CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PROCESSO PENAL
MONOGRAFIA FINAL
MICHEL PINHEIRO
Aluno do Curso de Especialização em Processo Penal da ESMEC
1 - CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
As relações humanas têm sido sempre marcadas por atividades infinitamente produtivas, harmônicas e proporcionadoras de bem-estar coletivo, tanto na família como em outras esferas de referência humana, mas estão presentes também adversidades incontáveis, que correspondem às defecções definidoras de patologias sociais. Estes desvios, muitas das vezes, são definidos como desrespeito a direitos ou às normas legais que definem as condutas da convivência em sociedade.
Toda sociedade tende a estabelecer regras para limitar o ímpeto humano, por mais evoluída que seja, pois o comportamento dos homens vem, em boa parte, denotar pressa irrefletida, precipitação, capazes de gerar bons resultados quando empregados em prol de justificativas razoavelmente aceitas no meio vivente, mas causadoras de dissabores quando atingem direito e sentimentos alheios.
Quando os meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convício em sociedade surge o Direito Penal com a natureza peculiar de instrumento formalizado em busca da efetiva solução de conflitos para a almejada harmonização humana.
Fato social que vai de encontro ao ordenamento jurídico predefinido pela sociedade politicamente organizada constitui um ilícito jurídico. Uma de suas modalidades é o ilícito penal, responsável pela lesão de bens, considerados importantes pelos membros de uma sociedade.
Tem-se como escopo deste trabalho a demonstração de equívocos perpetrados no estudo do Direito Penal sempre que a sociedade procura regular as penas através de seus representantes legais, eleitos em votação direta.
A abordagem observará o cotejo de reprimendas para demonstrar que o legislador tem descurado da necessária valorização de conceitos socialmente aceitos e assimilados. Destes, extrair-ser-ão os bens jurídicos tutelados pelo Estado.
2 – CONCEITO DE DIREITO PENAL
O Direito Penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança. Este conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível a convivência humana, com busca da proteção de direitos através de mecanismos voltados à punibilidade.
Frederico Marques também tinha definição de Direito Penal. Era para ele o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade de medidas de segurança e a tutela de direito de liberdade em face do poder de punir do Estado.
Em outra época, Welzel lembrou que se destacava o Direito Penal como aquela parte do ordenamento que fixava as características da ação criminosa, vinculando-lhe penas ou medidas de segurança.
3 – BEM JURIDICO TUTELADO
No Direito Penal há a busca de proteção de bens jurídicos. Para cada delito, o legislador elegeu determinados valores da sociedade tomando-os como predominantemente aceitos, e capazes de ensejar normas para protegê-los.
Neste estudo, urge efetivar o desdobramento para, didaticamente, avaliar seus elementos constitutivos. Deve-se ter presente que a seleção dos bens jurídicos tuteláveis pelo Estado através do Direito Penal e os critérios utilizados nesta seleção constituem função do Poder Legislativo, o que torna vedada aos intérpretes e aplicadores do direito dita função.
3.1. Conceito de “Bem”
A definição de “bem” é direta e umbilicalmente ligada a valor. Do latim, bene: virtude, felicidade, utilidade, riqueza. A palavra bem apresenta vários sentidos análogos, semelhantes, mas não idênticos.
Bem é tudo que seja objeto do desejo humano. Num sentido utilitário, bem é aquilo que representa a satisfação de uma necessidade imediata. Num sentido ético, bem é aquilo que se mostra conforme a norma social, ao ideal de moralidade do grupo social e que, por isso, deve ser buscado em si mesmo. Na verdade, bem é toda coisa dotada de valor. O que é valor? É a importância que se atribui a uma coisa.
Neste aspecto, é fácil inferir que cada indivíduo carrega consigo induvidoso sistema complexo de preferências e desprezos, e isto requer da sociedade um conjunto de medidas voltadas para a proteção de bens e valores, indispensáveis à vida comunitária, sob pena de tornar-se impossível a manutenção da paz social.
Sendo coisa tudo o que tem existência corporal ou espiritual, real, abstrata ou imaginária, na verdade, para o Direito, bem é a coisa que possui valor econômico ou moral. Embora alguns autores confundam coisa e bem, é fato que bem é espécie do gênero coisa. Somente as coisas que têm valor constituem Bens. No dizer de De Plácido e Silva, "toda coisa, todo direito, toda obrigação, enfim, qualquer elemento material ou imaterial representando uma utilidade ou uma riqueza, integrado no patrimônio de alguém e passível de apreciação monetária, pode ser designada bem"
As coisas não constituem bens em si mesmas, sendo necessário que se lhes atribua um valor. Que é valor? É a importância que se atribui a um bem. Todo valor reconhecido pelo Direito torna-se um bem jurídico. Os bens jurídicos são ordenados em hierarquia e o Direito Penal visa a proteger os bens jurídicos mais importantes, intervindo somente em casos de lesão de bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade.
E não importa que as coisas consideradas Bens sejam corpóreas ou incorpóreas. Os direitos incidentes sobre coisas incorpóreas também são Bens, por exemplo, direitos autorais e os direitos creditórios.
A valoração dos Bens varia no tempo e no espaço. Os valores sociais têm uma existência histórica, não sendo perpétuos nem imutáveis numa mesma sociedade, alterando-se conforme o ensejarem novas circunstâncias. Cada sociedade, em diferentes épocas, adota uma tábua de valores e, desta formulação, concebe e adota as normas jurídicas e morais. A norma jurídica não se origina apenas do fato e da inteligência.; pois, quando o intelecto valora um fato, o faz com fundamento nos valores adotados pela comunidade.
A moral social, tida como conjunto dos valores sociais, confunde-se com a concepção do que é justo em determinada sociedade.
Assim sendo, o valor não se apresenta como algo que exista a priori, mas é antes uma qualidade que as coisas e os atos adquirem tendo em vista os fins a que se destinam. Um certo valor é atribuído às coisas e aos atos em razão dos resultados que produzem, dos fins aos quais são orientados.
J. Flósculo da Nóbrega bem observa quando diz que “a justiça é idéia, valor e ideal. Como idéia, é a representação abstrata do estado de pleno equilíbrio da vida social.; como valor, poder-se-ia dizer que as coisas não constituem bens em si mesmas, sendo necessário lhes atribuir um valor. O que é valor? Valor é a importância que se atribui a um bem. Mas a valoração dos bens varia no tempo e no espaço. Os valores sociais têm existência histórica, não sendo perpétuos. Ora, tendo como pressuposto um valor, a idéias de justiça varia constantemente: o que era justo para os antigos talvez não seja para nós, embora possa voltar a sê-lo no futuro. Não resta dúvida, porém, de que, modernamente, o valor predominante é a igualdade, como a liberdade o foi por ocasião da Revolução Francesa.”
3.2. Tutela jurídica
Tutela é defesa, amparo, proteção. Tem o Estado que garantir a tutela jurídica de bens sempre que for instado a fazê-lo.
Penalmente, seja qual for o tipo de crime, o que está subjacente, em maior ou menor medida, é sempre a tutela jurídica de bens jurídicos fundamentais, emanação do poder político do Estado, que a este cabe em exclusivo como conteúdo da soberania e se efetiva, na aplicação do direito ao caso, através dos juízes e tribunais. Tal máxima vem consagrada na Constituição Republicana que norteia o atual ordenamento jurídico, salientando que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV).
A função básica do Direito Penal, como se sabe, é a de defesa social, que se realiza através da tutela jurídica, pela ameaça penal legítima aos destinatários da norma, aplicando-se efetivamente a punição ao transgressor. E o Estado é que tem o monopólio desta função punitiva para resguardar os direitos daqueles que os desrespeitam.
É razoável entender que, quanto à pena, é ela tida como tutela jurídica, ou seja, como proteção aos bens jurídicos tutelados penalmente. Assis Toledo expôs seu conceito com propriedade, definindo o bem jurídico como sendo valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas.
3.3. A graduação dos bens jurídicos
A doutrina não fez uma “graduação” dos bens jurídicos a fim de valorá-los no instante em que fossem protegidos pela lei. O legislador faz esta “graduação” quando aplica penas mais elevadas do que outras, apontando o grau de censurabilidade da conduta.
Quais os bens mais importantes? É evidente que a vida deve ser mais importante, e isto foi reconhecido pelo legislador quando insere os delitos contra a vida no início da parte especial do Código Penal. Neste ponto, o legislador graduou indiretamente os bens jurídicos inserindo as penalidades nos tipos penais, classificando-os pela reprovabilidade.
Dessume-se que a intenção foi classificar a vida como o bem mais importante do ser humano, organizando os delitos no título I, denominado “Dos crimes contra a pessoa”. Em seguida vem o capítulo que trata das lesões corporais, antes das infrações contra a honra, contra a liberdade individual e contra o patrimônio.
Assim, deveriam os delitos perpetrados contra as pessoas ser apenados com reprimendas mais severas do que os outros, por tratarem de bens jurídicos mais importantes.
Mesmo com inserção da vida na Carta Magna como direitos fundamentais, são elas indisponíveis enquanto o patrimônio é disponível.
Outros bens jurídicos também tutelados são: a integridade física, a saúde física e mental da pessoa, a segurança da pessoa humana, a honra, à dignidade, ao decoro, a liberdade individual, a paz de espírito, a tranqüilidade doméstica, liberdade de comunicação do pensamento, o segredo profissional, a posse e a propriedade das coisas, dentre outros também importantes.
4 – PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE
Tormentosa é a busca da humanidade em alcançar a Justiça em toda sua plenitude. Tem sido uma das maiores metas dos seres humanos encontrar o ponto de equilíbrio na solução dos conflitos humanos, sopesando valores diversos intrínsecos e extrínsecos além das agruras sofridas com os interesses políticos, sociais e econômicos que movem o mundo e mudam seu destino.
Fala-se em Justiça como utopia, ou mera discussão acadêmica. A busca de algo circunstancial que dê a idéia mais concreta do que é justo ou injusto ressalta os interesses da humanidade para que se estabeleçam regras predefinidas capazes de igualar os homens em direitos e obrigações.
Assim, surge o princípio da proporcionalidade, verdadeiro fundamento da norma justa. Através dele pretendem os humanos a igualdade tratando os casos jurídicos com a atenção que merecem e dando a cada um deles a solução mais adequada, de acordo com as circunstâncias presentes.
Entende-se por princípio a premissa, ou a orientação básica, geral e abstrata, contida expressa ou implicitamente no ordenamento jurídico, servindo de norte para a elaboração e conteúdo das normas integrantes do sistema. São expressos os princípios veiculados nos preceitos legais, ao passo que os implícitos provêm de um contexto normativo que indica a sua existência, como uma decorrência lógica da análise desse contexto.
Princípio é, por definição, o alicerce, o mandamento maior de um sistema (Sistema Penal), onde sua violação é a mais grave forma de ilegalidade, visto que insurge contra toda a sistemática. Dentre os princípios que norteiam o Direito Penal, destacam-se os da individualização da pena, da humanidade, da culpabilidade, da intervenção mínima, da fragmentariedade, da insignificância e, para autores mais apegados à Constituição Federal, o da proporcionalidade.
Em geral, os princípios jurídicos resultam de um processo lento e gradual de consolidação das normas, a partir daí passando a ocupar uma posição de direção para a formação e interpretação das regras de direito.
A proporcionalidade encontra-se presente tanto no Direito Positivo quanto no Natural. Daí a necessidade de estudo do princípio vez que as normas constitucionais reconhecem sua primazia quando adotam a regra implícita de que os princípios de valorização da pessoa humana prevalecem sobre outros princípios e normas da Constituição.
O Brasil, Estado Democrático de Direito, traz em sua norma maior a vontade de buscar soluções mais justas dentro do alcance racional dos dispositivos constitucionais. Não esqueçamos jamais que a Constituição é, além de conjunto de normas escritas, diversidade de normas abertas, o que torna sua interpretação processo constante de legitimação de valores históricos.
Alguns autores da doutrina nacional inserem o princípio da proporcionalidade dentre os princípios gerais do direito. Outros o colocam em patamar equivalente ao princípio democrático.
Vem sendo tema de relevantes estudos o princípio da proporcionalidade, cujas raízes remontam ao período iluminista, principalmente à obra intitulada “Dos delitos e das Penas” de autoria do Marquês de Beccaria, cuja primeira edição veio a lume em 1764. Em seu parágrafo XLII, Cesare Bonessana concluía que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicável nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”.
Este princípio exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem que pode alguém ser privado (gravidade da pena).
A ele vincula-se a noção de relação adequada entre os fins e os meios utilizáveis para atingi-lo, além da idéia da proibição de excessos. Pode ser entendido pelo dogma "de dois males, faz-se mister escolher o menor ... chamado princípio da escolha do meio mais suave", significando que, de todas as opções igualmente servíveis à obtenção de um fim, a mais adequada é a menos prejudicial aos interesses do cidadão.
O Direito Penal brasileiro pouco tem se preocupado com a proporcionalidade das reprimendas. Urge também igual preocupação quanto ao bem jurídico tutelado, considerando que foi opção política nossa a adoção do princípio isonômico da igualdade, consagrado no caput artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Antes do estudo do Direito Penal e do Processo Penal temos que extrair da Carta Magna os fundamentos políticos nela insculpidos. Isto nos obriga a aplicar o princípio da igualdade em todos os ramos do direito, uma vez que o constituinte o inseriu na categoria de instrumento para garantir direitos humanos fundamentais.
Como conseqüência da adoção do princípio da proporcionalidade, determinou a Constituição Federal, ainda, em seu art. 5°, XLVI, que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade.; b) perda de bens.; c) multa.; d) prestação social alternativa.; e) suspensão ou interdição de direitos”. É a declaração formal e expressa do chamado princípio da individualização da pena, sem o qual torna-se impossível aferir-se a proporcionalidade.
A título de raciocínio, podemos afirmar que o direito penal somente se interessa, pelo menos em tese, em proteger os bens mais importantes existentes na sociedade. Na definição precisa de Luiz Regis Prado , “O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade”. Embora o Direito Penal só se preocupe com a proteção de bens de relevo, nem todos aqueles por ele tutelados gozam da mesma importância.
Surge, daí, a necessidade de se individualizar as penas, fazendo com que as condutas que ataquem bens mais importantes sejam punidas mais severamente do que aquelas que ofendem bens que não possuem o mesmo status. Exemplificando, como a vida é um bem superior à nossa integridade física, a conduta de matar alguém deve ser repreendida mais severamente do que aquela que simplesmente ofende a integridade física ou a saúde de outrem. Ainda no mesmo sentido, aquele que dolosamente comete um delito deve ser punido com mais rigor do que aquele outro que culposamente deu causa ao resultado. Podemos, afirmar, também, como regra geral, que o crime consumado é mais grave do que aquele que permaneceu na fase do conatus. Enfim, simplificadamente, isto é individualizar.
O texto inicial do Capítulo referente aos Direitos e Garantias Constitucionais denota a igualdade como fulcro normativo. Diz o art. 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
Assim, a ordem jurídica prima pela igualdade sem distinção, vedando a desproporção desmedida de direitos.
Diversas são as normas constitucionais que dispõe sobre garantia processual penal para dar ao cidadão segurança. Os processados deverão sempre responder pelos atos delituosos perpetrados, mas com medidas punitivas proporcionais. Tais punições variam de país para país, chegando alguns a infligir a pena de morte para réus que praticam homicídio, ou prisão perpétua. Tais inocorrem no Brasil, que prevê a reclusão de até trinta anos como a maior das reprimendas.
A Constituição também rege, no inciso XLVII do art. 5º, que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX.; de caráter perpétuo.; de trabalhos forçados.; de banimento.; e cruéis. O caso do artigo 84 referido somente se verifica quando ocorre guerra, mas não há ainda norma legal regulamentadora. Os demais casos demonstram que o constituinte brasileiro não considera proporcional aplicar as penas recitadas aos atos ilícitos perpetrados pelos acusados, acreditando que elas ferem a sua dignidade.
A proporcionalidade pode concebida ser como derivação da igualdade. Ocorrendo na sociedade situação que o Estado não pode observar a igualdade literalmente falando, por necessidade de evidente tratamento diferenciado, vem à tona a proporcionalidade substituindo a igualdade. Exemplo disto são os portadores de deficiência física que, por não serem estritamente iguais a todos os outros sadios, merecem o tratamento proporcional.
A idéia do Direito, também visto como justiça, exige delicada dose de valoração. Surgem as situações a serem consideradas com particularidades infinitamente diversificadas. Os juízes, sempre quando forem chamados para efetuar o controle de constitucionalidade de Lei, devem verificar se as diferenças estabelecidas pelas normas legais estão justificadas pela natureza das coisas. Impede assim que haja razoável fundamento para o tratamento desigual sob pena de redundar-se em arbitrariedades.
O princípio da proporcionalidade, visualmente consagrado na Constituição, visa a proteger o cidadão contra os inomináveis excessos do Estado e serve de instrumento à defesa dos direitos e liberdades sedimentados na Constituição. No Brasil, mesmo não existindo como norma geral de direito escrito, vem como norma esparsa no texto constitucional. A noção mesma se infere de outros princípios que lhes são afins, entre os quais avulta, em primeiro lugar, o princípio da igualdade, principal corolário da democracia representativa.
O princípio da proporcionalidade tem como escopo principal proteger a dignidade humana. Este é o valor mais alto da Constituição. Nenhum princípio ou nenhuma norma pode sobrepujar a dignidade da pessoa humana, mesmo em defesa da coletividade.
Não viveremos em sociedade sem considerar que a justiça é ligada à proporcionalidade no tratamento dos seres humanos.
4. 1. A proporcionalidade no passado
Aristóteles, há mais de trezentos anos antes de Cristo, já dizia que o justo é uma das espécies do gênero “proporcional”, asseverando que a proporção é uma igualdade de razões . Para o renomado autor o princípio da justiça é proporcional e o injusto é o que vila a proporcionalidade.
Age injustamente a pessoa que abocanha, na distribuição de uma herança, quinhão muito grande em detrimento de outra que fica com parte bem menor. Interessante que no caso do mal há o mesmo pensamento: o mal menor é considerado um bem quando comparado com um mal maior, já que aquele deve ser escolhido antes deste.
Neste diapasão, o mestre aplica o termo “injusto” aos que infringem à lei e aos que são ambiciosos e iníquos. Ambiciosos no sentido de quererem mais do que aquilo do que têm direito, atuando em desproporção aos outros cidadãos.
Os democratas identificam a circunstância de distribuição equânime quando considera o homem livre. Os adeptos da oligarquia dizem com a riqueza e os da aristocracia com a excelência.
Menciona ainda Aristóteles sobre a reciprocidade proporcional. Nela fulcram-se os conceitos de igualdade proporcional onde os valores são medidos e equiparados para o fim de inferir sobre o direito de cada um: as coisas eram consideradas conforme sua substância e a quantidade era diretamente ligada à qualidade para a realização da socialização. Em todos os casos a proporcionalidade era observada levando em conta a realidade econômica da época e às necessidades públicas.
Com o tempo surge o dinheiro. Ele é o maior exemplo de que a proporcionalidade veio sempre ligada diretamente aos fatores econômico-sociais, capaz de criar diferenças acentuadas entre os cidadãos. Com isto, preocupam-se as nações com a justiça social perfeita, capaz de distribuir melhor as riquezas para diminuir as diferenças entre os ricos e os pobres, com uso de políticas fiscais e tributárias adequadas ao momento político.
4.2. A proporcionalidade no Direito Penal
A vinculação do princípio da proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais. Neste prisma, ele investe-se de extrema importância para alçar prestígio considerável como o princípio da igualdade.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia prevê a necessária utilização da proporcionalidade dos delitos e das penas, da seguinte forma:
“Artigo 49.º - Princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas
1. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou por uma omissão que no momento da sua prática não constituía infracção perante o direito nacional ou o direito internacional. Do mesmo modo, não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infracção foi praticada. Se, posteriormente à infracção, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada.
2. O presente artigo não prejudica a sentença ou a pena a que tenha sido condenada uma pessoa por uma acção ou por uma omissão que no momento da sua prática constituía crime segundo os princípios gerais reconhecidos por todas as nações.
3. As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção.”
O item 3 acima preconiza que a pena deve observar a proporção levando em conta à infração.
O fator de proporcionalidade foi reconhecido explicitamente na Constituição da República. Assim, o artigo 1º da Constituição consagra a regra pétrea informando que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, garantindo a liberdade para todos e fixando a proporcionalidade como norma obrigatória a ser observada.
No campo do Direito Penal, em que a união é única competente para legislar sobre ele, por força do artigo 22, inciso I, da Constituição da República, tem-se que tecer algumas considerações.
É máxima constitucional (art. 5º, inciso XXXIX, da C.R.) que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este o fundamento do princípio da reserva legal. Também se constitucionalizou a regra de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, assim como ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Estes são preceitos que buscam o mínimo de garantias à cidadania em busca da liberdade e da justiça.
Daí, exsurge singular questionamento: tem o parlamento observado a proporcionalidade quando fixa penas aos tipos de delitos? O cotejo de algumas penas demonstra, no meu entender, a discrepância entre a gravidade do ilícito e a função punitiva.
Em sede de Direito Penal, ao garantir a individualização das penas (artigo 5o., XLVI, caput), está implicitamente garantido que estas serão proporcionais ao delito cometido. Mas esta garantia não é absoluta, pois demanda estudo do legislador infraconstitucional voltado a encontrar a melhor pena adequada àquele delito, examinando as outras já vigentes no ordenamento jurídico.
Tem-se admitido o princípio da proporcionalidade da reprimenda no sentido de que a pena não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato. Esta assertiva coloca, primeiramente, o legislador na tarefa de incluir na lei as margens da pena, com fixação do mínimo e do máximo. Depois disto, ao julgador caberá aplicá-la respeitando os limites prefixados no norma legal.
Princípio da proporcionalidade da pena, que ressalta a máxima de que cada um deve ser punido na medida da sua culpabilidade, revela o grau de censurabilidade de um fato penalmente relevante tem por base o “desvalor da conduta” ou do “resultado” (ambos compõem o injusto penal). Um crime cometido por motivo torpe, v.g., apresenta maior reprovabilidade porque a conduta é mais desvaliosa. Uma lesão corporal culposa que implique em deixar a vítima paraplégica é mais culpável porque o resultado é mais desvalioso. Quando há uma real graduação no injusto justifica-se maior pena, mesmo porque cada um deve ser punido na medida da sua culpabilidade. No fundo, essa elementar regra, que está no art. 29 do CP, nada mais é que expressão do princípio da proporcionalidade.
A relevância do princípio da igualdade como critério de constitucionalidade das medidas legais das penas é, conseqüentemente, filtrada por uma complexa teia de condicionantes que impedem nivelações de sanções com base em abstratos juízos de valor orientados apenas pela importância objetiva dos bens jurídicos protegidos.
A observância do critério de proporcionalidade, quando da individualização das penas por parte do legislador ordinário, é absolutamente essencial aos fins da punição penal, e, principalmente, à própria confiabilidade da Justiça.
“...La gravedad de la pena há de ser proporcional a la gravedad de hecho antijuridico, a la gravedad del injusto... Si un hecho espoco grave, no se puede castigar igual que outro más grave. Y ello- aunque no se acepte la concepción retributiva- porque no es necessario para la prevención general, pero sobre todo porque así lo requiere la eficacia e idoneidad preventivo-general de las penas, ya que, si se castigan igual los hechos poco graves que los graves, no habría mayor intimidación e inhicibiociones para cometer delitos graves, cuya frequencia podría aumentar, y además se produciría una ravísima confusión en los esquemas valorativos de los ciudadanos y la sociedad...”
5 – A FUNÇÃO DE FIXAR LEGALMENTE A PENA
Tem o Poder Legislativo, que representa uma das funções do Estado organizado, a função de tipificar as condutas sociais tornando-as penalmente relevantes. Desta forma, considerará ditas condutas como crime e fixará uma reprimenda correspondente para elas.
Mas, em algumas vezes têm ocorrido distorções que malferem a necessária proporcionalidade. Veremos exemplos que apontam para a necessidade de melhor análise das circunstâncias sócio-econômicas quando da fixação da reprimenda.
Logo, há violação do princípio da proporcionalidade, quando há ocorrência de arbítrio, ou seja, toda a vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados e ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, isto é, manifesta.
5.1. Penas de dois crimes contra o patrimônio
É de se ressaltar que as penas previstas no Código Penal para delitos em que inocorre violência contra pessoas são razoavelmente minoradas. Delito de furto simples, v.g., causa prejuízo a alguém e tem pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa. Na fixação da pena deverá sempre o julgador levar em conta o disposto no artigo 59 do Código Penal, com criteriosa análise de todos os seus elementos, sob pena de nulidade. No caso de furto simples, só excepcionalmente deverá o julgador fixar a reprimenda acima de três anos, tendo como mais corriqueira a aplicação do mínimo. A inobservância quanto às recomendações da fixação da pena é causa de anulação da sentença do juízo monocrático.
Porém, outros delitos merecem questionamento. A fraude no comércio, definida e tipificada como ilícito criminal no artigo 175 do Código repressivo, estabelece pena de detenção de seis meses a dois anos. Há, de igual forma, um prejuízo que pode ser apurado em desfavor da vítima, assim como no furto simples, mas é possível observar a distinção feita pelo legislador que, entendo, despropositada.
Nos dois casos, sendo possível prejuízos consideráveis às vítimas das condutas nefastas, cabe ao julgador aplicar os limites dados pelo legislador no momento em que condenará os meliantes. Mas inexiste razão plausível para a postura legisferante de conceder tratamento diferenciado em delitos que visa a proteger, ao menos em tese, um mesmo bem jurídico.
5.2. As penas dos delitos com violência
Nos delitos onde impera a violência cabe melhor análise. O delito de matar, na sua modalidade simples (caput do artigo 121), tem previsão punitiva de reclusão de seis a vinte anos. Já se o crime for de latrocínio, com a morte da vítima, a pena mínima será de reclusão de vinte anos e a máxima de trinta anos, além da multa.
É cediço que o latrocínio foi classificado pelo legislador como delito contra o patrimônio, no entanto tem sua pena maior do que o homicídio, em que escopo é pela proteção da vida, bem jurídico mais valioso.
A prova de que o latrocínio é delito perpetrado contra o patrimônio está no fato de que o juízo monocrático é o competente para conhecer e julgar o processo, diferentemente do júri, juízo a quem compete julgar os crimes dolosos com a vida.
Penas maiores para delitos contra o patrimônio podem ser verificadas ainda quando há grande incidência contra pessoas de poder econômico considerável. Este é o caso de extorsão mediante seqüestro, em que a reprimenda estipulada no artigo 159 do Código Penal pátrio é reclusão de oito a quinze anos. E mais, se o seqüestro dura mais de vinte quatro horas quando o seqüestrado é menor de dezoito anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha, a pena passa a reclusão de doze a vinte anos.
6. A tutela do bem jurídico e o processo penal
O processo penal tem características próprias. O Código de Processo Penal preconiza que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito” (art. 3º).
A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Já a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. É a regra do artigo 2º.
6.1. A aplicação da analogia no processo penal
Nosso ordenamento, reconhecidamente dinâmico, não tem a propriedade absoluta de qualificar normativamente todos os comportamentos possíveis, nem regulamentar todas as condutas humanas.
Indiscutível o fato de que existem lacunas no ordenamento jurídico, pois a tarefa do legislador de captar, prever e regular todas as situações fáticas do mundo fenomênico é muito complexa, em face da dinâmica da evolução das relações sociais. A lei tem o escopo de regular as relações entres os Homens, tentando assegurar uma harmônica vida em sociedade, mas a própria evolução, com suas patentes limitações, podem gerar lacunas no sistema jurídico por ele criado, ficando sem previsão situações fáticas relevantes, as quais devem ser resolvidas pelos juristas.
O Direito Processual Penal é inspirado pelos princípios processuais contidos na Carta Constitucional e neles encontra o seu fundamento de validade. O seu artigo 3º admite expressamente a aplicação analógica. Dessume-se, com isto, que o direito se vale de circunstância semelhante para resolver dúvidas nas prevista da lei.
O renomado Júlio Fabbrini Mirabete entende que “ao referir-se à aplicação analógica, o Código está mencionado a possibilidade de aplicação da analogia, citada como um dos meios idôneos para o juiz decidir o caso quando a lei for omissa ( art. 4º da LICC). A analogia é uma forma de auto-integração da lei. Na lacuna involuntária desta, aplica-se ao fato não regulado expressamente um dispositivo que disciplina hipótese semelhante. ”
Continua o jurista salientando, quanto à analogia, que “não é cabível na hipótese em que a lei processual tem caráter inflexível, taxativo. É necessário, ainda, que haja semelhança entre o caso previsto e o não previsto, além de igualdade de valor jurídico e igualdade de razão entre ambos (ubi idem ratio, ubi idem ius). ”
6.2. Fundamento do uso da analogia
Busca-se, por meio da analogia, aplicar-se aos casos semelhantes as mesmas soluções, atendendo-se assim, ao princípio da igualdade. Aqui reside o principal fundamento da analogia, sendo nada mais que o respeito à máxima ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio, ou seja, onde há a mesma razão deve haver a mesma disposição de direito.
Nesta hipótese, é possível dessumir a extração do caput do artigo 5º, da Constituição Federal, o princípio da igualdade. Nosso ordenamento jurídico, como conseqüência de tal princípio deve, pois, ser isonômica.
Mas deve ser ressaltada a posição de extrema coerência esposada por Maria Helena Diniz, quando inflige a máxima de que: “o processo analógico constitui um raciocínio baseado em razões relevantes de similitude, fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas, substancialmente, semelhantes.”
Por esse raciocínio, nenhuma lei pode regular distintamente situações fáticas semelhantes devendo, seu aplicador, em face de uma lacuna, procurar hipótese semelhante ao caso concreto para sua solução fazendo, de certa forma, o caminho que teria sido realizado pelo legislador se tivesse previsto o fato que deixou de regular.
Mas, na sua essência, a expressão analógica normalmente é entendida como semelhança.; já em sentido técnico significa processo de integração do ordenamento jurídico pelo qual se estende a solução dada a um caso previsto para outro não previsto, porém semelhante.
A interpretação analógica é diferente de analogia: interpretação analógica é a busca da vontade da norma através da semelhança com fórmulas usadas pelo legislador.; a analogia é forma de auto-integração da lei com a aplicação a um fato não regulado por esta de uma norma que disciplina semelhante ocorrência.
Nelson Hungria lembra brilhantemente que “na interpretação extensiva dá-se a ampliação do sentido das palavras para acomodá-lo à própria vontade da lei.; na analogia, o que se amplia é a vontade mesma da lei, para resolver, por mera identidade de razão, um caso não previsto, explícita ou implicitamente, pelo legislador. A analogia, portanto, não é interpretação, mas criação ou formação de direito novo, isto é, aplicação extensiva da lei a casos de que esta não cogita.Com ela o juiz faz-se legislador, para suprir as lacunas da lei. É um processus integrativo, e não interpretativo da lei.”
O uso da analogia reclama três requisitos básicos: primeiro, o fato não tenha sido lembrado pelo legislador, em sua função de legiferar.; segundo, urge que haja regulamentação de situação que revele convergência, liame de coincidência ou algo idêntico ou mesmo semelhante.; e, por fim, que esta situação seja relevante e determinante para haja necessidade do uso da regra isonômica concatenada pelo julgador.
Assim, há que se verificar a omissão na norma legal, que deve ser involuntária. Hipótese que o legislador deixou de regular aquela situação por entender, v.g, que era desnecessária. Verificada a existência de lacuna nos termos acima explicitados, temos que analisar se existe alguma norma que regule fato tido como semelhante.
Seqüencialmente, se for encontrada alguma norma que regule situação similar ao do caso omisso, mister ainda se faz que o ponto de convergência entre as duas situações tenha sido determinante na produção da norma legal. Neste sentido adverte Franco Montoro que é necessário que exista a mesma razão para que o caso seja decidido de igual modo.
De igual forma, expôs Maria Helena Diniz que o elemento de identidade entre os casos não pode ser qualquer um, mas sim fundamental, que levou o legislador a criar o dispositivo que se entende deva ser aplicado ao caso semelhante. Meras semelhanças aparentes, afinidades formais ou identidades relativas a pontos secundários não justificam o emprego da argumentação analógica.
Uma distinção é verificada entre a analogia e a interpretação extensiva. A analogia é um mecanismo auto-integrativo do direito e não interpretativo. Na interpretação analógica, está na vontade da lei a extensão de seu conteúdo a outros casos semelhantes. Quando falamos em analogia, não se pode supor que a lei quis ser omissa. Pelo contrário, a lacuna foi involuntária.
Interpretação extensiva não se confunde com analogia: na interpretação se parte da lei.; na analogia, do silêncio da lei. Recorre-se à integração quando, diante da ausência da lei, o problema não pode ser resolvido pela integração.
A identidade que se exige para a integração através da analogia, é a identidade de razões.
Ensina Frederico Marques sobre a aplicação e interpretação da lei processual penal que “em havendo lacunas, funcionam, como fontes secundárias, a analogia e os princípios gerais de direito, segundo o que preceitua o artigo 3º do Código de Processo Penal. Isto significa que no Direito Processual Penal as omissões da lei são preenchidas através da auto-integração (analogia) e da heterointregração (o suplemento dos princípios gerais do direito) .
Em matéria de processual penal, são vários os exemplos de aplicação analógica em face da lacuna da lei. O exemplo exposto por Tourinho Filho relativo ao artigo 367 do Código de Processo Penal, que diz sobre a citação mediante rogatória, pode nos ser útil. Ensina o citado autor que nosso código não estabeleceu o conteúdo da rogatória, devendo ser aplicada a regra do artigo 354 do mesmo diploma, atinente à precatória.
Finalizando, a tudo o que já foi dito acrescente-se, mais uma vez, a lição de Frederico Marques, que ao abordar o tema da hermenêutica processual assim se manifestou: “na pesquisa do significado da lei a ser aplicada, o juiz, como seu intérprete mais categorizado, deve sempre atender ‘aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’, ex vi do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Cumpre-lhe não esquecer, porém, que a tutela da liberdade individual está compreendida nos imperativos do bem comum, visto que a pessoa humana é o mais alto valor entre os que o Direito protege, como regra disciplinadora da vida em sociedade.”
Partindo do grego Aristóteles, a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Com efeito, a variedade de situações e atributos relacionados aos indivíduos, que os distinguem dos demais, conduz à necessidade de tratamento diferenciado, tendo-se por escopo precisamente estabelecer a paridade colimada pela ordem constitucional. Nesse tocante, assinala Hans Kelsen:
"A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica .... A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir os mesmos direitos sem fazer distinção algumas entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres."
Portanto, a igualdade não significa idêntico tratamento, porém tratamento diferenciado, sempre inspirado no princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a ser obtida a plena isonomia constitucionalmente consagrada.
6.3. Aplicação da analogia nas vias de fato
A Lei 9.099/95, que implantou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Brasil, regulou o caso de exigência de representação para a instauração de ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas. É a redação do artigo 88.
Damásio de Jesus, em sábio artigo, dispôs sobre o tema. Para ele “nos termos do art. 17 da Lei das Contravenções Penais, a ação penal, pela prática das infrações que define, é pública incondicionada. De modo que, aplicando-se essa regra, é incondicionada a ação penal por contravenção de vias de fato. Ocorre, contudo, que o crime de lesão corporal leve dolosa, em razão do art. 88 da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099/95), passou a ser de ação penal pública condicionada à representação. Diante disso, formaram-se duas correntes:
1.ª) a ação penal por contravenção de vias de fato é condicionada à representação, como se dá com a lesão corporal leve dolosa. Nesse sentido: Ronaldo Batista Pinto, "A Lei n. 9.099/95 e a contravenção de vias de fato", Boletim do IBCCrim, São Paulo, ago.1996, 44/3.; Ronaldo Frigini, "Vias de fato e representação", RT, 745/450.; TACrimSP, RECrim n. 1.149.707, 4.ª Câm., Rel. Juiz Devienne Ferraz, Revista de Julgados do TACrimSP, São Paulo, Fiuza Editores, out./dez.1999, 44/411.; TACrimSP, Acrim n. 1.052.645, 5.ª Câm., Rel. Juiz Feiez Gattaz, j. 28.7.1997, RT, 746/617.; TACrimSP, RECrim n. 1.137.067, 6.ª Câm., Rel. Juiz Almeida Braga, RT, 767/607.; TACrimSP, RECrim n. 1.149.705, 3.ª Câm., Rel. Juiz Poças Leitão, RT, 772/602 e Revista de Julgados do TACrimSP, São Paulo, Fiuza Editores, out./dez.1999, 44/393.;
2.ª) a ação penal por contravenção de vias de fato continua pública incondicionada. Nesse sentido: Ada Pellegrini Grinover et al., Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de 26.09.95, São Paulo, RT, 1996, p. 180.; TACrimSP, ACrim n. 1.074.733, RT, 749/694.; TACrimSP, RECrim n. 1.116.133, 2.ª Câm., Rel. Juiz Érix Ferreira, RT, 761/634.
A 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC n. 80.616, Rel. o Ministro Sepúlveda Pertence, j. 20.3.2001, por v. u., decidiu que a ação penal por vias de fato continua sendo de natureza pública incondicionada, permanecendo eficaz o art. 17 da LCP e inaplicável o art. 88 da Lei n. 9.099/95 (Informativo STF, 19-23.3.2001, n. 221, p. 2).
Para nós, se a infração mais grave (lesão corporal leve dolosa) é de ação penal pública condicionada, não se compreende como possa a contravenção de vias de fato, menos grave, prosseguir sendo de ação penal pública incondicionada, atentando ambas contra o mesmo bem jurídico. Por isso, entendemos que o procedimento criminal por vias de fato, aplicando-se a analogia in bonam partem, depende de representação da vítima.
A distinção entre lesão corporal e vias de fato, sob o aspecto objetivo, faz-se pela presença ou não da efetiva lesão jurídica ao bem protegido (incolumidade física individual). Existindo dano à integridade corporal ou à saúde da vítima há lesão corporal (CP, art. 129), desde que o sujeito tenha agido com animus laedendi. Se realiza a conduta com dolo de dano, pratica lesão corporal tentada ou consumada. Se, contudo, emprega empurrões, socos etc., sem a ferir e sem dolo de dano, há vias de fato. Nesse sentido: RT, 664/316 e 317.
Suponha-se que o sujeito agrida a vítima mediante socos (RT, 664/316) ou pontapés (RT, 451/4660). Para ele, adotada a segunda corrente, é preferível: 1.º) que tenha causado ferimentos.; 2.º) que venha a confessar ter desejado causar lesão corporal. Se houve lesões e agiu com dolo de dano, trata-se de crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima. Se o agredido não sofreu ferimentos e o autor não realizou o ataque físico com dolo de dano, cuida-se de contravenção de vias de fato, de ação penal pública incondicionada. Na primeira hipótese, pende em favor do agressor a possibilidade de o ofendido não exercer o direito de representação.; na segunda, a autoridade da persecução penal deve agir de ofício. É um convite ao adágio: ‘bata, mas deixe marca’.”
Tal raciocínio faz eclodir questionamentos outros sobre a essência do conceito de bem jurídico a ser tutelado pelo Estado.
7. A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E A LEI 9.099/95.
Problema que vem sendo solvido pelos doutrinadores quando da vigência da Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, é a nova definição das infrações de menor potencial ofensivo.Dita norma legal dispõe no parágrafo único do artigo 2º que “consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.”
O argumento prevalente entende que a recitada lei deu nova definição jurídica de infrações de menor potencial ofensivo, devendo, portanto, ser aplicada, neste ponto, à Lei 9.099/95. Assim, ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo no nosso país.
Depois da Lei 10.259/01 os juizados criminais no Brasil (estaduais e federais) são competentes para conhecer e julgar: todas as contravenções (independentemente do procedimento), todos os crimes punidos até dois anos (com ou sem multa cumulativa), todas as infrações penais punidas só com multa e não importa mais se o delito tem ou não procedimento especial (considerando que a nova lei não fez qualquer distinção).
Conseqüências práticas dessa mudança é que os crimes cuja pena não passa de dois anos passaram para a competência dos juizados, dentre eles porte de drogas para uso, porte ilegal de arma de uso permitido, desacato, crimes contra a honra, além de outros.
Não há mais que se falar em prisão em flagrante nesses casos (salvo se o autor de fato não aceitar o compromisso de ir a juízo), não há inquérito policial, mas, sim, termo circunstanciado, não há que se falar, em princípio, em prisão, senão em sanções alternativas impostas sob consenso, que é o caso de transação penal.
Não se pode admitir que o autor de delito de competência da Justiça Federal tenha tratamento privilegiado – com v.g. a admissibilidade da transação penal - em detrimento de autor que pratica crime da competência da Justiça Estadual.
Assim, a Lei nº 10.259/2001 é a lex mitior que passa a considerar infração penal de menor potencial ofensivo, em todo o sistema vigente, os crimes punidos com pena máxima igual ou inferior a dois anos. É uma opção do legislador federal, que editou ambos os atos normativos, constituindo medida de política despenalizadora
7. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Por derradeiro, temos por certo que o princípio da proporcionalidade é norteador de diversas atividades estatais por imposição constitucionais – atuando principalmente para evitar abusos perpetrados contra o cidadão, dente elas a de tipificação de ilícitos criminais e fixação de suas respectivas penas, sempre atendendo ao mínimo de coerência no que tange ao estudo do bem jurídico a ser tutelado.
É vontade geral do povo brasileiro o uso do princípio da proporcionalidade em todos os ramos do direito, inclusive no Direito Penal e no Direito Processual Penal, considerando a consagração do princípio da igualdade desde o preâmbulo da nossa Carta Constitucional.
A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. Esta visão vem desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os juristas, moralistas e filósofos contemporâneos.
E arremata asseverando que quando aparecem as antinomias da justiça recorremos à equidade. Consiste ela numa tendência a não tratar de forma por demais desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial. A equidade tende a diminuir a desigualdade quando o estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justiça formal, é tornado impossível pelo fato de se levar em conta, simultaneamente, duas ou várias características essenciais que vêm entrar em choque em certos casos de aplicação.
Assim, entendo possível a aplicação de analogia no caso do artigo 88 da Lei 9.099/95, sob o comando do artigo 3º do Código de Processo Penal, cabendo representação para todos os ilícitos em que o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal for de menor importância do que a integridade física. O legislador laborou sem a devida cautela quando fez inserir a exigência de representação para o caso de lesão corporal leve sem examinar as conseqüências quanto aos outros delitos, criando obstáculo processual à instauração da ação penal, o que, induvidosamente, beneficia o réu, mas fazendo surgir o mesmo direito a outros.
É este o mesmo argumento dado ao conceito de menor potencial ofensivo com o advento da Lei que instituiu os Juizados Especiais Federais.
Infere-se por tal assertiva porque os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal têm fundamento essencial nos valores enaltecidos pela Constituição Federal, com destaque cotejante para os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia.
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WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez e Sergio Yánez Pérez. Santiago, Ed. Jurídica de Chile.
INDÍCE GERAL
Capítulo I
1. Considerações introdutórias .............................................................................. 01
2. Conceito de Direito Penal.................................................................................. 02
3. Bem jurídico tutelado ........................................................................................ 04
3.1. Conceito de “Bem”.................................................................................. 05
3.2. Tutela Jurídica......................................................................................... 07
3.3. A graduação dos bens jurídicos............................................................... 09
4. Principio da proporcionalidade........................................................................... 10
4.1. A proporcionalidade no passado............................................................. 17
4.2. A proporcionalidade no Direito Penal.................................................... 19
5. A função de fixar legalmente a pena .................................................................. 23
5.1. Penas de dois crimes contra o patrimônio.............................................. 23
5.2. As penas dos delitos com violência....................................................... 24
6. A tutela do bem jurídico e o processo penal....................................................... 25
6.1. A aplicação da analogia no processo penal............................................ 26
6.2. Fundamento do uso da analogia............................................................. 27
6.3. Aplicação da analogia nas vias de fato................................................... 33
7. A Lei dos Juizados Especiais Federais e a lei 9.099/95...................................... 36
8. Considerações Finas............................................................................................ 38
9. Bibliografia.......................................................................................................... 40
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