Diz a sabedoria popular que "às três é de vez", e embora não costume dedicar atenção a provérbios, ao iniciar esta introdução veio-me de repente à ideia que por volta dos meus 16 anos rascunhei uma novela ("Funny") e já mais maduro, talvez com 27, uma outra ("Espelho"). Nenhuma delas cheguei a publicar, daí a razão de evocar o desgastado aforismo, a fazer-me considerar que "nunca digas desta água não beberei".
Quando escrevi o primeiro capítulo de "Farrapos da Vida", era minha intenção levar o Ismael a correr mundo; desembarcá-lo no aeroporto de Bissalanca e deixá-lo à aventura pelos alagados chãos da Guiné, de Buruntuma a Campeane e do Cacheu a Caconda. Depois de ter bebido a água do Pigiguiti — que não deixa esquecer aquele sofrido país a quem por lá passa — seguiria a rota das Américas, para o fabuloso Brasil, não sem passar uma temporada na feiticeira Angola, a conhecer as areias escaldantes da Ilha de Luanda ou as temperadas praias do Namibe, e as suas incomensuráveis riquezas por entre as diamantíferas terras da Lunda e as plataformas petrolíferas de Cabinda. Acontece que a intenção deixou-se submergir pela pacificidade do personagem e arrastar para as águas serenas do seu torrão. Valeu-lhe a "despromoção" de primeira figura, por troca com o Alexandre, e ao autor a oportunidade de prestar a sua humilde homenagem ao extraordinário povo transmontano, que aprendeu a admirar, pela erudição, de muitos, e, principalmente, pelos dotes de dignidade, desafectação e labor, de todos.
A pequena cidade de Nogueira era, porém, pacata em demasia para ali enquadrar-se uma ficção envolvida em certo mistério e aventura, mas com a fronteira a seus pés alargou-se o horizonte e foi-se desenvolvendo o enredo, deixando ao sabor dos personagens as atitudes e as decisões, inseridas no "modus vivendi" a si atribuído. O leitor contudo, minhoto, alentejano, beirão ou algarvio, concluirá que, adormecidas na sua mente, encontrará muitas reminiscências semelhantes ao imaginário vivido no romance ou experimentá-las-á agora, se ainda, por exemplo, estiver em altura de caçar gambozinos. Isso obrigou à inclusão de alguns "lugares comuns", propositadamente.
Nogueira é um topónimo de cidade inexistente e a história é toda ela ficcional, desde os nomes dos personagens a todo o corpo da narração, sendo portanto mera coincidência quaisquer factos que se possam confundir com a vida real.
Resta-me acrescentar a razão do título. Havia outros e foi por ventura o acto de mais difícil decisão. De cerca de 15, acabei com apenas 2; o escolhido e "O Solar do Desembargador". Ambos se identificam com o contexto do livro, mas pelo conhecimento que vamos adquirindo da privacidade de cada um dos personagens, acho serem os pedaços das suas vidas que sobressaem do emaranhado global.
|