Da filosofia à realidade contundente
Ronald Soares
O meu maior problema, talvez, é que eu tenha ouvido demasiadamente estórias da Carochinha e contos de fada durante a minha meninice. Então, decorrência quase lógica, fiquei um pouco sentimental demais, impressionado com os triunfos indefectíveis do bem sobre o mal, confiando, uma medida a mais, nas boas intenções das pessoas, teimando em não desconfiar dos que de mim se aproximam.
Daí para a análise dos fatos sociais com o olhar meio distorcido de quem carrega um cisco no olho, o passo é diminuto, quase um nada, por isso é que eu sou um tanto ingênuo, acredito piamente na aparência dos fatos, nos “icebergs” que, na realidade, escondem as suas incongruências no emaranhado das águas, entremostrando, apenas, as suas extremidades de aspecto falsamente inofensivo.
Falo dessa forma porque levei anos, após a minha formatura, acreditando nos valores que me foram transmitidos pelos mestres, ensinamentos arrimados nas escolas filosóficas do Direito, fundamentos que antigos pensadores tiraram de suas reflexões para justificar o comportamento humano, traçando diretrizes e tentando viabilizar a convivência pacífica entre os seres humanos, dividindo o peso do cotidiano do modo mais equilibrado possível.
Mas, a filosofia, com o devido respeito aos que a ela se dedicam, como diria um velho companheiro de estudos, “é a ciência com a qual ou sem a qual o mundo permanece tal e qual”, daí a conclusão irremediável, para não dizer dramática, de que “ os sistemas são transitórios enquanto que os problemas são eternos “, dificultando, sobremodo, a abordagem dos assuntos com a seriedade que eles exigem.
“Cantifleando” dessa maneira, a gente transita pelas situações com uma leveza de quem levita, mas é supinamente difícil adotar como regra a máscara da indiferença, mormente se as ameaças que antevemos são daquelas direcionadas para o social, para o coletivo, mais especificamente, para o segmento da sociedade que moureja desesperada e denodadamente para o sustento das grandes fortunas, para a garantia dos grandes lucros, para os detentores do Poder.
Os ventos neoliberalizantes, a despeito de os grandes já estarem mudando a rota de suas diretrizes, continuam a soprar por aqui, deixando um rastro de destruição nas nossas instituições e estruturas como nenhuma outra intempérie histórica tem deixado. Depois da onda privatizante lesa-pátria, do desmonte frenético do Poder Legislativo através de Medidas Provisórias que tudo podem, da trituração diuturna da Constituição, que os humoristas já chamam de “Bilhete Constitucional”, do desemprego, do sucateamento das universidades, da implosão da empresa nacional, do favorecimento aos bancos falidos, do descrédito completo dos hospitais públicos, da rapinagem sobre a aposentadoria dos velhinhos e das pensões das viúvas e órfãos, da desmoralização do Poder Judiciário, que os bobos da corte encenam em óperas bufas e ridículas, do salário mínimo transformado em acinte, ainda resta, na cartola dos magos da modernidade, uma perversidade a mais: flexibilizar o art. 7º da Constituição Federal, justamente aquele que estabelece as garantias básicas da legislação do trabalho, o ABC do trabalhador brasileiro.
O argumento é baratear o custo Brasil, a fim de que os nossos produtos possam competir lá fora, nos terreiros da economia globalizada.
Mas, a que custo, meu Deus ? Produzir bens para exportar e deixar os que aqui vivem num estágio de miséria jamais visto ?
Certa feita, o velho jurista venezuelano Rafael Caldera, que foi por mais de uma vez presidente daquele país sul americano, numa conferência em Manaus, discorria sobre as desigualdades entre as nações, apontando a divergência de objetivos entre as nações ricas e as nações pobres, rebelando-se contra a política de então do FMI que queria, naquela tempo, impor ao seu país uma política monetária que levaria o povo ao desemprego e ao pauperismo tendo ele, após profunda reflexão, optado pelo povo venezuelano.
Não sei o quanto de verdade havia naquelas palavras. Não sei mesmo se naquele momento era o político que falava na boca do jurista ou se o jurista proferia palavras pela boca do político, mas tenho certeza de que, na realidade, o abismo separa os interesses das nações. Não há povos irmãos, não há nações amigas, não há protecionismo algum nos confrontos nacionais. Há, isto sim, interesses episódicos que pontificam nos relacionamentos internacionais.
Continuando a raciocinar sobre o desmonte das garantias básicas dos trabalhadores, o mais estranho de tudo é que tal desejo prejudicial aos assalariados no decurso do tempo, conta com o apoio de forças sindicais e os argumentos “filosóficos” de alguns juristas pragmáticos, cujas idéias buscam âncoras no tal custo Brasil, sem cuidar do custo social que tal posicionamento desencadeia.
Mas, o hábito de escutar as estórias aludidas no início do presente artigo tem o seu lado positivo (a moeda sempre tem duas faces): sou um homem de muita fé e acredito firmemente que o Brasil é muito maior que os seus coveiros.
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