Márcia Albuquerque Sampaio Farias é professora da UVA, mestranda em Direito Tributário e especialista em Direito Público
Publicado no jornal O POVO, dia 16 de fevereiro de 2002
O Direito emerge do fato social e funciona como um regulador da sociedade. Assim, tem uma fonte muito mais profunda que é a consciência do próprio grupo social, sendo o Estado responsável pela sua institucionalização. Entre o direito e o fato social existe uma co-existência e uma co-exigência: uma reciprocidade de influência, de condicionamento. Um passa a exigir a existência do outro, onde não há lugar ao isolamento.
O Direito resulta de elementos fornecidos pela realidade social. Reflexo dos fatos sociais, o Direito deles não surge espontaneidade, salvo sob a forma de costume. Muitas vezes, o Direito está em atraso em relação às transformações sociais. A interpretação luta sempre para diminuir tal atraso, construindo o Direito jurisdicional. Não deve o Direito, como fenômeno social que é, se afastar da realidade social, sob pena de não ser espontaneamente observado. Porém, quando o Poder Judiciário o transforma para atender aos novos fatos sociais, vemos um poder atuante.
Cabe ao Poder Judiciário, na sociedade moderna em que vivemos, uma interpretação das normas voltada a concretizar direitos e princípios, adequando as mudanças sociais ao texto constitucional, mantendo o equilíbrio entre a lei e a estrutura social.
Reconhecendo nas forças que atuam na sociedade a capacidade para modificar o sentido das normas.; considerando a realidade móvel e dinâmica da época contemporânea, tendo em vista as constantes mutações constitucionais, tomando por base que é somente no momento de sua aplicação aos casos concretos ocorrentes que se revelam o sentido e o alcance dos enunciados normativos.; ressaltando que o Poder Judiciário ao interpretar um ato normativo, nada mais faz do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade, a interpretação pelo Judiciário se apresenta como verdadeira reforma à Constituição dinâmica e atualizadora no intuito de aproximar a Constituição à realidade.
Não se pode fragmentar a Constituição de tal modo que um dia não se saiba qual o seu texto original. A mudança na sociedade pé que deve condicionar a mudança da Constituição e não o contrário, a não ser que a norma se mostre anacrônica e já se terá revelado essa sua disparidade com a realidade social. Como toda Constituição deve ser provida de um mínimo de eficácia sobre a realidade que pretende reger, sem a qual o documento será absolutamente inútil, é necessário um Judiciário capaz de uma interpretação que se faça a partir de elementos que entraram na sua composição, para que se possa aplicar a norma constitucional no momento corrente da sociedade.
Aqui aparece o conceito de Constituição real, que é o conjunto de forças sociais politicamente atuantes por múltipla natureza: econômica, cultural, militar, religiosa, profissional etc..., e ao qual se contrapõe o conceito de Constituição jurídica, que é, ou pretende ser, a normatização jurídica dessa Constituição real. Quanto mais amplas e profundas as diferenças a separarem as duas Constituições, mais ineficazes terá sido o sistema constitucional.
A preservação, dessa maneira, do máximo de realidade possível, pela Constituição jurídica, é função do Poder Judiciário. Essa preservação é vital para que tenha ela a aplicabilidade e a eficácia desejada. E sem que se utilize, na tarefa interpretativa, os elementos externos àquele texto, e que o inspiraram, não se conseguirá recuperar o verdadeiro espírito de suas normas.
Não há norma jurídica que dispense interpretação, pois são formuladas em caráter genérico. Todas as vezes que surge um problema prático é preciso que se busque o alcance da norma.; é preciso descobrir a vontade atual da lei diante das novas necessidades e condições sociais. A interpretação é um trabalho de mediação que torna possível concretizar, realizar e aplicar os preceitos de uma Constituição.
A Constituição é um resultado de um compromisso entre vários fatores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos e contraditórios entre si. A norma constitucional impõe-se à realidade social, e de outro lado, a estrutura social exerce forte influência sobre a norma.
Na sociedade moderna, o papel principal do Poder Judiciário é a reforma constitucional informal. A rigor, a reforma constitucional pode se dar de duas maneiras: formal e informal. Na primeira, necessariamente há mudança no texto constitucional. Na segunda, usa-se a interpretação para suprir a mudança literal da lei.
São, pois, as mudanças constitucionais, não decorrentes de atuação formal do poder de revisão constitucional - alterações não formais da Constituição - uma realidade viva, que não pode ser ignorada e que vem despertando especial interesse.
Se é verdade que novas acepções atribuídas a um mesmo termo equivalem à criação de novos termos, então parece lícito concluir que quando os juízes e tribunais emprestam sentidos novos a um mesmo enunciado normativo, em verdade estão a produzir novos enunciados, embora mantendo a sua roupagem verbal. Na verdade, estão apenas adaptando a lei à nova realidade social, porque cada direito e princípio constitucional é dotado de um núcleo (mínimo que seja) aplicável.
Sempre que se atribui à Constituição sentido novo.; quando, na aplicação, a norma constitucional tem caráter mais abrangente, alcançando situações, comportamento ou fatos não considerados anteriormente nem por ela disciplinados.; sempre que, ao significado da norma constitucional, se atribui um novo conteúdo, em todas essas situações se está diante do fenômeno mutação constitucional.
Se a Constituição é um espelho da sociedade e, se na sociedade ocorre mudanças e transformações, a Constituição precisa acompanhar.; ela deve ser modificada. Quando deve ou pode se sentir tanto na teoria quanto na prática a necessidade de reforma na Constituição? Qual o fundamento da reforma? A reforma não se dá, a rigor, pela vontade do legislador. Ela se dá quando houver uma mudança na estrutura de base da sociedade.; essa mudança é que justifica a reforma: quando a Constituição perde a eficácia social. Cabe ao Judiciário a perfeita adequação texto/realidade social.