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Contos-->A FISGADA -- 05/02/2004 - 13:58 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A FISGADA (*)


—Então, saímos às 7h?

—Talvez um pouco mais cedo. Fica pronto e me espera. Precisamos passar antes no Supermercado pra comprar algumas coisas.

— Olha lá, hein!

Parece diálogo de bêbado, mas não é. De pescador. Estava sendo marcada aí a saída para mais uma memorável pescaria no Araguaia. Daquelas demoradas: uma semana!

Essa conversa teria acontecido por volta das 17h de uma sexta-feira do ano de 1.98... e pouco. Dessa hora até à da partida seriam 14 horas de espera, ou melhor, de prelibação. Já escrevi em algum lugar (1) que a prelibação sem dúvida é melhor que o evento que lhe dá causa. A espera do aniversário, próprio ou de outrem, um baile, um encontro amoroso... Quase sempre o acontecimento em si, quando chega a hora, não se configura tão bom como se imaginava, antegozando-o. Com as preocupações e ansiedades dá-se o mesmo: Imaginamos o pior! Aliás, as previsões de grandes catástrofes, ou elas não acontecem, ou se acontecem, apresentam-se de forma minimizada. Vale o ditado popular de que “o bicho não é tão feio quanto parece”.

É isso que sempre acontecia comigo às vésperas de uma dessas pescarias. Já fazia anos que ia pescar lá pelas bandas do Araguaia. E sempre se verificava o mesmo: a curtição do preparo dos anzóis, das iscas, das varas de pescar e de toda a tralha pessoal e de trabalho! Sim, pescaria dá trabalho! Conversas intermináveis com os companheiros, preparando o caminho dos pesqueiros, as rodadas de canoa (2), as pindas (3), as caixas de gelo e cerveja, as latas de milho para iscas, os queijos e roscas etc. etc. Ah, que ansiedade gostosa! Saí do trabalho, sem antes haver recebido encomendas de peixe de cada colega, que, sem dúvida, me invejavam, e fui pra casa arrumar a tralha.

Naquele fim de tarde e noite dei os últimos retoques na mala de roupas e nas sacolas de apetrechos de pesca. Tudo em ordem. Quase não preguei olho. A madrugada não chegava nunca. Cinco da manhã já estava de pé, café tomado, malas, trouxas e sacolas em guarda na frente da porta à espera do sinal de partida. Às seis horas e pouco desço o carregamento pelo elevador de serviço, subo de novo e trago a indispensável caixa de isopor prenhe de latinhas geladas de cerveja, só para a viagem, que seria longa... Esqueci-me de beijar as crianças e a mulher... “Ora, na volta eu compenso!”, justifiquei. Sentei-me na mala de roupas e pus-me a esperar meu amigo, que já estava chegando.

***

O tal amigo a quem aguardava, meu companheiro desta e de tantas outras pescarias, não era nada mais nada menos que o Zé Afonso, apelidado Sansão, por causa de uma vasta cabeleira que cultivou durante um certo período da vida de nossa amizade. Outros o conheciam como Zé Foguete, em decorrência da agilidade com que transitava pelos lugares, ou talvez pela fugacidade em que permanecia neles, o que dá no mesmo: de manhã estava em um e à tardinha, em outro distante alguns milhares de quilômetros.

Não lhe declino o nome completo em homenagem ao respeito e carinho que lhe dedico e que pretendo preservar. Não que o que se vai ler seja depreciativo; pelo contrário. É que...

Zé Afonso é o cara mais dedicado, prestativo e competente que já conheci em todos os campos de minha experiência. Mas também, em compensação, cabra desligado e enrolado está ali! Nunca vi outro igual. Enrolação inocente, pura, sem malícia; mas muito enrolado! Basta dizer que, morando no Lago Norte, mantinha conta na Caixa da agência Aeroporto, distante mais de 20 km de sua casa. E o pão, o supermercado, a farmácia... é bom parar por aqui!

Há um episódio que bem comprova seu alheamento das coisas. Ponderei muito se deveria contá-lo. Mas vá lá! Uma de suas irmãs casou com um libanês e foi morar no Líbano. Tiveram um filho que veio depois a ser morto nos terríveis combates fratricidas ocorridos naquele país (4). Tamanho desgosto fê-los partir de volta ao Brasil, tendo lá residido durante muitos anos. O retorno se deu para Brasília, exatamente onde Zé Afonso morava. Ocorre que a troca de correspondência entre eles, devido à guerra, tinha sido interrompida muitos anos antes disso, o que resultou que nenhum dos dois sabia da permanência do outro na cidade. E assim se passou muito tempo... até que um dia, amigo comum, freqüentador dos botequins da cidade, localizou-os. Eram os donos de um dos bares onde se vendia cerveja geladinha e tira-gostos saborosos. Sem avisá-los, marcamos um encontro no bar. Depois de algum tempo, o amigo comum fez as devidas apresentações. Cena de cinema, ou melhor, de televisão então se desenrolou. Os irmãos ficaram o resto da noite abraçados, chorando...

Estive um tempo como chefe dele, mas era como se fosse ele o chefe. Os assuntos complicados deslindava-os rapidamente num trabalho limpo, conciso, claro e correto! Sempre achei que o funcionário quando é bom, é bom de roda, como se diz. É bom em tudo: a solução dada ao caso, a redação, a datilografia, tudo. Ninguém é bom só numa coisa, acredito. Zé Afonso era assim.

Em sua vida privada nunca me meti, embora fosse assíduo freqüentador de sua casa, onde passávamos muitas horas nos finais de semana churrasqueando, bebendo cerveja e fazendo música (ou barulho!). Zé era muito hospitaleiro e dominava as conversas com histórias e mais histórias. Umas emendadas às outras, quase sempre entremeadas num emaranhado de personagens e situações que, às vezes, dificultava o entendimento. Zé Afonso contava histórias como aquele personagem do Chico Anísio, o Pantaleão (5). Não sei se era coincidência, mas é mais provável que Chico Anísio o tenha copiado e não o contrário. A maneira de contar histórias do Zé é mais antiga que a do personagem da televisão. Há quem ateste isso.

Viajamos juntos a serviço inúmeras vezes, oportunidade em que pude conhecê-lo melhor e ouvir histórias e mais histórias passadas no Maranhão, no Piauí, Goiás, Mato Grosso e sabe-se lá onde mais!

Nas pescarias o tempo que se passa com o companheiro, em conversas intermináveis, é muito grande. É ali que se aprende a conhecer de verdade o amigo, a profundeza de seu caráter, a delicadeza de gestos simples que cativam para sempre! Tudo envolto numa atmosfera bucólica, lindamente revestida de sol, água e árvores e pássaros e peixes de toda sorte! Que maravilha!

— Deus não considera no livro da vida os dias em que passamos pescando - dizia ele.

— Deve ser porque o Seu próprio Filho era pescador – ajuntava eu.

Pena que Zé Afonso desapareceu de nosso convívio. Há cerca de 10 ou 15 anos mora em São Luis, seu estado natal. Pelas notícias que andei recebendo, parece que está bem.

***

O rio Araguaia, na época de seca na região Centro-Oeste (6), é o próprio paraíso. Geralmente muito caudaloso, pois, dada sua extensão, recebe águas de tributários importantes. Toda a malha fluvial que o compõe é bastante piscosa. Uma das causas é que os rios dessa região, plana, transbordam no período chuvoso, invadem campos, pastos e cerrados, quilômetros adentro, dando aos peixes condições favoráveis de procriação e formando nas partes baixas milhares de lagos de todos os tamanhos, que acabam, na vazante, represando tudo o que mora no rio. As águas inundadas, depois os lagos são o berçário dos pirarucus, pintados ou surubins, jacarés, tracajás, botos, traíras, tartarugas, tucunarés, piranhas, jaraquis e tantas outras espécies. Já o rio, além desses, tem população especial, destacando-se filhotes, pirararas, jaús, barbados, fidalgos, matrinchâs, dourados, douradas etc.

As margens do rio ostentam matas ciliares soberbas, levadas em parte pela correnteza em caso de grandes enchentes. Vêem-se por toda parte árvores secas, tombadas às margens do rio, praticamente dentro d´’água, com a copa seca, sem folhas, formando figuras de uma beleza estética impressionante. Ali se forma uma infinidade de ninhais de aves e pássaros de todas as espécies (ninhal aqui é usado no sentido de grande quantidade de ninhos de pássaros e aves e não no de revoada, como registram os dicionários). O Araguaia, nesse aspecto, é semelhante ao Pantanal de Mato Grosso: milhares de tuiuiús, quero-queros, garças, gaivotas, araras e outras aves de variegadas cores enfeitam e fazem as árvores curvarem-se em direção ao rio, como que a cumprimentá-lo, tantas são. De repente, um barco, um tiro ou um barulho desconhecido, produz uma revoada generalizada, embelezando o céu.

Por falar em céu, desde menino sou apaixonado por essa parte da natureza, em especial pelas nuvens “cumulus” que formam desenhos, castelos, gigantes, monstros, caras, caretas e figuras de todas as formas e tamanhos. Quando estão voltadas para o poente, então se colorem com as cores mais belas que natureza pode produzir. Nos finais de tarde, na minha terra natal, voltando de ônibus da escola distante, ficava petrificado observando pela janela a dança das figuras e das cores, segundo as voltas que o veículo dava. No Araguaia, porém, o pôr-do-sol é muitas, mas muitas vezes mais bonito. Como não há montanhas, o céu por inteiro se colore de todos os matizes, refletindo-se nas águas espelhadas do rio. Não há quem não reconheça a especialidade e raridade do espetáculo. Não se tira os olhos do céu. Quem viu não se esquece nunca!

O passeio de barco pelo rio ou seus lagos é notável, compensa a viagem e faz-nos às vezes esquecer da pescaria. Nessas horas, mais vale uma máquina fotográfica que um caniço. A canoa desliza calma e mansa pelas águas serenas, enquanto o espectador aprecia os milhares de tracajás e tartarugas acocorados, tomando sol, nos troncos das árvores deitadas nas beiradas do rio. Uma a uma pulam todas para dentro d’água quando o barco passa. Se já é noite, a população muda e nas margens do rio vê-se uma cidade inteira iluminada; milhares de pontos de luz refletindo os raios das lanternas ou faróis nos olhos dos jacarés. É outro espetáculo inédito, do qual não se tem notícia em outros lugares.

As matas ciliares, que como já se disse são densas e fechadas, escondem uma fauna grandiosa: pacas, capivaras, sucuris, onças, lobos, macacos, jacarés e até antas gigantescas. Há quem atira neles. O crime se afigura hediondo, quando se fere uma anta, que, quase sempre não morre com um tiro só e, malferida, pula n’água rapidamente, e vai esvair-se em sangue muitas léguas adiante. Qual seria o proveito do atirador? Se se consegue matá-la com um tiro certeiro, mortal, que fazer do corpo pesado de cerca de 200 quilos? É como diz o ditado: rouba (mata), mas não pode carregar!

A extensa região cortada pelos rios da malha fluvial do Araguaia é constituída pelo cristalino, uma das terras mais antigas do planeta, onde o componente areia é expressivo. Na vazante das águas, a partir de abril, o rio vai depositando enormes bancos de areia no centro ou nas margens, formando praias maravilhosas, de areia branca, branca. Ali se fazem barracas de troncos que o rio traz das terras caídas das margens, cobertas com palha de palmeira abundante na área.

Todos os anos essas praias mudam de forma e de lugar, mas cada vez mais bonitas. Os ribeirinhos sabem onde se vão formar e, bem antes de aparecerem, fincam na areia ainda dentro da água placa indicativa da reserva feita por alguém. Não há regras, salvo a de que a praia ou o pedaço dela está reservado a quem colocar a placa primeiro. Não tenho notícias de sabotagem nessa convenção, mas certamente deve ter ocorrido muito disso. Tenho uma fotografia de uma dessas placas, onde se lê, em letras sem escola: “Praia rezervada pra Afonso”. Claro, era dele a reserva e naquela época, em que não havia celulares e os telefones, raridade, a ordem a partir de Brasília era dada via Radio Nacional em mensagem dirigida ao Bispo de São José do Bandeirante, que a repassava a um pirangueiro já conhecido, autor da placa.

É nessas praias o lugar preferido das tartarugas e tracajás para desovarem. Durante a noite, arrastam-se cerca de 20 a 50 m praia adentro, cavam fosso profundo e ali depositam seus ovos, quase uma centena de uma só vez. E vão embora, dissimulando o local fazendo círculos com as patas, num disfarce ingênuo próprio dos quelônios. Dizem que ovos de tartaruga e tracajá são afrodisíacos, estimulantes, excelentes para a saúde. Os nativos da região crêem nisso e deles fazem uma farofa amarelada, de sabor específico e aspecto arenoso. Se não se cuida, não sobra um ovo para preservar a memória da raça.

Numa dessa pescarias, meus irmãos foram também e nosso trabalho era levantar mais cedo que os predadores e íamos apagar os disfarces inúteis feitos pelos animais. Com isso, conseguimos salvar algumas gerações de tartarugas e tracajás, sem termos pensado nas chatices ecológicas, que nunca nos motivaram. Penso que a consciência ecológica é importante, mas o ecologista militante é um chato. Suas intervenções muitas vezes desestruturam a cadeia alimentar da bicharada: exemplos disso são a superpopulação de pacas e capivaras, que estão dizimando as plantações no sul do país, a dos jacarés no Pantanal, dos patos e outros bichos. Consta que, numa região do Brasil, a população acabou com os sapos, rãs e pererecas, comendo tudo. Não se tratou aqui de birra ecológica, mas de uma mania que assolou o país alguns anos atrás. Tiveram depois que importar uma boa quantidade desses batráquios para controlar a praga dos mosquitos e outros insetos que invadiram a área, livre de seus predadores naturais.

O rio tem uma vida exuberante. Apesar da calma, de vez em quando se ouve a batida de um peixe grande dando rabanadas na água, perseguindo a comida ou fugindo de outro predador. A respiração do boto, o marulho das águas... O observador atento constata que a cadeia alimentar, tão falada pelos cientistas, existe e funciona mesmo. As margens do rio estão repletas de colônias de alevinos, com milhares ou milhões de indivíduos, de todas as espécies de peixe, sobretudo de lambaris, pescada, piaus, piabas e dos outros, os quais afinal nascem por ali mesmo e, enquanto crescem, vão ficando, por segurança. De quando em quando ocorre uma revoada. É revoada sim, pois os alevinos saltam para o ar a fim de escapar da boca mortífera de uma piranha ou outro predador, caindo depois n’água numa chuva de prata. Logo atrás vem uma tubarana que come a piranha. Em seguida um filhote ou dourado engole a tubarana. E assim sucessivamente, o maior comendo o menor, até que chega o boto e abocanha a todos.

***

Nessa pescaria em que meus irmãos foram, a caravana foi bem grande: umas 20 pessoas. Tínhamos que dividir o pessoal pelas canoas disponíveis. A organização ficou capenga. Também pudera, tinha sido feita pelo Zé Afonso, que, como disse antes, era enrolado!

Entre os “pescadores” havia um colega de trabalho que se auto convidara a integrar a caravana. Funcionário graduado, não se pôde indeferir sua pretensão. No acampamento, logo ao chegar, perguntou sem se dirigir a um interlocutor específico:

— Onde é que tem água por aqui?

— Aquele negócio que corre ali não é petróleo não, seu moço! – respondeu-lhe o cozinheiro, um tal apelidado Boca de Caçapa, mostrando-lhe o rio distante a apenas 15 m de onde estávamos, cuja largura, naquele lugar, passava dos 200 m.

Esse cidadão, antipático, chato e pernóstico, ficou conhecido por Bode Cheiroso, por causa do repelente exageradamente perfumado que usava e recendia por toda a barraca espalhado pelo vento. Se alguém ligava o motor de qualquer canoa, imediatamente ele se aboletava, tomando o lugar de outrem. Fora disso, ficava o tempo todo deitado em uma rede armada exatamente na passagem entre a cozinha e o resto da barraca, incomodando a todos, num nheco-nheco incessante chatíssimo. Em três dias, lavando o rosto e escovando os dentes, consumiu toda a água mineral que havíamos levado para beber e cozinhar. Em suma...

***

Meus irmãos não pescavam. Gostavam mesmo era do passeio, observando tudo: ora defendiam os ninhos das tartarugas, ora desbravavam lagos até então desconhecidos por nós. Numa dessas aventuras, um jacaré grande correu atrás de um deles. Um susto!

As pescarias nos lagos eram feitas à noite, se quiséssemos capturar algum pirarucu. A pescaria desse peixe é especial: passa-se a linha por trás de uma vareta próxima à água com uma latinha vazia na ponta, deixando-se uma quantidade boa de linha entre a vareta e a mão do pescador. O peixe não abocanha a isca de uma só vez; apenas a segura com a boca, mamando-a; em seguida arrasta-a vários metros e só depois de constatar que se trata realmente de comida, engole a isca. O arrasto da linha faz com que a latinha chacoalhe enquanto o peixe se move e dá tempo de fisgarmos a fera. Trava-se então uma luta feroz entre o homem e o peixe, que pode durar várias horas. O animal já cansado é arrastado para fora d’água e é morto a pauladas. Pode-se pescá-lo também de arpão, mas durante o dia. O processo é cansá-lo até colocar sua cabeça próxima à canoa, quando uma paulada certeira termina a batalha. Pobre peixe, quase sempre perde! Estão criando agora pirarucu em cativeiro, em lagos artificiais, pois os da natureza estão acabando. A carne não é tão boa...

A pesca da tartaruga, proibida, mas muito praticada, é feita também nos lagos e se usa uma técnica igualmente especial: a isca, colocada uns dois metros abaixo da flor d’água, é feita de banana, presa por uma linha fina a uma pequena bóia. Quando as águas do lago estão calmas, sem banzeiro (7), soltam-se dezenas delas e aguarda-se, com paciência: as que afundam possivelmente capturaram tartaruga. É só puxá-la para cima com cuidado. As que conseguem escapar certamente morrerão, pois o animal engole o anzol, sendo-lhe fatal.

***

Numa tarde, dividimos os pescadores em duas turmas: uma iria armar as pindas nas margens do rio; outra iria a um lago próximo, onde, segundo alguns pescadores de outros acampamentos, havia muitos pirarucus e o lago estava sarado (8). Partimos todos. Um dos meus irmãos seguiu na metade responsável pelas pindas e eu integrei a equipe do lago.

Separadas por cerca de dois quilômetros uma equipe da outra, vimos quando alguém da canoa das pindas caíra n’água. A coisa não nos pareceu normal. Ligamos o motor e voltamos depressa. Meu irmão havia sido fisgado por um grande anzol de pinda que lhe atravessou a mão. O canoeiro, inexperiente ou afobado, não conseguiu manter a canoa próxima à amarração do anzol. A correnteza era forte, de forma que o fisgado teve que pular no rio, com a mão ensangüentada, num local coalhado de piranhas. O fato se deu porque a canoa, ao afastar-se, retesou demasiadamente a linha do anzol que estava sendo indevidamente segurada por todos. Ao largarem a linha, meu irmão, o último da fila, não teve tempo de soltá-la sendo fisgado. Sua luta contra a correnteza, com uma só das mãos, estando a outra prestes a rasgar-se, foi terrível. Houve realmente sério risco de vida. Por fim, cortaram a linha e o içaram pra canoa. O anzol teve que ser serrado e o ferimento inspirava cuidados. Nossa pescaria acabou ali, perdendo a graça por completo.

Esse irmão nunca mais voltou ao Araguaia!

***

Volto ao início desta história: sentado na mala de roupas, vigiando o resto da tralha, todas essas cenas me vieram à mente, enquanto aguardava o meu amigo Zé Afonso, naquele sábado de manhã do ano de 1.98.... e pouco.

Na segunda-feira seguinte, ou seja, dois dias depois, entro na repartição para o espanto geral:

—Ué, você por aqui? E a pescaria? – perguntaram todos.

—É, respondi, o Sansão não apareceu. Esperei-o das 6h e pouco até às 11h.

Já se passaram mais de vinte anos desde aquela fatídica manhã e até hoje não fiquei sabendo o real motivo de ele me ter dado tão grande “bolo”.

Brasília,
janeiro/2002


(*) Escrevi esta história numa homenagem ao rio Araguaia e ao meu inesquecível amigo, José Afonso, que parece não ter gostado dela (da homenagem ou da história?).

(1) “Morro do Forno”, do livro “Histórias de um Exilado”, no prelo, do autor.

(2) Pesca de canoa, em que se desce o rio, ao sabor da correnteza, usando-se uma pequena cabaça ou bóia para manter-se o anzol a cerca de 2 m de profundidade.

(3) Anzol de espera, geralmente amarrado em galhos de árvores flexíveis à flor d’água.

(4) Duraram 15 anos, consumindo a vida de milhares de pessoas.

(5) A diferença é que Pantaleão era mentiroso, exagerado, irritando-se com as pessoas que não acreditavam em suas histórias.

(6) Maio a outubro.

(7) Marolas ou ondas formadas pelo vento.

(8) Intacto, ou seja, ninguém pescara ali após a última enchente, de forma que os peixes represados estavam todos lá.









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