A UTILIZAÇÃO DA TORTURA PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA
Para a compreensão da violência perpetrada através de mecanismos de tortura, necessita-se, em primeiro da compreensão do que vem a ser a tortura enquanto conceito e uma rápida análise do surgimento e evolução no contexto histórico nacional.
Conceitualmente, tortura é todo sofrimento físico ou psicológico infligido a alguém como forma de castigo ou mesmo como mecanismo de controle. Na modalidade criminosa, a tortura é formada pelos elementos constranger, submeter, imputar, sofrimento físico ou mental, utilizando-se de violência ou grave ameaça.
A tortura para Nigel Rodley, relator da ONU e elaborador da mais completa investigação sobre a tortura no Brasil, nada mais é do que “um crime de oportunidade” que pressupõe a certeza da impunidade.
Apontam os estudiosos da sociologia e de outras áreas das ciências humanas, com base em fatos da recente história brasileira, que a tortura está presente em nosso meio desde a ocupação portuguesa em 1500. Era forma e meio de obtenção de prova, constituindo-se um legado da própria perseguição promovida pela igreja durante a inquisição. No decorrer de todo o Império e da República nunca deixou de ser utilizada. Pelo contrário, teve sua intensificação promovida nos períodos ditatoriais, em que se apresentava sob forte conotação da segurança nacional, e constituía-se como instrumento para a perseguição de opositores políticos de esquerda, alcançando, inclusive, sua perfeição com novas técnicas introduzidas pela CIA durante o período de incentivo às ditaduras no combate ao inimigo vermelho.
A utilização da tortura pelos policiais como meio de obtenção de provas, principalmente aplicada contra presos comuns e detentos se deu com a redemocratização, pois a conotação política, até então presente nas ditaduras, deu espaço a uma incipiente democracia que estava nascendo.
A tortura é mecanismo disseminado por toda o complexo sistema estatal. Implicados na sua utilização estão os órgãos policiais e os órgãos de Custódia de Condenados e Execução de Pena. Geralmente a figura do torturador recai sobre os agentes do sistema de segurança pública, policiais civis e militares, que em geral exercem parcela do poder do Estado. Esses agentes estão adstritos ao exercício legal da força para a manutenção da ordem pública e não raro extrapolam os limites do poder, perpetrando crimes dessa natureza sob o pretexto da eficiência no exercício da função e conseqüente proteção social.
A tortura é praticada no meio policial principalmente como técnica de investigação, imposição de castigo ou para extorquir informações e vantagens econômicas, caracterizando-se como recurso constante para a elucidação de crimes. Pessoas detidas em flagrante ou de forma arbitrária e ilegal são submetidas a suplícios para que prestem informações sobre como o crime foi planejado, para apurar a localização de cárceres ou alcançar a delação de companheiros foragidos.
Essa prática constitui-se como verdadeiro entrave a evolução das técnicas de investigação criminal científica, já que a utilização da tortura provoca a "confissão" dispensando a continuidade das investigações e dispensabilidade de aplicação de tecnologias forenses modernas.
Nos presídios e casas de detenção, a prática esta ligada à imposição de castigos como forma de punição por eventuais fugas ou mesmo como mecanismo de manutenção da disciplina. Celas isoladas, punições disciplinares em limites ou formas ilegais, espancamentos, etc. são exemplos de como esse crime acontece no interior do cárcere, inclusive com a colaboração de outros detentos ao comando das autoridades dirigentes.
A tortura não acontece indiscriminadamente com todas as pessoas em todos os lugares, há vítimas preferenciais desse tipo de crime. As potenciais vítimas estão na base da pirâmide social. São pessoas de poder econômico nenhum e sem informação alguma sobre seus direitos. Geralmente são aquelas detidas ou acusadas de suspeitas de prática de delito, devido principalmente a pouca influência social e até mesmo sua dificuldade de acesso aos meios legais disponíveis para apuração e eventual punição dos torturadores.
Um fiel retrato da Tortura no Brasil foi produzido em 2001. Conhecido como o mais abrangente investigação sobre a tortura já produzida pela ONU, o relatório do Dr. Nigel Rodley desvelou essa prática em nosso país, ao apontar casos ocorridos em delegacias e penitenciárias de seis Estados da Federação.
Do relatório da ONU se depreende que a prática da tortura permeia todo o sistema de segurança do Estado. Começa com o atendimento feito pela Polícia Militar de forma violenta durante determinada ocorrência ou perseguição, aproveitando-se para infligir castigo mesmo depois de já ter dominado e algemado o suposto infrator.; passa pela Polícia Civil, que dela se utiliza no decorrer do processo inquisitorial investigativo, como forma de obter a confissão ou indicação de outros partícipes do crime, e não raro, como forma de extorquir vantagens econômicas.; e desemboca na execução da pena acometida, quando o preso chega ao sistema penal e se depara com penitenciárias superlotadas e rigores excessivos e ilegais para a manutenção da disciplina.
No Pará as investigações do relator revelaram nada menos que 52 casos de tortura ou de tratamento humano degradante. O relatório detalhou inúmeros exemplos, além de tornar público o descaso na apuração dos culpados pelas autoridades incumbidas legalmente.
A pesar de todas as denúncias já promovidas pelos estudiosos e autoridades nacionais e internacionais, e das constantes fiscalizações realizadas por órgão governamentais ou mesmo por ONGs, a pratica da tortura não tem se reduzido significativamente. Basta ver o balanço divulgado pelo SOS Tortura no período de 30 de outubro de 2001 a 17 de janeiro de 2002 foram denunciados 803 casos no país, sendo que a maioria deles cometidos por policiais com emprego de cassetetes, gás pimenta, choques elétricos, etc.
Dos poucos casos que chegaram ao conhecimento dos tribunais, não se tem notícia de que nenhum já tenha transitado em julgado. È bem possível que já se tenha imposto alguma forma de punição por prática de tortura, mas de tão raras, as condenações não são divulgadas para servir de exemplo e prevenção geral.
Ainda que tenhamos citado o emprego da tortura como forma de infligir castigo e obter informações por parte dos órgãos do sistema de segurança, urge falar em outro objetivo não tão nítido. Trata-se da “pedagogia do medo”, através da qual o aparelho de segurança busca atuar sem encontrar resistência e almeja alcançar a devida legitimidade no meio social, através de uma atuação policial eficiente. Seu mecanismo é a utilização da tortura ou de qualquer outro meio violento como praxe policialesca do cotidiano, cujo objetivo é incutir nas mentalidades menos favorecidas, e principalmente divulgar entre as classes de menor poder aquisitivo, que a autoridade não é complacente com quem comete crimes, e que qualquer desvio de conduta gera a imediata punição sobre os seus corpos.
Destarte, as autoridades e demais membros da sociedade organizada, principalmente as elites econômicas, pensam alcançar um nível de prevenção criminal maior, pois o medo da polícia gera uma conduta alheia ao crime.; ou mesmo que o crime venha a ser cometido, o castigo imediatamente recebido é o justo contraponto, pois a prática já o tornou aceito.
Assim, em nome de uma maior eficiência policial empresta-se legitimidade a condutas violentas (considere-se a tortura incluída) para divulgar o medo, como fito de gerar segurança e resguardar o patrimônio das classes aquinhoadas da sociedade, pois “as classes perigosas” devem ser devidamente cercadas e enquadradas.
Com a “pedagogia do medo” ensina-se a ricos e pobres que a violência policial nas suas mais diversas formas é um corolário da imediata necessidade de proteção das pessoas de bem, sendo porventura aceita porque raramente atinge senão as pessoas da classe baixa. A polícia, nesse contexto, atua como cerca de proteção que põe as elites a salvo das classes perigosas e miseráveis.
A crença na serventia da tortura é uma doença crônica que acomete o aparelho policial brasileiro e acaba por subverter a lógica do Estado, que se transforma em violador das leis que deveria garantir.
A tortura, portanto, existe no meio policial caracterizada como herança de uma tradição totalitária e intensificada pela ditadura militar, e que repercute hodiernamente com uma aparência de necessidade urgente para o combate ao crime.