Artigo Único = Fernando Nobre é luz de Lei.
O doutor Fernando Nobre não hesita nem recua face ao infortúnio das vidas inocentes, embora no seu rosto pese a lástima e a dor em rugas bem vincadas. O notável cirurgião português prossegue, acorre, dá tudo quanto tem de si para dormir tranquílo sob a noite dos horrores. Salvou... Salva... Continua a salvar seja quem for. Nada o demove da entrega total à mais sublime das dádivas da humanidade: a vida!
A AMI está sob a metralha dos canhões... Gota de esperança no arraial dos assassinos cínicos.
Ah... Doutor... Como vai de dor? Beijo-lhe as peúgadas... Seja em que circunstância for.
António Torre da Guia
FERNANDO NOBRE UM MÉDICO DO MUNDO
Só em duas profissões ou formas de vida se revê. Professor universitário e médico. Na hora da decisão, ganhou a segunda. Hoje, aos 48 anos, Fernando Nobre, presidente da AMI - Assistência Médica Internacional - afirma que "só em grandes momentos de frustração" sente saudades de exercer a sua especialidade no meio hospitalar universitário. Mas, quanto mais envelhece, mais acredita que fez a escolha certa.
Fernando Nobre é o rosto humilde e digno da AMI, organização que fundou há 15 anos. Desde 1984 que a AMI se tornou o centro da sua vida, roubando-lhe o tempo do corpo mas enchendo-lhe sobretudo a alma.
A grande reviravolta deu-se em 1977, quando tomou conhecimento da existência do movimento Médicos Sem Fronteiras e se tornou membro da equipa.
Os primeiros 12 anos de vida foram passados em Angola, país onde nasceu, em 1951. Angolano de quatro gerações, pertence a uma família com diferentes origens - "portuguesa, do lado do meu pai.; holandesa, brasileira e francesa, do lado da minha mãe". Tantas e tão diferentes origens fazem-no considerar-se quase "um bastardo", o resultado de duas culturas, "uma ocidental/portuguesa, porque foi nela que o meu pai nos educou, e outra africana". É, por isso e acima de tudo, "um europeu com raízes africanas profundas".
A mudança do pai, industrial de profissão, para o ex--Zaire, actual República Democrática do Congo, obrigou a família a transferir-se para Leopolde Ville, hoje Kinshasa, mas para Fernando Nobre a estadia não foi muito longa.
"Aos 15 anos o meu pai enviou-me para Bruxelas, na Bélgica, para lá continuar os meus estudos. Lá fiquei, pelo menos, 20 anos" e África, designadamente o ex-Zaire, transformou-se num local de romaria, "onde uma vez por ano passava as férias grandes do Verão". Dos 15 aos 35 anos viveu em Bruxelas. Formou-se em medicina, com uma especialização em cirurgia-geral e, mais tarde, quando percebeu que o rumo a seguir o afastaria das universidades, especializou-se em urulogia, porque lhe permitia trabalhar futuramente com um universo mais alargado de cidadãos.
De 1977 a 1983 integrou o movimento Médicos Sem Fronteiras, tendo actuado em várias missões e participado na criação e administração da secção belga dos MSF. Foi numa das missões dos MSF, no Chade, em 1983, que uma equipa de reportagem da televisão portuguesa o encontrou. Fernando Nobre era então o único, e o primeiro, médico português a integrar este movimento internacional."A reportagem feita na altura e a repercussão que veio a ter motivou-me para a criação de uma instituição semelhante em Portugal, até porque, diziam-me os amigos, não existia nenhuma a actuar nesta área específica, ou seja da medicina humanitária". Foi assim que nasceu a AMI. Fernando Nobre chamou--lhe então Assistência Médica Internacional porque entende que a assistência humanitária médica não depende única e exclusivamente dos médicos. Outros voluntários podem associar-se e desenvolver trabalho muito válido. De então para cá tem sido um corropio de missões e de projectos realizados e a realizar para apoiar homens e mulheres que em locais mais ou menos remotos sofrem os efeitos de calamidades e de guerras nas quais quase nada se revêem.
APOSTA ACERTADA
Jordânia em 1991, Roménia em 1992, Ruanda em 1994, Guiné Bissau em 1998 ou, mais recentemente, Timor Leste em 1999 são algumas das missões mais complicadas em que a organização, criada a 5 de Dezembro de 1984 por Fernando Nobre, participou.
Com uma filosofia e um modo de acção e intervenção idênticos aos Médicos Sem Fronteiras, a AMI faz questão de ir sempre para o interior dos países readaptar estruturas. "Quem sonha, à europeia, com novos, modernos e complexos hospitais para África nem sequer se apercebe que não é dessa forma que vai ajudar o continente a melhorar no domínio da saúde e da assistência humanitária. É preciso valorizar o que já lá está. É melhor e funciona de forma mais imediata", justifica.
A AMI está hoje presente em cerca de 35 países. Em 15 deles tem projectos. Gere em Portugal oito centros sociais (sete centros Porta Amiga e um abrigo para os sem abrigo) e suporta uma estrutura de 60 pessoas. Administrar a AMI é a principal ocupação de Fernando Nobre no presente. "No início quando participava numa missão era como médico que actuava, mas hoje não posso esquecer que sou o responsável máximo desta casa". É também enquanto tal que acompanha todas as missões e que impulsiona e desenvolve no terreno as mais difíceis de concretizar. Nessas ocasiões, a formação médica vem ao de cima e actua sobretudo como médico, que afinal "é aquilo que nunca vou deixar de ser", sublinha.
Arrependido da decisão tomada em 1977?
Nem por isso. "A acção da AMI dá-me momentos de grande satisfação, mas também de grande frustração e é nessas alturas que tenho mais saudades do exercício da minha especialidade no meio hospitalar universitário. Contudo, quanto mais envelheço, mais sei que fiz a aposta certa".
Do menino que nasceu em Angola, país pelo qual nutre um carinho especial, mantém-se a paixão por África, sempre renovada nas viagens profissionais que o obrigam a passar metade dos doze meses do ano fora de Portugal. Algo que parece não o preocupar em demasia. "Adoro viajar e, porque ninguém é altruísta a 100 por cento, graças aos Médicos Sem Fronteiras e agora à AMI tenho conhecido sítios e lugares incríveis, muitos deles impensáveis de conhecer doutra forma. A análise e o sentir que tenho, por isso, do mundo é um privilégio que reconheço com enorme satisfação".
É o conhecimento que tem do mundo, no qual visitou até ao momento cerca de 100 países diferentes, que deixam nele a certeza de serem a intolerância e a indiferença as duas doenças mais terríveis que existem à face da terra.
A primeira explica todas as guerras e atentados. "A vida humana já não tem valor para muitos dos que habitam no nosso planeta", esclarece. Da segunda, confessa sofrer um pouco. "A vida é de tal modo agressiva e violenta que se não nos resguardamos dessas agressões permanentes a resistência e a resposta adequada tornam-se praticamente impossíveis".
Dentro em breve, a AMI parte para novos rumos e novas missões. Em preparação está já a presença de médicos da organização portuguesa no Nepal e no Bangladesh. Em Moçambique, exceptuando o envio regular de medicamentos para os padres Maristas que estão a trabalhar no interior do país, não tem actualmente qualquer missão em curso. A AMI esteve durante quatro anos na província de Nampula e, durante o processo de transição moçambicana, a pedido das Nações Unidas, em três acantonamentos da Renamo, nas províncias de Sofala, Zambeze e Tete. Dadas as carências do interior do país não é, contudo, de excluir uma presença da AMI em Moçambique a curto ou médio prazo.
Cristina Casaleiro / Manuela Sousa Guerreiro |