Como lembrou Kant, na sua A Paz Perpétua: Todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não é compatível com a publicidade, são injustas
Martônio Mont Alverne Barreto Lima é coordenador do Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Procurador do Município
Publicado no jornal O POVO, dia 05 de abril de 2003.
Do episódio a respeito do retorno de membro do Tribunal de Justiça afastado para apuração de irregularidades na sua conduta, podem ser tiradas algumas conclusões. Uma delas envolve o processo de modernização conservadora que se iniciou no Ceará a partir de 1986, com a emergência de um modelo econômico e administrativo hermético, distanciado do povo e que não foi capaz de produzir uma efetiva democratização e republicanização das instituições de nosso Estado. Especialmente nos casos dos poderes Executivo e Judiciário, que se mantiveram ainda presos a uma cultura política arcaica, excessivamente hierárquica, avessa até aos processos de controle político propiciados pelos mecanismos do sistema representativo.
No caso específico do poder Judiciário, isso torna-se mais grave, do ponto de vista de uma teoria político-constitucional da democracia, pelas resistências particularmente intensas que este sempre manifestou a prestação de contas à sociedade de seus atos.
Afinal, a partir do acúmulo histórico do poder Judiciário do Ceará - e do Brasil - era perfeitamente previsível saber que processos endógenos de apuração de irregularidades não teriam maior fôlego e seriam extremamente limitados, por traduzirem uma incompatibilidade com o princípio maior da democracia e da igualdade: o de que ninguém pode ser seu próprio juiz. Se a apuração de irregularidades por meio de um organismo interno é constitucionalmente determinada, não se pode ignorar que esse sistema é produto da força corporativa dos magistrados na Constituinte e não do consentimento ativo da sociedade em favor da construção de um Estado Democrático.
A dificuldade de sobrevivência de um mecanismo arcaico como esse com um texto constitucional moderno se deixa provar por meio da instituição de um conselho de magistratura, o qual é ponto presente na proposta de reforma do poder Judiciário. Na luta por uma reforma do poder Judiciário democrática residem, aliás, muitas de nossas esperanças republicanas, sem a qual assistiremos a manutenção de sua estruturação burocrática, divorciada da realização da cidadania e da vontade soberana do povo.
Em relação ao Ceará, a alternativa do momento está nas mãos do poder Legislativo, na forma da imediata instalação de uma CPI para apurar as denúncias existentes sobre o poder Judiciário estadual. É necessário que a Assembléia Legislativa retome seu papel de definidor da agenda política no seu subsistema político. Não há como o poder Legislativo deixar de participar deste processo, na medida em que sua atuação já se efetivou há dois anos. O sobrestamento de uma CPI do Judiciário e o voto de confiança concedido mostraram-se absolutamente ineficazes e frustrantes.
Não tenhamos mais ilusões: o esclarecimento dos desvios ocorridos no âmbito do Poder Judiciário do Ceará não será realizado pelo Tribunal de Justiça, ainda que, isoladamente, alguns de seus membros desenvolvam esforços nesse sentido. A pressão democrática de atores externos do Tribunal de Justiça é que poderá efetivar a transparência dos atos daquele poder, realizando uma das tarefas principais de uma democracia: a exclusão do segredo, do clandestino da arena pública. Como lembrou Kant, na sua A Paz Perpétua: Todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não é compatível com a publicidade, são injustas .