Lixo é um conjunto de resíduos sólidos resultantes da atividade humana. Urge desmistificar conceitos sobre ele mantidos pela sociedade. De início, a separação em lixo domiciliar (doméstico) e hospitalar (resíduos dos serviços de saúde) é inconsistente. Ambos merecem cuidados para que não poluam o solo e a água com substâncias tóxicas que contém: metais pesados, tintas, vernizes, solventes, agrotóxicos etc. E só. Há farta literatura disponível (Althaus e cols., 1983.; Mose e Reinthales, 1985.; Kalnowski e cols., 1983.; Jager e cols., 1987.; Neves, 1987, 1991.; Zanon, 1991, 1992.; Ferreira, 1997, 2000, entre outros), em que insistentemente se demonstra que nem o lixo hospitalar nem o doméstico acarretam risco infeccioso a pessoas e ao meio ambiente.
A legislação brasileira sobre o assunto é equivocada, arbitrária, confusa e casuística. Talvez por isso, haja no Congresso Nacional cerca de setenta projetos de lei sobre resíduos dos serviços de saúde. Hoje, uma comissão da Câmara dos Deputados os desenterra sabe-se lá com que intenções -, pois esses resíduos, na realidade, representam menos de 2% do total dos lixos produzidos numa cidade. Para justificar uma provável legislação, utiliza-se de uma afirmação falsa e jamais comprovada de que esse lixo é perigoso para a saúde pública porque transmite doenças infecciosas.
É, no mínimo, curioso para não dizer suspeito, tamanho interesse por um risco inexistente, já que se escamoteia os seguintes fatos: a) cerca de 30% do lixo doméstico no Brasil não é coletado, e cerca de 90% do coletado é destinado de forma inadequada.; b) não há preocupação idêntica com os resíduos industriais.; e c) tampouco há preocupação semelhante com os produtos tóxicos existentes no lixo, e que envenenam o solo e a água do subsolo.
Não há diferença alguma entre o lixo domiciliar e o dos serviços de saúde, incluindo o hospitalar. É tão difícil diferenciá-los que se exige uma embalagem especial que identifica a procedência do lixo desses serviços! As normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) consideram esses resíduos contaminados, como se existisse lixo estéril. Consideram, por exemplo, o sangue com o prazo de validade vencido como contaminado, mesmo que este tenha sido submetido aos teste de rotina e admitido apto para ser transfundido. Tais normas não passam de uma coleção de preconceitos para justificar a teoria da periculosidade do lixo: uma espécie de atualização da veneranda teoria astromiasmática, que atribuía a origem das doenças às emanação de pântanos e do lixo, recomendava esterilizar o ar com tiros de canhão ou grandes fogueiras.
A Sociedade de Epidemiologistas Hospitalares dos EUA (SHEA) assumiu em artigo no Infection Control Hospital Epidemiology (12, 1991) que: a) não há evidência de que o lixo seja uma fonte infecciosa.; b) apenas os resíduos perfurocortantes merecem cuidados.; c) o risco potencial de contaminação pelo HIV por picada de agulha perdida no lixo variaria entre 1:1 milhão a 1:380 milhões.; e d) o lixo hospitalar não oferece risco para o público.
Por outro lado, a U.S. Department of Health and Human Services declarou no Congresso Americano (setembro, 1990) que o lixo hospitalar não fornece riscos para o público e nem para o ambiente. Por essas e outras razões, não possuem suporte científico as seguintes exigências propostas ao governo: a) a contratação de um profissional de nível superior para gerenciar o recolhimento do lixo nos serviços de saúde.; b) o recolhimento do mesmo em embalagens especiais.; c) o pagamento de uma taxa especial para o recolhimento do lixo dos serviços de saúde.; e d) transporte especial para o lixo hospitalar.
Posto assim, questiono a competência da ABNT de criar normas para resíduos dos serviços de saúde, bem como a legalidade de se transformar em leis as normas criadas por uma entidade privada. Outrossim, denuncio a falta de suporte científico dessas normas e os interesses escusos que elas promovem.
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Jayme Neves é médico, foi professor titular de Doenças infecciosas e parasitárias da UFMG (e-mail: jneves@planetarium.com.br)
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Douglas Lara
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