A COMARCA É A RESIDÊNCIA DO MAGISTRADO, JAMAIS O SEU CÁRCERE
Antônio Berinazi Cunha é Doutor em Direito Público pela Universidade de Oxford, Inglaterra, Advogado Militante e Psicólogo.
Publicado no site dataveni@
Tenho acompanhado, como advogado militante, com mais de 30 anos de atividade e estudioso do Direito Público, o calvário que se constituiu a vida dos mais diversos magistrados, especificamente, os que trabalham pelas Comarcas do interior do Brasil.
As Corregedorias de Justiça deste país têm efetuado exegese sobre o preceito contido no texto constitucional – art. 93, VII – que invade as raias do mais profundo disparate, de tão notável transgressão ao preceito da Lei Maior.
Qual teria sido a pretensão do constituinte ao estabelecer: "O juiz titular residirá na respectiva Comarca."?
Sem maiores ilações hermenêuticas, não há dúvida de que residência não é domicílio e muito menos cárcere, principalmente do magistrado. Exigir que o juiz permaneça de vigília de segunda a sexta-feira ou até mesmo aos finais de semana (dia e noite) de plantão na própria Comarca é de uma insensatez perversa, para ser econômico com as críticas. Não há plantões no mundo com tanto rigor. O monitoramento sobre os juízes tem sido tão intenso, - informado que fui em alguns desabafos de magistrados entre uma audiência e outra - de tal forma que telefonam ou fazem inspeção às segundas-feiras (às 08:00 horas) e sextas-feiras (às 17:30 horas) e algumas até aos finais de semana, para certificar-se se o infeliz do encarcerado, de fato, ainda se encontra lá. Alguns juízes, para realizarem as refeições fora da Comarca têm que pedir autorização ao Corregedor. Isto é postura desarrazoada e abusiva, subvertendo o bom senso. Virou briga de esconde-esconde e de gato e rato, divertida, aliás, se não fosse demasiadamente nociva e com pesadas conseqüências aos magistrados, jurisdicionados e, por conseqüência, a todos nós, advogados.
Em contrapartida e apesar de todo este aparato de vigília das Corregedorias de Justiça, os juízes da Capital e os próprios tribunais realizam, apenas, meio expediente e retardam a prestação jurisdicional em número significativo. São dois pesos e duas medidas.
Este comportamento dos tribunais, no particular, das Corregedorias, tem representado uma agressão a ordem jurídica, exercendo forte influência negativa à dignidade da pessoa humana. De sorte que teremos, em breve (se já não o temos) magistrados recalcados e frustrados que serão, futuramente, desembargadores arbitrários e irracionais, incapazes de perceber, com sensibilidade, os problemas que afligem o gênero humano e quais os reais caminhos para que o Judiciário, enfim, se afirme como poder.
Para não fugir da realidade dos fatos, uma juíza do interior, aqui, no Nordeste, quando fazíamos audiência numa quinta-feira, final de tarde, recebeu o telefonema do filho de 4 anos, - que já não a encontrava desde a segunda-feira pela manhã, pois viajara para Comarca logo cedo -, reclamando que estava com saudade da mãe e gostaria de reencontrá-la. Após a conversa entre mãe e filho era assustador a imagem depressiva e melancólica da jovem juíza. Não poderia ausentar-se da Comarca, sob pena do Corregedor lhe repreender, para não dizer que poderia sujeitar-se a processo administrativo, ainda que não tivesse audiências agendadas naquele dia (a menos que inventasse) e não haver processos pendentes para despachos ou julgamentos.
É inacreditável que a rotina dos magistrados que laboram no interior dos Estados seja esta semana a semana, mês a mês, ano a ano. Não acompanham o crescimento e educação dos rebentos, pois sempre são visitas em sua própria casa (aqui é o seu domicílio), não têm oportunidade de reciclar-se culturalmente, apenas quando autorizado pelos Corregedores.
Lamentavelmente, tem sido o mau hábito da autoridade pública, dentro de sua esfera de "poder", agirem com prepotência e excesso de rigor. Derramam seus recalques e suas frustrações de maneira vil e sob o símbolo da demagogia, exigem comportamentos absurdos. No particular, não são estes os percursos para a melhoria da Justiça brasileira. Os problemas crônicos do Judiciário não são debelados com a utilização de violência e agressão ao ser humano. O Poder Judiciário sofre uma crise que aflige o Estado, enquanto essência de Poder, aliás, crise que aflige o mundo como um todo. É a crise do próprio modelo civilizacional.
Enquanto não percebem o ciclo de crise que assola a humanidade, o Judiciário, através das Corregedorias de Justiça, ao alvedrio de tantas outras opções de democratização da justiça, agem acima do razoável, como "carcereiros do poder", como se esta atitude representasse efetiva melhoria a atividade judicante, tão rude, em muitas das vezes, com nós advogados, os genuínos provocadores da atividade jurisdicional.
Nesta rotina infinita, não são poucos os juízes que diante do ócio e solidão no interior de suas Comarcas, se deixam levar pelo vício, entregando-se à bebida alcoólica, ou, simplesmente, a inclinação desregrada pela internet, navegando indefinidamente pelos bate-papos para acalentar o isolamento.; ou, aqueles que passam a laborar 18, 19 horas por dia para preencher o tempo e não pensar em bobagem, muitas das vezes "inventando lides".
A exigência constitucional da residência do juiz na Comarca tem por essência permitir que conheçam seus jurisdicionados, acompanhem os problemas da Comarca e decidam com celeridade todos os feitos, principalmente os que reclamam urgência, como o são os pedidos de liberdade provisória, habeas corpus, liminares, entre outros. Mas em nenhum momento foi positivada regra impondo a reclusão do juiz ou mesmo submetê-lo à "jornada de trabalho" aviltante com a constante fiscalização da Corregedoria. Isto é coação, frustrando o ser humano da liberdade de ir e vir quando entender conveniente. Ninguém mais do que o magistrado conhece os problemas da Comarca e as oportunidades devidas para ausentar-se dela.
Existem Comarcas por este Brasil afora com 200, 100 e até 50 processos. Sede de Comarcas, onde não há qualquer perspectiva de lazer ao juiz ou sua família. À permanência do magistrado recluso e subjugado à fiscalização diuturna da Corregedoria é um atentado ao mais elementar princípio de razoabilidade do qual não deve subsistir, principalmente neste momento de evolução tecnológica, que estreitou o mundo, com a possibilidade efetiva no processo da utilização da internet, fax, celular e tantas outras parafernálias desenvolvidas pelo conhecimento humano, tendo por fim facilitar a vida de todos nós que transitamos por este mundo de meu Deus.
Sugiro que as Corregedorias de Justiça acompanhem os trabalhos dos magistrados pelos processos julgados, despachos emitidos e audiências realizadas, como muitas já o fazem. Outorguem atenção especial aos processos que reclamam tutela de urgência, verificando se há lapso de tempo razoável entre o pedido e o seu julgamento pelo juiz. Solvam eventuais reclamações e até fiscalizem (por que não?) o comportamento e a expectativa da comunidade diante das atividades desenfreadas pelo magistrado. Exigir algo mais do que isso é violência e irracionalidade.
Nós, advogados, temos papel importante nesta seara, não só no víeis da democratização do Brasil, na defesa dos nossos clientes e dos nossos substratos diários. Somos, por isso, fiscalizadores dos juízes e todas as atividades relacionadas ao Judiciário e ao Estado de Direito. Temos genuíno interesse de que os processos não se acumulem nas prateleiras a espera da boa vontade dos julgadores. Devemos reclamar das Corregedorias ação enérgica contra todos que se escorarem na incúria. Mas nem por isso devemos ser omissos diante da "bestialidade" que algumas Corregedorias têm feito com os juízes, ao transformar residência em cárcere.