O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA DOS TRIBUNAIS
Ronald Soares
I. INTRODUÇÃO
Fatos recentes, ainda não definitivamente resolvidos na órbita judicial, levaram-me a refletir sobre a Constituição da República e o seu relacionamento com a legislação subalterna, enfim, com a interpretação que alguns hermenêutas pretendem impingir a ferro e a fogo, tomando a lei como fonte única e final e fazendo com que os dispositivos constitucionais a ela se amoldem quando, na realidade, deveria ocorrer o avesso de tal procedimento.
Nos países, como o nosso, onde a Constituição é rígida, toda interpretação deve partir da própria constituição e, numa espécie de movimento “bumerangue”, voltar-se para ela mesma, para que, ao final, seja possível fazer valer aquilo que o legislador constitucional (constituinte) almejou.
Jamais o intérprete poderá fazer filigrana e querer que a lei prepondere. Tal prática é uma grave contrafação, um pecado mortal que põe em risco a segurança do próprio ordenamento jurídico e transforma a Constituição num reles pedaço de papel.
Felizmente, os magistrados brasileiros não desceram a tal ponto, muito pelo contrário, apesar das inúmeras críticas feitas ao Poder Judiciário, grande parte delas injustas, continuam inabaláveis no desempenho de sua missão: judiciar.
O fato a que me referi no início está, infelizmente, banalizado. Ele diz com a competência ou, melhor ainda, com a incompetência de uma Justiça para expedir comando a outra justiça, mormente quando se trata de matéria administrativa interna corporis. Passarei, em seguida, a desfiar o novelo dos acontecimentos a fim de que se torne bem clara a situação.
Antes, contudo, impõe-se um breve estudo sobre a autonomia de cada uma das “justiças” que integram o Poder Judiciário da União.
Já foi dito alhures com muita propriedade que na estruturação do Poder Judiciário , como órgão da soberania estatal, os seus diversos órgãos aglutinam-se em “justiças”, tendo no ápice o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, e pelo Superior Tribunal de Justiça, como centurião defensor da lei federal e unificador do direito.
Tais justiças, por seu turno, reúnem os diversos órgãos do Poder Judiciário, acham-se enumeradas no texto constitucional com a definição da regulamentação específica de cada uma delas e, ainda, a sua competência de jurisdição.
Assim é que são justiças constitucionais a Justiça Federal, integrada pelos Tribunais Regionais Federais e juizes federais (art. 106, I e II da CF).; a Justiça do trabalho, integrada pelo Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho e as varas do Trabalho (art. 111 da CF).; a Justiça Eleitoral (art. 118, I a IV, da CF), a Justiça Militar (art. 122, I , II da CF) e a Justiça dos Estados (art. 125 da CF).
Se temos a Justiça dos Estados (art. 125 da CF), contrapondo-se à ela nós encontramos as “Justiças da União”, ou seja, a Justiça Federal, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar.
Todo esse conjunto homogêneo de justiças (órgãos judiciários), criados para o exercício da jurisdição comum, ou da jurisdição especial, possuem estrutura moldada nos princípios de organização do Poder Judiciário.
Um desses princípios, inegavelmente, é o da autonomia destas diversas justiças, quando consideradas umas em relação às outras.
A autonomia destas justiças implica, necessariamente, na existência de órgãos judiciários diferenciados, que não possuem entre si nenhuma hierarquia jurisdicional, de tal sorte que nenhum deles pode impor ao outro qualquer comando decisório, no sentido de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, em virtude de decisão judicial, proferida no âmbito de um deles contra o outro.
Tanto isto é verdade, que a Justiça Federal, por exemplo, não pode desferir comandos decisórios para a Justiça do Trabalho, sem ofensa à autonomia constitucional das Justiças que compõem o Poder Judiciário.
Existe, no meio jurídico, um artifício que tenta permitir tal comportamento: a parte, no caso, seria a União, porque o Tribunal não teria a condição de Parte, por força da sua natureza jurídica. Mas, tal argumento pode ser rechaçado facilmente. É que, em tais casos, falta competência de jurisdição à Justiça Federal para atuar nas causas em que for interessada direta a Justiça do Trabalho, embora esteja a União como parte.
É, por conseguinte, mais que uma incompetência absoluta do juízo, enquanto órgão integrante de uma determinada justiça, trata-se da incompetência da própria Justiça Federal, como conjunto de juízes e tribunais (art. 106, I e II, da CF), para processar e julgar causas nas quais for parte qualquer outra justiça da União, inclusive a Justiça do Trabalho
Se outro fosse o entendimento, teríamos uma escancarada violação a autonomia constitucional das Justiças que formam o Poder Judiciário, com uma delas sobrepondo-se à outra eventualmente.
Por tal razão, O Poder Judiciário tem órgãos de cumeeira , a saber, o STF e o STJ, que se sobrepõem, com funções específicas , a todas as justiças constitucionais, e que são, antes de tudo, tribunais nacionais, os quais, pela sua importância, transbordam da União e dos Estados por pertencerem, na verdade, à Federação brasileira.
Advém da autonomia de tais justiças a faculdade de se estruturarem, na intimidade de suas próprias organizações, em órgãos de primeiro e segundo graus, viabilizando, de tal maneira, através do princípio do duplo grau de jurisdição, que os órgãos superiores possam rever ou modificar as decisões dos órgãos inferiores.
Fletindo mais ainda na análise dos fundamentos de tal estrutura, verificaremos que no âmbito de cada um das justiças já mencionadas os seus órgãos possuem um vínculo entre si, permitindo que o de grau jurisdicional superior possa rever as decisões daquele de grau jurisdicional inferior. É a hierarquia dentro dos patamares organizacionais de cada uma das justiças. Portanto, o vínculo entre os órgãos é que permite tal composição.
Inexistindo esta vinculação, um tribunal componente de qualquer destas justiças não pode rever a decisão de juízes que lhe não são vinculados, em razão, obviamente, do princípio da autonomia das justiças constitucionais (art. 96, I, a da Constituição Federal).
Se é vedado a um tribunal componente de qualquer uma daquelas justiças emitir comandos a órgãos judiciários de primeiro grau que lhe não são vinculados, com maior razão um órgão judiciário de primeiro grau jamais poderia impor seus comandos a um TRIBUNAL ao qual não se vincula no que diz respeito à jurisdição.
E a impossibilidade, quando se trata de juiz de primeiro grau, tem a sua geratriz em dois aspectos: no primeiro, por se tratarem de órgãos judiciários distintos, pertencentes a Justiças Constitucionais Autônomas.; no segundo, porque haveria uma autêntica e inadmissível subversão hierárquica jurisdicional admitir que um órgão judiciário de primeiro grau emitisse comandos decisórios para um órgão judiciário de segundo grau. Seria, na realidade, aquilo que já denominei de PIRACEMA JURÍDICA ou PIRACEMA JURISDICIONAL.
Enfim, poderemos concluir de tudo quanto foi dito, que a Justiça Federal e, por exemplo, a Justiça do Trabalho, são autônomas, além de distintas e, se realmente o são, nenhuma delas jamais poderá interferir na outra, ou seja, inexiste jurisdição de uma sobre a outra.
II. BREVE INTRODUÇÃO AOS PRINCÍPIOS GERAIS E AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.
Vale a pena um reestudo rápido e superficial ao derredor dos princípios gerais e, em seguida, especificamente sobre os princípios constitucionais.
Em primeiro lugar, no singular, verificando-se tal verbete nos bons léxicos, encontraremos o seguinte: princípio : sm (lat. principiu) 1. Ato de principiar. 2. Momento em que uma coisa tem origem.; começo, início. 3. Ponto de partida. 3 Causa primária.
No Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva, muito citado por sua clareza e precisão, nós iremos encontrar: Princípio, também no singular, oriundo do latim (principium, origem, começo) em sentido vulgar quer exprimir o começo de vida, o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começam a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou da origem de qualquer coisa.
O termo pluralizado, princípios, adquire conotação diferente, justamente aquela que vai nos interessar no vertente estudo. De tal maneira, temos, para o termo utilizado no plural, o significado das normas elementares ou requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa.
Traçam, em síntese, as noções em que se alicerça o próprio direito.
Os princípios, nos dias que correm, têm o seu estudo examinado de perto com a idéia de sistema. O sistema compreende uma articulação integrada de princípios. E o sistema, de fato, “deve hoje ser entendido como uma realidade aberta, móvel, heterogênea e cibernética. Aberta em termos extensivos e intensivos: extensivamente, por recusar a sua plenitude, admitindo a problematicidade de questões que lhe sejam interiores.; intensivamente, por se compatibilizar, mesmo nas áreas cuja cobertura ele assegure, com a inclusão de realidades materiais a ela estranhas. Móvel, por não postular hierarquias intra-sistemáticas, antes admitindo permutabilidade das suas proposições. Heterogênea, porquanto dotada de áreas de diferente densidade, que vão desde uma cobertura integral por proposições rígidas até ao vácuo intra-sistemático, passando por sectores móveis expressos, por proposições indeterminadas, por lacunas e por quebras intra-sistemáticas, ditadas por contradições de princípios. Cibernética por reponderar os seus impulsos face às informações que recebe das extremidades, i. é, por reagir, em planos cognitivos e sindicantes, perante as conseqüências advenientes da sua aplicação.
À luz do moderno pensamento sistemático e tendo, em especial, presente a natureza prudencial do Direito, o princípio geral assume, na ciência jurídica, um papel imprescindível: ele actua, com intensidade variável mas numa presença constante, nas soluções concretas por que se constitui o Direito , não podendo ser reduzido à integração das lacunas. Facultando, aquando da aplicação da lei, pontos decisivos no confeccionar dos modelos da decisão e tornando possível a reprodução e a aprendizagem da realidade normativa, os princípios surgem, ontologicamente, como parte integrante da ordem jurídica”.
Plá Rodrigues, no seu muito citado “Princípios de Direito do Trabalho” , leciona: “Um princípio é algo mais geral que uma norma porque serve para inspirá-la, para entendê-la, para supri-la. E cumpre essa missão relativamente a número indeterminado de normas.
O processo lógico para obtenção de um princípio consiste em induzir uma solução mais geral da comparação de disposições particulares concordantes, para aplicar o princípio assim obtido a qualquer hipótese não abrangida por nenhuma previsão legal.
Diz-se que constitui a base geral onde repousa o ordenamento, um sentido da legislação, uma orientação recorrente nela, que se reflete em uma pluralidade de disposições”.
O autor uruguaio, como ele mesmo diz “juntando e harmonizando” o conjunto de definições, propõe a seguinte definição dos princípios jurídicos: “linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver os casos não previstos”.
Dworkin, citado por Plá Rodrigues, ancora sua crítica ao positivismo jurídico quando ele apresenta o direito como um conjunto exclusivo de normas, quando, na verdade, é integrado por normas e princípios.
Para Zagrabelsky, no mesmo sentido, entende que, as normas legislativas repousam predominantemente nas regras e as normas constitucionais estão alicerçadas preferencialmente em princípios. Quando se faz a distinção dos princípios em relação às regras, estamos distinguindo, em linhas gerais, a Constituição das leis.
“Só os princípios exercem um papel propriamente constitucional, quer dizer, constitutivo da ordem jurídica”.
Quando estudamos os princípios gerais do direito, percebemos claramente que a esmagadora maioria dos autores a eles se referem como se fossem algo metajurídico, espiritual, metafórico, distante dos embates reais onde se travam as grandes batalhas do direito cotidiano, portanto, metafísico demais, transcendental mesmo.
Todavia, ao passarmos para o campo específico dos princípios constitucionais, a coisa muda de figura.
Paulo Bonavides, discorrendo sobre os princípios constitucionais, assim leciona: “A normatividade dos princípios representa, conforme vimos, o traço comum a todos aquelas acepções, sendo, por conseguinte, o vínculo unificador das seis formulações enunciadas(referindo-se a conceitos recolhidos por Ricardo Guastini junto a juristas diversos e na própria jurisprudência). “A caminhada teórica dos princípios gerais, até sua conversão em princípios constitucionais, constitui a matéria das inquirições subsequentes. Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo”.
Bonavides, no seu livro já citado, mostra como os princípios, partindo de formulações inteiramente abstratas, no positivismo jurídico e, mormente no pós-positivismo, ganham em normatividade, a chamada normatividade dos princípios. Assim discorre Bonavides: “A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas deste século. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”
Ao estudo dos princípios e da sua evolução até os páramos atingidos na atualidade, devemos acrescentar a tormentosa disputa que sempre perturbou os juristas, filósofos e doutrinadores: a distinção entre regras e princípios. Dworkin e Alexy, modernamente, trataram do assunto, porém, tal estudo nós vamos deixar de lado porque, na verdade, refoge ao objetivo do presente trabalho.
“O ponto central da grande transformação por que passam os princípios reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade, depois que esta, inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais moderna, salta dos Códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as Constituições, onde em nossos dias se convertem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais.
Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo, positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas”.
Bem situados em tal patamar os princípios constitucionais devem ser examinados com o respeito e a reverência que adquiriram no evolver da sua peregrinação histórica no mundo da filosofia do Direito.
E é, justamente, com tal atitude e com tal propósito que passaremos doravante a examinar a questão do princípio constitucional da autonomia dos tribunais.
III. AUTONOMIA DOS TRIBUNAIS - MITO E REALIDADE
Na nossa Carta Constitucional, o princípio da autonomia dos tribunais está configurado através de dispositivos diversos inseridos no capítulo III, do Titulo IV, que trata do Poder Judiciário. , complementando o princípio de independência e harmonia que rege as manifestações do Poder da União e que se triparte nas funções Executiva, Legislativa e Judiciária, consubstanciando-se no sistema de pesos e contrapesos (checks and balances).
Pois bem, daquele princípio fundamental, chegamos á autonomia dos tribunais, conforme dispõe o art. 96 e seus incisos, verbis:
Art. 96. Compete privativamente :
I – Aos Tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos.
Outros incisos do mesmo artigo bordejam a matéria da autonomia, porém, não se revelam tão ostensivamente relacionados ao tema central do presente estudo, daí não nos determos sobre os mesmos.
Pela dicção do “caput” do art. 96 nós vamos entender que aquele que detém a competência privativa está posicionado em situação de autonomia, uma vez que não necessita de autorização ou permissão para realizar os seus desígnios, mais propriamente, para efetivar as suas atribuições, melhor ainda, para praticar os seus atos. Tais prerrogativas são inerentes à autonomia.(do grego, autonomia, direito de se reger por suas próprias leis) Daí dizer-se que os tribunais, por força de um querer constitucional, gozam da autogestão. Na letra a do inciso I nós vamos nos deparar com os dois momentos culminantes da autonomia dos tribunais: quando eles elegem os seus dirigentes e quando elaboram os seus regimentos internos.
Tais momentos refletem de modo inequívoco o poder de autogestão, a independência de solucionar suas próprias divergências.
Portanto, é a Constituição que o diz: os tribunais brasileiros gozam de autonomia. É um princípio constitucional que dá vida à autonomia do Poder Judiciário. Sem que houvesse tal princípio, sem essa força inquestionável, na realidade, nós não teríamos um Poder e os tribunais ficariam ao sabor de interferências indébitas, maculando sua atividade jurisdicional e administrativa, porque, num outro dispositivo, justamente no art. 99 da Constituição Federal, está assegurada além da autonomia administrativa, a autonomia financeira.
Sem que haja necessidade de discorrermos sobre a diferença entre autonomia soberana ou absoluta, que em nosso caso estaria reservada exclusivamente à União, ao estado brasileiro soberano e a autonomia relativa, na qual estão compreendidos os poderes dos estados-membros e de outros órgãos como é o caso dos tribunais, não é preciso muito esforço para intuir que, quando se trata de eleger o seu corpo diretivo um tribunal goza de autonomia para tanto. Nenhum outro órgão, nem sequer um tribunal que esteja hierarquicamente acima, pode impor regras, escolher nomes, enfim, interferir naquele assunto de economia interna que é a eleição dos seus dirigentes. Se o fizer, obviamente, estará rompendo a autonomia constitucionalmente assegurada, além, de violar escancaradamente um outro princípio constitucional da República brasileira: o princípio democrático.
Vale reproduzir a advertência de Rui Barbosa, quanto a inexistência de dispositivos constitucionais meramente simbólicos ou de efeito moral.; “Não há, numa Constituição cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, aviso e lições. Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular a seus órgãos.”
O mito, naquilo que tangencia esta matéria, reside nas instruções normativas, nas resoluções de órgãos especiais ou orientações jurisprudenciais que emanam dos chamados tribunais nacionais. Algumas dessas manifestações procuram garrotear a liberdade que os tribunais devem ter para direcionar a sua escolha.
O mito, que deve ser combatido porque macula o princípio da autonomia já mencionado, nasce de interpretações aleijadas da Constituição, passando pelo funil da LOMAN(lei complementar n. 35/ 79) que é, em muitos aspectos, incompatível com a CF.88, até porque interfere nessa autonomia constitucional dos tribunais. A hermenêutica constitucional deve ser homogênea e sistemática, partindo da e chegando à própria Constituição, sob pena de malferir dispositivos constitucionais tendo como pretexto a tola determinação de não sacrificar a lei. Isto é uma aberração, uma anomalia, um comportamento juridicamente patológico que gera insegurança e desarmonia, além de por em risco toda a estrutura do ordenamento jurídico.
A interpretação das leis, principalmente, da nossa lei maior, não pode ficar presa aos dogmas senis, aferrada a idéias já sepultadas, engavetada e engessada em vetustas erudições clássicas que já não podem fielmente espelhar a nossa realidade de nação que almeja atingir neste terceiro milênio a posição de relevo que pode e deve ocupar no concerto das nações. “Inegavelmente a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, não há mais como se manter a interpretação meramente literal dos textos legais em vigor.
Quer se apliquem as leis velhas que ainda vigem, quer se busquem as soluções para a prestação jurisdicional nas leis que eclodiram no cenário jurídico nacional após a Carta Magna, aos juízes compete fazê-lo em consonância com os parâmetros principiológicos que a Lei Maior inaugurou.
Entra em cena em 5 de outubro de 1988, uma Constituição cujos valores humanistas fixados no preâmbulo contaminam todas as legislações infraconstitucionais anteriores e posteriores, de modo que todo o sistema jurídico nacional passe por um processo de recontextualização
Inaugura-se uma era em que ao Estado Democrático de Direito compete “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
“Os juristas, na universidade ou nos tribunais, ainda se recusam a desviar seus olhos da letra dos textos legais tradicionais, mor das vezes fossilizados e absolutamente desconectados da realidade sociais.””
É que, na realidade, a autonomia dos tribunais é determinada pela própria constituição onde, “assegurando-se sua independência relativa ao cumprimento de sua missão, se traçam as atribuições que lhes são inerentes e que constituem seu próprio poder”.
Mas, contra o mito ergue-se a realidade constitucional, o princípio da autonomia que não está engastado gratuitamente na Carta de República. Tal princípio, evidentemente, assegura a autogestão das nossas Cortes, conforme está contido no art. 96, I, a e nas suas outras alíneas, prevendo autonomia para prover cargos, conceder licença, férias, etc. Afinal, devemos insistir, não há nem pode haver no universo constitucional, ou seja, no bojo da Constituição, norma de natureza ineficaz. Todo e qualquer dispositivo constitucional que disponha de um mínimo de eficácia tem a possibilidade de produzir, no mundo concreto, efeitos jurídicos.
“Inadmissível se cogitar, dentro da Constituição, de normas não-jurídicas, despidas de coatividade, visto que isto enfraqueceria a própria força da Constituição”. Se é assim, os princípios constitucionais, as regras que trazem sua inspiração, devem ser atentamente observados e respeitados.
Portanto, qualquer atitude no sentido contrário pode e deve ser repelida porque consubstancia interferência proibida no pleno exercício do poder conferido para carta constitucional de 1988 aos tribunais brasileiros.
IV. JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA DO TRABALHO
No início deste trabalho deixamos entrever uma situação, que perdura enquanto concluo, de uma clara invasão de competência jurisdicional. Procuramos fazer uma demonstração de como se organiza e se reparte o Poder Judiciário na órbita federal, demarcada constitucionalmente a competência geral e a específica, a autonomia de uma Justiça em relação à outra, como se fora um sistema de órbitas planetárias geridas por leis de atração e repulsão e que garantem o funcionamento perfeito das justiças da União desde que suas áreas de atuação sejam respeitadas.
Tornou-se comum, entretanto, ir alguém buscar prestação jurisdicional junto á Justiça Federal, porém em matéria que gravita necessariamente no campo jurisdicional de outra Justiça, mais comumente, da Justiça do Trabalho.
Pior que tudo, alguns juízes federais, sem uma preocupação maior sobre as leis da autonomia jurisdicional, concedem medidas e julgam os atos praticados noutra justiça e que, constitucionalmente, teriam que ser conceidos ou julgados na própria justiça onde se originaram.
As maiores divergências que surgem com respeito ao princípio da autonomia dos tribunais repousam, sem qualquer dúvida, nas questões envolvendo as eleições e ao Regimento Interno.
Lamentavelmente, alguns mais apressados, por não confiar ou por querer simplesmente um tramitar mais veloz, ingressam com requerimento administrativo na Justiça do Trabalho e, logo em seguida, com ação na Justiça Federal.
Tal posicionamento tem desaguado em decisões díspares, colocando as partes e os que são responsáveis administrativamente pelo cumprimento de tais decisões em posição deveras desconfortável.
Felizmente, o Superior Tribunal de Justiça, através de lúcida jurisprudência, vem cristalizando o entendimento de que, nas hipóteses de ato praticado por Tribunal do Trabalho, por exemplo, passível de apreciação pelo próprio TRT em sede de Mandado de segurança, a competência é da Justiça do Trabalho.
Veja-se, a propósito, exemplo de tal posicionamento jurisprudencial, verbis: CC no. 14.710/MA (REG. 95.0039570-3)
Relator: Ministro Vicente Leal - julgado em 09.04.97.;
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Nº 14710/MA (REG. 95.0039570-3)
Relator: Ministro Vicente Leal
Autor: Paulo Roberto Rios Ribeiro
Ré: União Federal
Suscitante: Tribunal Regional do trabalho da 16ª Região.
Suscitado: Juízo Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Maranhão.
CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA.
Ato Administrativo emanado do plenário de Tribunal Regional do Trabalho. Ação Cautelar Inominada. Incompetência da Justiça Federal. Art. 1°, da Lei Nº 8437/92, Art. 109, VIII da CF/88 e Art. 21, VI da LOMAN.
- Nos termos do art. 1°, parágrafo 1°, da Lei n. 8431RJ2, a competência do Juízo de Primeiro Grau em sede de provisão cautelar deve ser afastada quando se busca atacar ato de autoridade sujeito à apreciação originária de Tribunal, mediante impetração de ação mandamental.
- A Justiça Federal de Primeira instância não é competente para processar e julgar ação ordinária com pedido de tutela antecipada em que se pugna pela desconstituição de ato administrativo emanado de Tribunal Regional do Trabalho, ex vi do art. 21 da LOMAN c/c o art. 109, VII, da Constituição da Republica.
- Conflito conhecido. Competência do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região, o suscitante.
- (Publicado no Diário da Justiça de 19 de maio de 1997).
A segurança das relações jurídicas deve ser defendida do modo mais amplo possível. A repartição da competência, tal como distribuída, inclusive, a nível constitucional, é imprescindível para facilitar a vida dos jurisdicionados, para a tranqüilidade dos advogados e a serenidade dos juízes.
Por tudo quanto foi dito, entendemos inaceitável a intromissão da Justiça Federal no exame de atos cuja apreciação é privativa da Justiça do trabalho porquanto tal interferência abalroa o princípio constitucional da autonomia dos tribunais(art. 96, I e suas alíneas da CF/88).
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
1. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro 1998.
2. Antonio Menezes Cordeiro, in Pólis, Enciclopédia VERBO da Sociedade e do Estado, volume 4, Lisboa, 1996.
3. Plá Rodrigues, Princípios de Direito do trabalho, LTr, São Paulo, 3ª Edição, 2000.
4. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 6ª Edição.
5. Rui Barbosa, Comentários à Constituição Federal Brasileira. Vol. II(arts. 16 a 40), Livraria Acadêmica, Saraiva, 1933.
6. Cristina Tereza Gaulia, in Cidadania e Justiça, 2o semestre 2001, ano 5o , n. 11.
7. Napoleão Nunes Maia Filho, nos seus Estudos Temáticos de Direito Constitucional, UFC, 2000
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