ouvi "Tercinha"?

Dúvidas que foram substituídas pelo borbulhar da feijoada trazida pela senhora. A conversa continuou, agora entrecortada por garfadas da melhor feijoada que comi na vida. E olhem que, como baiano viajante, já provei muitas feijoadas, seja em minha terra (com feijão mulatinho), seja no Rio de Janeiro, seja em SP. Até em Nova York já comi feijoada, em um restaurante brasileiro de lá.

Agora a conversa era acompanhada de caipirinhas. Feitas como se deve fazer: com muito pouco açúcar, um tantinho de limão e, é claro, uma boa pinga mineira. Que me perdoem os paulistas e os cearenses.

Terminamos a refeição. Agradeci a Dom Domingos e fiz questão de que ele chamasse a cozinheira. Disse para ela:

-- D. Terezinha a sra. está de parabéns! Tudo isto está muito melhor do que eu teria imaginado. Todos elogios que fizeram são muito pouco para descrever a qualidade desta feijoada.

E concluí o elogio, sapecando:

-- Só mesmo uma pessoa muito brasileira, como a sra., para fazer um prato como este, que é um dos símbolos de nossa nacionalidade. -- Ah, minha retórica baiana, que nunca me abandona!

Ela sorriu e me disse:

-- Seu Espinosa, muito obrigado. Só tem uma coisa: eu não sou brasileira, mas americana. Meu nome não é Terezinha. D. Domingos usa este nome por discrição. Ele diz "Tercinha" e todos pensam em "Terezinha". Meu nome, na verdade, é Tuesday Weld, e sou da Nova Inglaterra. De brasileira tenho apenas o amor pelas coisas da terra. (Neste ponto, lembrei-me do ligeiríssimo sotaque que havia percebido em sua fala.)

Se meu queixo pudesse cair, ele teria caído. Mais uma surpresa na casa de D. Domingos! Onde terminariam elas?

Rompendo meu silêncio e o sorriso no rosto de D. Domingos, Tuesday disse:

-- Vocês aceitam um cafezinho? De sobremesa temos quindim e cocada de fita.

Para tentar romper meu próprio estranhamento, eu disse:

-- Puxa, se antes já era perfeito, agora está mais do que perfeito!

Olhei para Dom Domingos, que mostrava na cara um sorriso a um tempo compassivo e galhofeiro:

-- Espinosa, não se preocupe! Todos que vêm aqui se surpreendem. Alguns chegam a ficar com vontade de sair correndo!

Deu uma risada franca e aberta:

-- Você apenas percebeu as coisas mais rápido. Por sorte, sei lá. Ou talvez por ter a intuição treinada pelo supernatural da Bahia. Acho até que você aceitou tudo mais rápido do que os outros pela mesma razão. Como diz o Caetano Veloso: quem já viu mistérios como eu... -- cantarolou.

Veio o café, a cocada de fita e o quindim. Comemos em silêncio, tanto pela qualidade dos doces, como porque tantas surpesas me deixaram sem fala.

D. Domingos se levantou e, chegando perto de um armário de jacarandá, abriu uma gaveta e pegou uma caixinha. Quando trouxe à mesa, pude ver: era uma caixa de charutos Suerdieck, feitos na BA, e que os entendidos dizem ser os segundos melhores de todo mundo, perdendo apenas para os cubanos.

D. Domingos me ofereceu um charuto, mas declinei: não fumo. Ele então cumpriu todo ritual de acender seu charuto e disse com provocação:

-- Com charutos como este, quem precisa de Cuba. Quandos os americanos invadirem a ilha e fizerem de lá uma vasta fábrica de computadores, ninguém vai sentir falta.

Eu disse:

-- Dom Domingos, olha a provocação! Desse jeito o senhor vai se parecer com o Osaka!

Rimos um pouco e a conversa descambou para a política. Da Usina, do país, do mundo.

Falamos, como todo mundo tem falado, das expectativas para o governo Lula. Tive de explicar meu artigo agourento "Quando Lula começou a perder as eleições".

Conversamos muito sobre esses temas. D. Domingos terminou de fumar seu charuto e me disse:

-- Caro Espinosa, como você é de minha inteira confiança, e além disso não tem medo do desconhecido, vou te mostrar uma coisa que nunca mostrei para ninguém.

Perguntei então:

-- Mais surpresas! Que é que vai ser: a mula sem cabeça que solta fogo pelas ventas?

-- Quase isso: minha sala de criação.

Realmente, pensei: eis aí algo de assombroso. Somente em um espaço muito especial é que Dom Domingos pode produzir tanto e com tanta qualidade.

Fomos juntos, atravessamos alguns corredores e chegamos a uma sala que parecia zumbir de tanta atividade. Era, naturalmente, o ruído dos aparelhos de ar condicionado.

D. Domingos abriu a porta. No que olhei, mais espanto: havia outras cópias dele, como a primeira pessoa, também Domingos, que me atendeu à porta. Ele, aliás, me saudou quando entrei:

-- Espinosa, veio ver a gente trabalhando?

Pensei: este é o segredo da produtividade -- D. Domingos tem clones de sua própria pessoa. Não pude me conter e perguntei:

-- Eles também são escritores?

-- Todos somos autores da mesma obra -- D. Domingos respondeu.

-- Só mesmo com este exército para criar tantos textos bons como o autor Domingos de Oliveira Menezes cria! -- respondi.

-- Mas não só os textos de Domingos de Oliveira Menezes que são criados aqui. Você está vendo aquele grupo ali?

Apontou para um grupo de sósias que parecia mais tenso, agressivo mesmo, que quase espancava o teclado.

-- Eles estão criando a obra de Alcir, do Osama ede outros colegas da turma do slam. -- disse D. Domingos.

-- Você gostou do nome "turma do slam" para eles? -- perguntei, referindo-me à crónica "Festa Imodesta" que coloquei na Usina.

-- Ah, sim, muito adequado. O Contrera parece que também gostou, pois usou em uma crónica famosa...

-- Era um ensaio: Contrera no Solilóquio III - Cioran e Penfield na Mesa XVII. Gostei muito.

Perguntei:

-- D. Domingos, não é errado, anti-ético falsificar os textos desse pessoal, pedir a seus sósias...

-- Auxiliares, Espinosa! Coautores! -- D. Domingos insistiu taxativo.

-- .. coautores para escrever como se fossem eles. Eles não reclamam?

-- Espinosa: meus coautores e eu é que somos o Alcir, somos o Osaka, somos toda a turma do slam. Nós criamos não só os textos deles como as personagens!

-- Nossa Senhora! Por isso é que nunca os vi em nenhum churrasco de confraternização da Usina! Nada mais me espanta aqui!

Dom Domingos apontou então para um dos sósias... desculpe, coautores... que escrevia com um sorriso muito simpático e amistoso, enquanto assobiava umsambinha carioca.

-- Meu Deus, a própria Rose de Castro, grande poeta, musa da Usina, descendente direta de Castro Alves, também é criada aqui!

Apontou para outro coautor: um certo sorriso hispànico, mais esgar do que sorriso, um mostrar de dentes sem flexão dos chamados músculos do sorriso. Contudo, muito simpático.

-- Rodrigo Contrera!

Sei que Contrera deve ser italiano, não hispànico, mas assim é o Contrera.

-- Ali ficava o Lucio Jr. -- Dom Domingos disse com certo som saudoso na voz, enquanto apontava para um computador desligado na frente de uma cadeira vazia.

-- Por isso o Lucio Jr. não escreve mais! Quer dizer que cada pseudónimo...

-- Heterónimo, por favor! Você sabe a diferença. -- Disse Dom Domingos com tom professoral.

-- Tá certo, professor! Pseudónimo é o mesmo autor assinando com outro nome. Heterónimo é um outro eu literário, uma outra personalidade. O grande Fernando Pessoa dizia que a criação e a existência de um heterónimo era um processo teatral. O pessoal místico e religioso diz que tem a ver com algum tipo de possessão espiritual...

-- Viva Fernando Pessoa! -- Exclamou D. Domingos.

-- Também concordo com ele. E olha que ele era místico!

-- É verdade: foi rosacruz, teósofo... -- Disse D. Domingos.

Ele assumiu um tom mais sério e apontou para outro coautor. Perguntou:

-- Vê aquele coautor?

Olhei bem e vi um autor com o aspecto levemente pedante de quem estudou direito, quebrado pelo tom brincalhão e ao mesmo tempo retórico da cultura baiana.

-- Não é possível! Vocês estão falsificando meus textos aqui!

E com um sorriso maroto, eu disse:

-- Por isso é que apareciam aquelas cartas com minha assinatura que nunca escrevi!

-- Espinosa, por favor, olhe melhor! -- Insistiu D. Domingos peremptoriamente.

Olhei para o coautor e o que vi me assustou: eu estava me dissolvendo na vida real e surgindo na tela do computador onde meus textos estavam sendo digitados. Minha existência piscava e parecia mudar a cada palavra escrita.

-- Fim da Primeira Parte --
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui