(...) o povo brasileiro tem a impressão hoje de estar sonhando. E está mesmo, um sonho que foi tecido por muitos, muitas vezes com muita dor, muitas lágrimas
Manfredo Araújo de Oliveira
Professor da UFC
Publicado no jornal O POVO, em 4 de janeiro de 2002.
Certamente o povo brasileiro tem a impressão hoje de estar sonhando. E está mesmo, um sonho que foi tecido por muitos, muitas vezes com muita dor, muitas lágrimas, muito sofrimento, muito sangue e morte. Trata-se do grande sonho de um Brasil diferente, de um país que não seja construído simplesmente para suas elites. Esse sonho inclui a esperança de que o Brasil com esta eleição tenha dado simbolicamente um basta definitivo, apesar da contradição dos interesses que se conjugaram, a uma sociedade radicada na desigualdade, na discriminação, nas injustiças, na fome, na miséria, na destruição dos seres humanos e da natureza, numa concepção individualista, egoísta, materialista e hedonista da vida, insensível aos sofrimentos humanos, às carências do povo, espiritualmente medíocre e vazia, de tal maneira que ela possa agora começar uma caminhada longa, difícil, tensa, mas firme numa outra direção.
Obstáculos para a concretização deste sonho há inúmeros. Recentemente na Folha de São Paulo o economista Luciano Coutinho nos lembrava os desafios simultâneos que deverão ser enfrentados a fim de que este sonho minimamente possa começar a se efetivar: Com uma política macroeconômica ortodoxa, terá que agradar os mercados de capitais e evitar que o desfinanciamento do desequilíbrio das contas externas se transforme em mais choques sobre a taxa de câmbio e sobre a inflação. Por meio de uma política agressiva de comércio exterior, suportada por eficientes políticas agrícola e industrial, precisará travar a batalha decisiva de construção de um superávit comercial crescente e sustentável condição sine qua non para a recuperação da autonomia do Estado brasileiro. O novo governo precisará, ademais, dar respostas afirmativas no plano das políticas sociais, com ações bem focadas e eficazes, dentro de um quadro de duro constrangimento fiscal. A criatividade para melhorar a qualidade das políticas sociais será imprescindível para manter o apoio e o reconhecimento da opinião pública .
Outros economistas poderão talvez enumerar outras prioridades, pensar em outras estratégias e com certeza o debate será agora vivo e caloroso. Mas já há sinais claros de que algo de novo está emergindo: é que este debate se amplia. Não são mais apenas os grandes, os diplomados, os especialistas que fazem parte dele. O debate agora está na sociedade, nas ruas, com os sindicalistas, os movimentos organizados, enfim com aqueles que não fogem à tarefa de pensar juntos com outros os desafios e as tarefas comuns. Isto constitui a radicalização da democracia e traz consigo uma grande novidade: apesar de uma boa parte dos analistas de nossa situação persistir no velho dogma do economicismo defendido pele direita e pela esquerda nas sociedades modernas, que afirma ser a economia não só a dimensão determinante de toda a vida social, mas, sobretudo, portadora de fim em si mesma, o debate ampliado vai pouco a pouco resituando a economia no lugar onde os gregos já a haviam posto: no contexto da política que delibera sobre os princípios normativos que devem reger a vida comum dos cidadãos. Então se reconquista o espaço da política enquanto espaço fundamental, pois é aqui que os seres humanos deliberam e decidem sobre os princípios normativos que dão sentido à vida coletiva e a economia se põe em seu devido lugar: como aquele conjunto de meios que devem estar a serviço das demandas humanas. Isto vai implicar uma revolução na arte de pensar e de agir, que pressupõe, por sua vez, esta enorme energia espiritual ético-política que se vem consolidando e que conduz a um programa consistente de mudanças. O sonho só se pode fazer energia de transformação pela participação de todos.