Juiz - um ser dual
FRANCISCO JOSÉ SOARES, Advogado
Publicado no jornal Diário do Nordeste, de 28 de março de 2005
O juiz vive um conflito identitário, na ambigüidade de uma alteridade, que o faz migrar do seu individual subjetivo para a individualidade transubjetiva da instituição, de que se tornou agente operacional. É um ser “mutante” de dupla natureza, um estranho que se recusa a sair de “si mesmo” na definição de Lucaks. Ele só existe em função da toga, que lhe confere um poder, que transcende a sua própria humanidade. Ele encarna a própria idéia de justiça, como o oráculo vivo do Direito, ou “o Direito tornado homem”, como queria Calamandrei.
Essa dualidade homem/juiz adquire relevância na medida em que entre um e o outro houver uma interação de valores. Se o juiz não souber aliar sua conduta à virtude de seu cargo estaria se antagonizando consigo mesmo, por contrapor-se aos fins a que a própria justiça se destina. O magistrado de Sobral, num comportamento desviante, fez aflorar em seu subconsciente a pulsão do poder inerente à sua função. E, num processo de subsenção, assumiu a condição de justiceiro de suas vinditas pessoais.
A ressonância do fato delituoso se deveu à visibilidade do juiz, como figura paradigmal de conduta ética. O juiz representa o espelho da justiça “speculum juris”, um espelho de duas faces, numa duplicidade de olhares, como “esse rostro que mira y es mirado”. Se, de um lado, está sempre a nos vigiar, pedindo contas de todos os atos de nossa vida, privada ou pública.; de outro ângulo, é o que mais concentra o olhar arguto da sociedade, sendo o mais observado, o mais avaliado, o mais criticado, embora o mais respeitado, por ocupar o último assento da autoridade.
Do juiz se espera quase o impossível, que é conciliar a sua fragilidade humana com uma missão quase divina. Alguém já comparou os magistrados aos missionários de Cristo, na alegoria do apóstolo. Não são mais do que simples “vasos de argila”, que transportam o “tesouro do espírito”. Ainda que pecadores, devem dizer “não” aos procedimentos errôneos. Pregando não a si mesmos, mas a verdade que salva, devem fazer brilhar a luz no meio das trevas. E, da maneira como se houverem, podem conduzir a vida ou podem levar à morte (II Corínthios, 7-14).
O juiz que mata merece ser punido, mas não custa lembrar a célebre advertência de Voltaire: “... e nem por isso se deve queimá-lo” na fogueira da intolerância.
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