A TUTELA ANTECIPADA COMO FATOR DE ALTERAÇÃO DO ÔNUS DO TEMPO NO PROCESSO. A IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO POR AMEAÇA DE IRREVERSIBILIDADE. UMA VISÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.
I
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A vida humana tem sua real dimensão no tempo. Tudo o que se realiza ou mesmo se vive está contido dentro de um espaço de tempo definido. O processo, como realidade ontológica, dele não escapa, ao contrário, o tempo na solução dos litígios tem sido elemento constante de estudo na doutrina e preocupação pelos operadores do direito.
A etimologia de processo, do latim, procedere, que significa seguir avante, o revela como elemento essencial da atividade processual. No entanto, o Código De Processo Civil parece passar ao largo dessa realidade, como se os sujeitos que sofrem os efeitos da relação processual na solução dos litígios dele estivessem apartados por uma abstração quase mágica .
Não se pode esquecer que as bases científicas do direito processual que insistimos em chamar de “moderno” datam do Século XIX, numa contradição sem precedentes. Nunca um instrumento científico se apresentou tão inadequado ao fim que dele se espera, em razão do distanciamento entre a realidade do momento histórico em que foi idealizado e as necessidades do momento em que é aplicado.
Ninguém admitiria nos dias de hoje uma intervenção cirúrgica sem anestesia.; viajar do Rio a Petrópolis de charrete ou se comunicar através de bilhetes, práticas do dia-a-dia no “Século das Luzes”. Porém, por mais paradoxal que apareça, admitimos a utilização de um sistema processual mais afeito aos preceitos científicos de cento e cinqüenta anos atrás.; lento, moroso, preso a princípios absolutamente distantes das necessidades reais de um mundo no qual a rapidez se tornou vital.
O direito processual civil tradicional, baseado no binômio certeza-segurança, preso às amarras de uma miríade de recursos, a depender de um processo executório autônomo, tão demorado e caro quanto o processo de conhecimento, está falido. É incompreensível ao homem comum, destinatário final da atividade jurisdicional, esperar três, quatro, cinco anos ou mais, para vivenciar a realização do seu direito. Refiro-me à real efetivação da solução do conflito de interesses estabelecido pelo julgamento de mérito, com a entrega definitiva da prestação jurisdicional.
A ciência processual não evolui a contento. Parece estagnada, presa a antigos conceitos, detida por muralhas formadas pelas conseqüências de uma visão equivocada do que se pretende ser um “processo democrático”. Parecemos confinados em um castelo medieval, seguros dentro dos muros da fortaleza, e por isso mesmo incapazes de galgar novos caminhos. Mais do que reformar, é preciso ousar. O dia-a-dia forense afasta-se cada vez mais das expectativas da modernidade. Em um mundo no qual impera a velocidade em todos os campos da atividade humana, um meio tão lento de solução de conflitos beira o ridículo.
Quando do surgimento do instituto da tutela antecipada no direito processual brasileiro, vislumbrou-se um início de mudança. A alteração é bastante tímida, é verdade, mas afinal de contas, uma caminhada começa com o primeiro passo.
A preocupação com a velocidade na prestação jurisdicional rompeu há muito as amarras do poder judiciário e é hoje uma aspiração da sociedade, cada vez mais consciente dos seus direitos e ávida por realizá-los. Exemplo disso é Projeto de Emenda Constitucional do Capítulo que trata do Poder Judiciário atualmente tramitando no Congresso Nacional. Uma das alterações dignas de nota, certamente uma das únicas com algum poder de efetividade, é a que altera a literalidade do inciso LXXVIII, que passará a ter a seguinte redação.; “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo, como direito público subjetivo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, sendo vedados prazos processuais diferenciados às partes em razão da personalidade jurídica.
Toda o pensamento científico voltado ao processo deverá se adequar a essa nova realidade. Não apenas o direito de ação será público subjetivo, mas a razoável duração do processo, com a garantia de meios que garantam a velocidade do julgamento. A tutela antecipada cai como uma luva na nova concepção processual. Cremos que, como garantia de celeridade da prestação jurisdicional, a medida prevista no artigo 273, do CPC, tornar-se-á obrigatória nos casos permitidos pela lei.
Uma visão panorâmica do instituto e sua problemática ajudarão a compreender a dimensão do instituto e sua importância atual e futura no mundo do processo.
II
O TEMPO COMO ÔNUS DO PROCESSO.
Partindo da premissa de que o tempo é elemento essencial do processo, devemos estabelecer seus efeitos na relação jurídica litigiosa trazida à juízo, quem seria o principal afetado, e de que maneira.
O ingresso em juízo com uma ação significa, necessariamente, que o autor necessita da alteração do status quo jurídico existente entre ele e o demandado. O réu está resistindo a uma pretensão que o autor afirma justa e dentro do direito, e, se assim o é, durante a marcha processual este último ficará privado do direito ou do bem de vida que busca, mantendo-se ainda por longo tempo o status quo que lhe parece injusto.
O réu, por sua vez, ainda que saiba ser justa a pretensão autoral, tem interesse em manter a situação jurídica inalterada pelo maior espaço de tempo possível. Se a dor é inevitável, é instintivo tentar protelá-la ao máximo. O processo de conhecimento atual propicia, no mais das vezes, esse alívio temporário ao réu, em detrimento do eventual bom direito do autor.
Firmou-se a idéia de que o réu tem o direito a definitividade da decisão, ou seja, só pode ser privado dos seus bens ou sofrer prejuízos de índole material depois de esgotados todos os meios possíveis de defesa, tese robustecida pela literalidade do inciso LIV, do artigo 5°, da Constituição Federal, que trata do devido processo legal.
Interpretando-se tão literalmente a norma, os chamados direitos evidentes e as situações urgentes ficam ao desabrigo da prestação jurisdicional rápida, o que é um contra-senso sem limites. Há inúmeros litígios nos quais a defesa é claramente protelatória, seja pelo conteúdo probatório indiscutível trazido com a inicial, seja pela posição jurisprudencial avassaladora em favor da tese do autor e outros nos quais a emergência torna imperativa uma rapidez quase inimaginável no procedimento cognitivo comum.
O certo é que o ônus do tempo no processo é suportado, sempre, pelo autor. Se ele tiver razão jurídica e a vitória sobrevier, o tempo em que se viu privado do direito ou do bem de vida pretendido será visto como fator de censura ao judiciário pela morosidade em decidir o óbvio, além de, não poucas vezes, a demora causar prejuízos irreparáveis. Se for derrotado, considerando que o status quo inicial não foi alterado, o réu nenhum prejuízo sofrerá.
A busca por uma proporcionalidade razoável entre a necessidade de amadurecer a decisão através da chance de o réu exercer a defesa da forma mais ampla possível e o aumento da velocidade na efetivação da tutela jurisdicional, será, sem dúvida, o desafio da ciência processual do início desse novo Século.
III
A TÉCNIDA DE COGNIÇÃO SUMÁRIA COMO FATOR DE MODIFICAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DO TEMPO NO PROCESSO.
Em razão dessa realidade processual injusta, novas técnicas de cognição foram objeto de considerações doutrinárias e foram adotadas no direito positivo. Houve em determinado momento da ciência processual uma “ordinarização” dos procedimentos em prol da certeza e da segurança, que somente os ritos “pesados” oferecem. Neles toda a possibilidade de defesa pode ser explorada, seja no sentido vertical ou no horizontal, é a cognição plena e exauriente.
Em verdade, a cognição pode ser compreendida em duas direções.; a vertical e a horizontal. No sentido horizontal poderá ser plena ou parcial, no vertical, exauriente ou sumária.
Na cognição parcial o legislador limita o conhecimento do órgão julgador a determinadas matérias, remetendo a outras demandas o conteúdo excluído. Limita-se o objeto do litígio em prol da mais rápida acomodação do conflito. É o caso das ações possessórias e dos embargos do executado . Também é possível que a lei limite as possíveis alegações da defesa, o que se dá, por exemplo, na ação de busca e apreensão do Decreto Lei 911/69, no qual o réu só poderá alegar “o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais”.
Na cognição sumária a restrição se dá no plano vertical. Há uma decisão baseada no provável, geralmente antecipando o que só seria deferido na sentença de mérito e seus efeitos sentidos somente após o trânsito em julgado. É nela que se inclui a antecipação da tutela.
No direito positivo vários exemplos de cognição sumária já eram encontrados bem antes da alteração do artigo 273, do CPC, que “ordinarizou” o instituto. Na ação possessória, na ação popular, no mandado de segurança, nas ações revisionais de aluguel e em algumas outras, as liminares previstas em lei nada mais eram e são do que antecipações da tutela de mérito .
Como veremos adiante com mais detalhes, o juízo de probabilidade vem tomando lugar de honra no processo, permitindo que uma série de injustiças causadas pela morosidade da decisão judicial sejam evitadas. A vetusta idéia de que o réu tem direito ao juízo exauriente, sempre e sem restrições, imenso óbice à modernização da prestação jurisdicional, começa a ficar em segundo plano. Basta lembrar do procedimento dos Juizados Especiais , no qual os princípios informativos direcionadores do rito são a informalidade e a celeridade.
A cognição sumária possui um efeito avassalador na distribuição do ônus do tempo no processo. Uma vez deferida a antecipação da tutela, seja no rito ordinário ou nos especiais acima mencionados, o réu passa a sofrer o peso da demora da decisão judicial. O status quo a ele inicialmente favorável se altera, na medida em que o autor está usufruindo o bem ou do direito objeto do litígio objeto da sua pretensão.
Deve ainda ser mencionado que o artigo 273, do CPC, não foi a única alteração benfazeja no campo da sumarização da cognição. O parágrafo 3°, do artigo 461, do CPC, permite uma antecipação de tutela nas ações cuja pretensão corresponder a obrigação de fazer ou não fazer. A natureza jurídica dos dois dispositivos é a mesma, mas há particularidades relevantíssimas em cada um deles que permite estabelecer distinções bastante nítidas. Não trataremos especificamente do artigo 461 nesse trabalho.
Desta forma, é possível concluir que a ordinarização do instituto da antecipação da tutela tem uma conotação quase revolucionária no processo, podendo mesmo alterar o eixo da realidade material da demanda.
IV
O ASSENTO LEGAL
A simples leitura do artigo 273, do CPC, é suficiente para compreender a antecipação da tutela nos seus contornos básicos. Através dela pode o autor obter de forma parcial ou total os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial. Ou seja, o autor obterá antecipadamente aquilo que só conseguiria após o trânsito em julgado da decisão meritória que lhe fosse favorável. É possível que em questão de semanas se obtenha o que, normalmente, levar-se-ia anos para conseguir.
Duas modalidades de antecipação de tutela foram abrangidas pela legislação.; a tutela de urgência e a tutela de evidência, a primeira estabelecida no inciso I, do artigo 273, do CPC, e a Segunda no inciso II, do mesmo artigo. Os requisitos genéricos para a obtenção de ambas são idênticos.; a prova inequívoca e a verossimilhança da alegação do autor, porém, filosoficamente, as duas possuem bases bem distintas.
A tutela de urgência volta-se a satisfazer situação na qual o autor necessita da tutela jurisdicional imediatamente, sob pena de tornar-se inútil o processo. É o caso do recém-nascido que precisa ser mantido na UTI neonatal por período superior ao permitido no contratado com a seguradora de saúde. O pedido principal da ação interposta em defesa dos interesses da criança será o de anulação da cláusula limitadora com a condenação da seguradora a arcar com os custos do tratamento. Sem o deferimento imediato da medida a ação seria inútil, considerando que na época do trânsito em julgado da sentença de mérito o então neonato já estaria até falando, isto se conseguisse sobreviver.
Não se pode confundir a tutela de urgência com o processo cautelar. Este último serve para garantir o bem ou direito objeto do litígio contra uma ameaça, desde que o direito alegado pelo autor seja plausível.; fumus boni iuris e periculum in mora. Não será deferida a pretensão autoral de fundo antecipadamente. Será, isto sim, implementada uma medida protetiva, que perdurará até que não seja mais útil com o fim da demanda.
O elemento tempo encontra-se igualmente presente nas considerações sistemáticas acerca da ação de cautela, já que, se a prestação jurisdicional fosse imediata, a ameaça não teria sequer tempo de se instalar. Esse é o único elemento comum à pretensão cautelar e à antecipação da tutela.
A tutela de evidência volta-se à proteção dos chamados “direitos evidentes”. São aqueles casos nos quais a defesa é fragilíssima, seja pela avassaladora prova inicial em favor do autor, seja pela clareza da norma a ser aplicada em favor do sucesso da pretensão, seja pela jurisprudência uníssona em favor da tese autoral, muitas vezes assentada em Súmula dos Tribunais Superiores. A defesa aí será meramente protelatória, apenas um retardo do inevitável. O não acolhimento do direito evidente de uma forma imediata é um dos fatores mais marcantes do descrédito no judiciário.
Há inúmeros casos nos quais o réu simplesmente não tem defesa possível, quer sob o aspecto legal, quer sob o fático. Os exemplos são tantos e tão comuns que só serviriam para cansar o leitor se citados aqui. É deles que se extrai, a nosso sentir, a maior idiossincrasia do sistema processual. Temos o Mandado de Segurança para defender direito líquido e certo contra ato abusivo ou ilegal de autoridade, através de um rito que se pretende célere e sem maiores delongas. E quando o direito líquido e certo for de um particular contra outro? Aí o jeito é esperar.
IV
AS LIMITAÇÕES À ANTECIPAÇÃO DA TUTELA E A QUESTÃO CONSTITUCIONAL.
A legislação ordinária “deu com uma mão e tirou com a outra”, como se diz popularmente.
Um dos parágrafos do artigo 273, do CPC, limita enormemente a aplicação do instituto, que seria levado ao quase desuso se a jurisprudência não estivesse a simplesmente esquecê-lo em alguns casos. Refiro-me ao parágrafo 2° do referido artigo, que determina a impossibilidade de concessão da antecipação de tutela se houver ameaça de irreversibilidade da medida.
Em muitos casos a irreversibilidade é uma conseqüência inexorável do deferimento e a medida certamente não poderia ser concedida se a norma fosse interpretada literalmente. Note-se que o dispositivo não fala em irreversibilidade, mas em perigo de irreversibilidade, alargando a incidência da proibição quase ao infinito. Porém, no caso concreto, é bastante comum ocorrer a possibilidade de a medida se tornar irreversível.
O exemplo acima, do Plano de Saúde, é um deles. Não raro as Seguradoras argumentam com o referido dispositivo a favor dos seus interesses, pugnando contra o deferimento da medida ou sua revogação se já deferida. Alegam que o valor da internação alcançará muitas vezes o patrimônio do segurado, e se a medida foi revertida não terão como se forrar dos gastos, o que de fato acontece na imensa maioria da vezes. É a irreversibilidade na prática.
Caso interessante e corriqueiro é o da antecipação da tutela concedida para que o ente público forneça medicamentos a doente que deles necessita, cumprindo a Constituição Federal e a lei que criou o SUS. Um dos argumentos utilizados pela defesa em tais situações é de que a medida seria irreversível, considerando que teria caráter alimentar e não haveria como o a Fazenda Pública obter o retorno dos gastos em razão do estado de miserabilidade do doente.
Para solucionar estes e outros casos a jurisprudência vale-se do chamado princípio da proporcionalidade. No cotejo entre dois direitos reconhecidos.; a impossibilidade de deferir tutela antecipada irreversível e a manutenção da vida ou da saúde do necessitado prestigia-se o segundo. A razão parece óbvia. Entre um e outro aquele que proporciona a preservação da vida é o prevalente. Mas não é só. Nos parece que uma interpretação conforme a Constituição fornece meio mais técnico para se chegar ao mesmo resultado.
O artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal, erige como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Uma solução diferente da acima preconizada para o problema proposto estaria em flagrante desacordo com um dos princípios básicos da Carta Política.
Aliás, a busca e a preservação da dignidade humana como critério interpretativo forneceria solução para uma série de casos concretos, se fosse lembrada mais amiúde.
No caso de tutela de urgência, a limitação prevista no parágrafo 3°, do artigo 273, do CPC, encontra-se igualmente em desacordo com uma interpretação conforme os dispositivos constitucionais.
A Constituição Federal, no seu artigo 5°, inciso XXXV, estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Trata-se do chamado princípio do livre acesso à justiça, ligado umbilicalmente ao princípio da efetividade da prestação jurisdicional. De nada adianta garantir o acesso se a lentidão na obtenção da medida necessária a impedir a lesão ao direito tornará inútil a busca ao judiciário.
Não se pode interpretar a constituição no sentido unicamente formal. É preciso que se instrumentalize efetivamente a prestação jurisdicional de maneira a conceder meios processuais para se obter medidas de caráter urgente.; para isso existe a tutela de urgência prevista no artigo 273, I, do CPC. Inviabilizar a plenitude da sua aplicação, por qualquer que seja a razão, provocará, no mais das vezes, o reconhecimento de que o acesso irrestrito à justiça pode ter caráter unicamente formal e não material, o que se demonstraria um absurdo interpretativo completo.
Desta forma, a limitação à plena vigência do instituto da antecipação da tutela de urgência cai por terra quando cotejada com a norma constitucional que garante o acesso à justiça.
V
CONCLUSÃO
A Constituição Federal não deve ser encarada apenas como a legislação maior, não é apenas a Carta Política da nação, é, isto sim, o contrato social que nos une, trazendo em seu bojo o desejo aceito pelos componentes do ente nacional para a concretização do bem comum.
O acesso à justiça é um princípio constitucional garantidor do estado democrático de direito e da primazia, além de outro princípio básico.; o da legalidade. Como princípio, constitui-se em valor fundamental, balizando a própria Constituição, o regime e a ordem jurídica.
Nenhuma regra infraconstitucional, portanto, coaduna-se com o sistema constitucional se interferir negativamente no livre acesso à justiça, seja sob que aspecto for, sendo este o caso do disposto no parágrafo 2°, do artigo 273, do CPC, quando se tratar de tutela de urgência.