Juízo X Justiça
Paulo Roberto C. Queiroz
Artigo publicado no Jornal O POVO, dia 26 de novembro de 2000
Sério problema encontrado com relação ao acesso à justiça ante a organização interna do Judiciário é, como bem versa o prof. José de Albuquerque Rocha em seus Estudos Sobre o Poder Judiciário (São Paulo, Malheiros Editores, 1995), a prática de desrespeito ao princípio democrático. Senão vejamos: 1. Para fins de competência específica divide-se a justiça em comum e especial.; 2. Tais justiças obedecendo ao princípio do duplo grau de jurisdição, dividem-se em órgãos inferiores e superiores, cabendo a estes a apreciação de revisão, por via de recurso, das causas julgadas pelo juiz de primeiro grau (função jurisdicional).; 3. Além disso, cabe aos tribunais a tarefa de gerenciar a estrutura do judiciário (função administrativa).; 4. O cerne do conflito reside no fato de estarem funcionando os tribunais como instituições na medida em que seus membros (para a função administrativa) se alto elegem, excluindo toda uma maioria de magistrados que compõem os órgãos inferiores (mencionados na Constituição como órgãos de primeira instância).; 5. A questão é ainda agravada pelo fato de os magistrados de primeiro grau serem promovidos ao tribunal pelos próprios membros deste, o que mais uma vez exclui a participação dos outros seguimentos da magistratura.
Dando uma “olhadinha” na Constituição Federal de 1988, em seu art. 1°, encontramos: “a República Federativa do Brasil, ..., constitui-se em Estado Democrático de Direito...” (olha aí o princípio democrático!). É este mesmo princípio que torna institucional a organização judiciária da qual falamos pelo simples fato de democracia ser incompatível com o sistema autocrático.
Tudo bem, o sistema é inconstitucional. Mas o que isso tem a ver com o acesso à Justiça? Bem, esta falha no sistema pode ser tribunais da função administrativa do Poder Judiciário, dispondo, desta forma, da carreira dos magistrados, classificados como servidores públicos e, como tal, passível de uma carreira administrativa. Aqui entra mais uma vez a visão experiente do prof. Rocha ao afirma quer “dispondo os tribunais da carreira do juiz, dispõem em grande parte dos seus juízos, ou seja, de suas decisões, pelo poder de ‘persuasão’ dos seus acórdãos, que leva o magistrado a aceitar interpretações com as quais muitas vezes não está de acordo, impedindo o normal desenvolvimento da compreensão do direito”. (Ob. Cit., p. 47).
Ou seja, o magistrado, como é inerente à humanidade, pode incidir em erro, pode ser seduzido pelo “El Dorado” para promoção, do salário mais polpudo, do status social, da influência e do poder que lhes chega às mãos e de mais poder que vislumbra nos tribunais. O magistrado pode vacilar e preterir a aplicação da Justiça, da equidade, pela ânsia da ascensão e esquecer das vidas que dele dependem, das histórias de pessoas que precisam de seu bom senso e de sua imparcialidade. Ele pode esquecer todas as virtudes que aprendeu, pelas quais lutou.; pode perder toda sua serenidade, todo seu orgulho toda a ética que um dia, talvez, tenha não só defendido, mas exigido de seus companheiros.; pode dar férias à razão, fazendo uso da expressão cunhada por Roberto Campos, e simplesmente se vender. Sim, ele pode. Afinal de contas, ele é tão humano quanto aqueles que podem sacrificar como oferenda ao seu ego daninho.
Desta feita, é imediatamente prejudicado o cidadão que tem seu direito constitucional a um juiz imparcial aniquilado, pela influencia interna supramencionada. E então, o que é um direito sem garantias? O que é um jogo sem suas regras, com o agravante máximo de o jogo ser nossas vidas e sermos nós próprios os peões?
Nenhum sistema é perfeito, mas acomodar-se em seu extremo oposto e assumir uma postura de conivência com esta aberração que tanto seduz e convida ao pecado da luxúria, da vaidade, da prevaricação é um posicionamento assaz covarde, reflexo de uma imaturidade cultural e cidadã dos que estão, de forma consciente, sob sua égide. Diante de tal cenário o acesso à Justiça está sobremaneira comprometido e qualquer simples processo corre o risco de depender da sorte para obter uma apreciação justa.
O prof. Rocha reconhece “o conselho não é uma panacéia dos males da justiça” (ob. Cit., p.54), mas seu bom desempenho contribuiu de forma singular para o extermínio de um dos mais sérios deles, qual seja, a falta de independência do juiz, agente mor do acesso à justiça, e a conseqüente corrupção de seus valores, no que Iheberg chama de assassinato judiciário: “O depositário e o defensor da lei tornam-se assassinos dela”. (Iheberg, Rudolf Vom, A luta Pelo Direito, 6ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 1987, p.58). É bom que não esqueçamos que a não aplicação de um direito justo, não é mero desrespeito ao cidadão querelante, mas ameaça a convivência social, ou seja, a própria estrutura da sociedade como a conhecemos, na medida em que, ainda lembrando Iheberg, “O sentimento jurídico, desamparado pelo poder que deveria protegê-lo, abandona imediatamente o terreno da lei e procura, fazendo justiça a si próprio, obter o que a estupidez, a má vontade, a impotência lhe recusaram. (ob. Cit., p.60).
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