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Contos-->H.I.V. -- 20/01/2004 - 23:39 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
I
O grito de Maria da Glória transpôs as paredes frágeis do barraco e ecoou sobre as cercas dos quintais vizinhos e ao ouvi-lo, os quatro irmãos correram imediatamente para casa. Um ritual diário das tardes.
_A Mãe tá subindo. Entra todo o mundo!
Da janela ela avistava Dona Lurdes escalando o morro pela estreita e sinuosa trilha de terra batida, cercada pelo matagal. Vinha cansada, carregando sacolas, parando vez em quando para suspirar, com destino ao lar. Glória, doze anos, era a filha mais velha, que tinha nas costas a árdua responsabilidade de zelar pela casa e pelos menores, outra menina e três garotos, o caçula de apenas três anos. Sabia e compreendia que a mãe não podia chegar de bom humor, já que a labuta em casa de família, do que ela própria já tivera alguma experiência, era algo que rendia grandes desgastes. E o que Lurdes mais detestava era encontrar os filhos enfurnados nas casas dos vizinhos. A menina cumpria bem o seu dever, cuidando para que a casa estivesse em ordem, limpa e com a janta bem adiantada. Dessa forma, aquela mulher, com seus trinta e sete anos de puro trabalho, solitária ao lado de seus cinco filhos, desprovida de lazer e de mínima vaidade, poderia pelo menos ter o sacrifício da luta doméstica minimizado e conseguir dormir mais cedo, na companhia de um velho televisor, para então acordar mais revigorada no dia seguinte e começar tudo de novo. Glorinha tinha consciência do seu sacrifício e se esforçava, com um bom débito nas diversões próprias de sua idade e nos estudos sem nenhum progresso, para compartilhar com a difícil lida de sua mãe.

Quem via aquela menina bem disposta, alegre, ágil e responsável, tinha por ela uma justificada admiração. Os cuidados com os irmãos não se limitavam aos afazeres mais sérios. Ela criava e participava das brincadeiras. Gostava de fazer teatrinhos, danças, cantorias e imitações, tudo aos moldes dos programas de televisão, sua maior janela para o mundo. Era uma mulatinha magra, com fitas coloridas prendendo a carapinha, como coloridas eram sempre as suas vestes simples e resumidas. Não obstante, a alegria aparente dissimulava um espírito entristecido, um astral que não era dos melhores em função da vida difícil e cheia de privações, da qual em nada se diferenciava da dos outros jovens e adolescentes daquela comunidade. Vê-los a dar risadas, pulando, dançando e jogando bola ou soltando pipas nas favelas, com bom proveito do espaço que lá tem, não é razão para concluir que estejam em perfeito casamento com a felicidade. E nem pode ser diferente porque afinal vivemos todos de esperança, acordamos em todas manhãs com a intenção de vivermos um dia melhor. Uma criança de favela aprende muito cedo que esperança é sinônimo de utopia. Sonham, é claro. Pois sonhar é uma forma de sobreviver, de se manter lúcido. Mas o limite entre o sonho e a esperança é bem marcado embora se procure, como auto defesa confundi-los. Glorinha observava pela janela do “chateau” a vista maravilhosa do mar, sua orla movimentada riscada pelos automóveis, as coberturas dos prédios pontilhadas de piscinas verdes e todo aquele povo bem vestido e seus olhos tristes revelavam o óbvio que era a noção de que estava a muitas léguas de distância no tempo e no espaço de toda aquela fonte de prazer. Como ela, uma multidão de crianças postam-se da mesma maneira nos peitoris de milhões de janelas desse país. Os olhos tristes, a certeza da rejeição, o desprezo que vem de retorno, oriundo de uma mentalidade equivocada em que ingenuamente se julga que crianças pobres são biologicamente diferentes das ricas e que não aspiram, não tem desejos pelo que é bonito, gostoso, confortável e bom. Se o olhar melancólico revela toda essa decepção, sempre de modo sutil e bem disfarçado, que ninguém ouse tentar decifrar o que se passa no âmago, bem no fundo daqueles corações e mentes porque é melhor não conhecer.

II
Uma menina de doze anos tem o despertar para a sexualidade de maneira bem mais discreta e gradual do que os adolescentes do sexo masculino. A percepção, pois, das mudanças do corpo e dos sentimentos e sensações é mais lenta e demorada. Tal percepção se associa sempre à observação simultânea por parte dos rapazes e dos homens cujo faro já começa a deslocar-se em sua direção. Glória procurava evitar a aproximação mais intensiva dos rapazotes. Ela tinha suas preferências, mas ainda não alimentava grandes atrações. Os vizinhos em nada se pareciam com aqueles ídolos brancos e vistosos da tela da televisão. Por outro lado, guardava muito bem as recomendações de sua mãe acerca dos perigos de um contato mais íntimo, bem como as de alguns parentes e vizinhos que insistiam com discursos religiosos oriundos das igrejas. Já haviam ocorrido beijos e tentativas de toques mais abusados dos quais ela havia escapado correndo pelas vielas e evitando sempre locais e malocas ermos dos cortiços. Alguns nem demonstravam disposição para algum preparo, chegando até a descer a bermuda e exibir os genitais numa tentativa de uma relação imediata e depois ficavam rindo da carreira da menina e dos seus impropérios de riquíssimo vocabulário. Glorinha não tinha pressa e não se entusiasmava nem quando em prosas com as amigas mais velhas. Pelo contrário, via em muitas delas o retrato dos inconvenientes de uma barriga ou de uma criança no colo para alimentar e tratar. Mas esse era um assunto que era sempre levado com diversão, rindo e provocando gargalhadas mesmo quando dos relatos de seus apuros pelos becos do morro.

III
Mas a alegria da menina desaparecia naquelas horas de solidão, de encontro consigo mesma, principalmente à noite, quando sob o ressonar de sua mãe, ia providenciar o desligamento do televisor. Depois de um dia de muito trabalho, uma retrospectiva do que lucrara e uma perspectiva do dia seguinte não lhe brindavam nenhuma animação.
Olhava penalizada o rosto da mãe e via nela seu reflexo. Lurdes tivera apenas um relacionamento duradouro, do qual vieram o segundo e o terceiro filhos. Enviuvara e dos outros relacionamentos, sempre efêmeros, engravidara mais duas vezes. A partir do último bebê, resolvera que não teria mais namorados e de fato tornou-se assexuada, investindo seu tempo unicamente no trabalho e no sustento do lar. E assim, Glorinha não tinha no que se espelhar, nem muito apetite para fantasias, muito menos as amorosas. Na escola ficava marcando passo, faltava às aulas e repetia sempre. Não havia vigor, disposição física ou mental, nem motivação para se dedicar aos estudos. E vivia a sua vidinha sem muita noção do que adviria, cumprindo mecanicamente as tarefas diárias e procurando divertir-se com os irmãos menores e com as outras crianças da favela. Havia uma resposta dúbia em relação aos olhares maldosos dos homens. Digo, os homens de fato, não os adolescentes. Um vizinho de uns quarenta anos, gordo e branquelo, sempre sem as camisas olhava-a constantemente com um modo significativamente perturbador. Assim também eram alguns comerciantes das proximidades bem como alguns visitantes eventuais que no morro apareciam para serviços da prefeitura ou outros parecidos. Não era um olhar simpático, sedutor e nem um pouco agradável. Era um jeito tenebroso, sério demais e que revelava uma maldade e uma sede doentia e animalesca por um contato sexual sabidamente profano e condenável. A menina se confundia com a resposta íntima àqueles olhares. A repulsa era óbvia mas por outro lado, um instinto biológico que mal ensaiava aliado a uma curiosidade gerada pela própria inexperiência criava uma ambigüidade difícil para ser entendida por uma cabecinha tão novata.
Mas de todos aqueles homens, o mais ousado era o dono do mini mercado. Um homem de uns cinqüenta anos, forte e mal encarado e que não se limitava aos olhares, chegando a fazer cochichos indecorosos e que por duas vezes, usando de artifícios, atraiu a menina para um dos corredores desertos da venda e tentou amassá-la e levantar sua saia, só não logrando sucesso em virtude da chegada inesperada de alguns fregueses. Seu Juarez levava uma vantagem. É que já havia percebido a atração que a criança tinha por um conjuntinho composto por um macaquinho de “jeans” e uma blusa cor de rosa que ficava à mostra numa das prateleiras. E haveria de se servir daquilo para objetivar a sua conquista.

IV
A pequena Glória evitava passar pela venda do Seu Juarez, para não ter que sofrer do constrangimento habitual. Entretanto, alguma coisa a impulsionava além do interesse óbvio pelo conjunto de roupas. Uma curiosidade ou um chamado da esfera sexual, coisa que ela mal conhecia. Talvez uma necessidade de fugir da rotina. O homem era rude, mas não o bastante para lhe causar repugnância. Vestia-se razoavelmente bem, era limpo e até perfumado. Era considerado pela população feminina do lugar que lhe conferia até mesmo atributos de homem charmoso. Tinha até um porte atlético e um bigode agressivo que provocavam comentários elogiosos por parte de algumas moças. E nesse balanço de sentimentos, a garota vinha vivendo até que um dia, a gangorra pendendo pela curiosidade e ousadia, e à coincidência da necessidade de ter que fazer compras foi lá e ficou frente a frente com o assediador que, astuto, percebeu a suscetibilidade da presa. Atendeu-a e, no final, pediu para que esperasse e trouxe até o balcão o cabide com o objeto desejado, exibiu-o e sussurrou, olhando profundamente nos olhos:
_Pode ser seu se quiser.
A menina não respondeu, apenas dispensou a habitual rispidez, como num sinal de boa vontade. E, à tarde, no final do dia, no momento em que Juarez fechava as portas, passou por lá vagarosamente, disfarçando e esperou até o momento em que, rua deserta, ele puxou-a para dentro.

Lá ela acompanhou-o até o fundo da loja, parou diante dele com o coração às carreiras, fitou-o envergonhada e empedrou-se passiva com a respiração ofegante. O homem não cumpriu com a mesma solenidade, agindo de modo habitual, como num ritual antigo e comum. Puxou-a junto a si, apressadamente, beijando-a e despindo-a, quase arrancando suas roupas e foi se servindo dela como quem se lambuza com um pernil de porco. Nenhuma palavra, nenhum gesto carinhoso, apenas a fúria de um garanhão. E ela suportando conformada. Afinal estava ali porque assim o decidira. Enojada, com medo, cheia de dores. Queria apenas que terminasse logo. O orgasmo do homem a assustou. Chegou a pensar que ele estava passando mal. Depois, vendo-o afastar-se segurando as calças, ficou ali parada, sem saber se ainda haveria mais alguma coisa, até que Juarez indicou-lhe o banheiro. Vendo-a perturbada e atrapalhada com o sangue que lhe escorria, passou-lhe um absorvente e lhe deu uma calcinha que tirara de uma das gavetas. Um presente a mais além do conjunto prometido. Disse-lhe apenas, referindo-se ao sangramento, que aquilo era assim mesmo na primeira vez. Em casa, após banhar-se, esperou pela mãe, pedindo a Deus que ela nada notasse. Ainda não havia nada arquitetado para explicar a conquista da roupa. Mais tarde acabaria por engendrar qualquer coisa e convencer com uma história diferente. Dona Lurdes, exausta, não se aprofundou nos questionamentos, ficando-lhe apenas uma ponta de dúvida, uma vez que, experiente, velha conhecedora das mazelas da favela e da vida das adolescentes, já vinha fazendo algumas previsões infelizes sobre a vida de sua filha moça. Glorinha não conseguiu dormir naquela noite. As cenas ficavam se repetindo na sua mente. Apenas se perguntava:
_É isso o que dizem que é tão bom?

V
Dali por diante a rotina da garota teve um acréscimo. Não revelou a ninguém sua experiência. Nem às colegas. Vez por outra, um novo encontro com Juarez se repetia. Eventualmente um pequeno e novo presente acontecia. O malandro, agora, não dispensava a camisinha, pois sabia que abrira uma porta e que outros poderiam também se servir daquilo que começara. Embora não houvesse sido uma vivência agradável, Glória se prendia a ele devido a uma certa inquietação, uma necessidade de digerir melhor aquele acontecimento que em tudo lhe decepcionara. Sentia-se também mais solitária, menos afeita às reuniões com a meninada de sua idade e a companhia do homem, ainda que pobre em diálogos, era o refúgio de que se servia. Mas, aos poucos ele foi se afastando, evitando-a quase sempre. E não demorou muito para outro ocupar o seu lugar. E depois outro. E assim por diante. A promiscuidade foi crescendo como o fogo no mato seco. Dona Lurdes apenas notava uma certa diferença na filha, mas adiava um diálogo mais sério. Até que o inevitável aconteceu. A barriga. Estava agora ali defronte à mãe aborrecidíssima com a novidade. Como poderia alguém esperar daquela mulher que vivia em estado de exaustão, uma vida de semi-escravidão, uma tolerância com aquela situação? Dona Lurdes sentia-se traída, pois afinal lutava para trazer comida e conforto para o lar e agora aquela menina trazia, irresponsável, mais uma boca para alimentar. O couro comeu e a conversa culminou com a porta do barraco sendo apontada.

A gestação atrapalhava Glorinha de arrumar trabalho. Conseguiu apenas alguns dias de moradia em regime de semi-escravidão em casas de famílias de senhoras oportunistas. Um velho viuvo da vizinhança explorou sua situação acolhendo-a, com a condição, entretanto que lhe servisse como doméstica e amante. O parto ocorreu então. Pouco tempo depois, o homem cansou-se e pediu para que saísse de casa. Uma velha e conhecida senhora inconformada com aquela menina e seu rebento no meio da rua, levou-a para casa. Ajudou-a, alimentou e cuidou da criança enquanto a Glória procurava trabalho. Nesse tempo, a guria trabalhou como lavadeira, empregada doméstica e faxineira. Um ano se passou e Dona Lurdes teve com ela e demonstrou reconsiderar. Glória voltou para casa. Já não era a mesma menina. Nem se parecia uma menina. Tinha traços e jeito de uma adulta. Cansada, mal alimentada, abatida. Os cuidados da casa estavam agora com a outra irmã. Mãe e filha trabalhavam fora e viviam em relativa harmonia. Não tardou, porém, para que a adolescente, agora com quatorze anos voltasse a ter seus encontros. Dona Lurdes se inquietou. Via claramente repetirem-se os passos com que se atrapalhara a menina. Mostrava-se incomodada, mas como exigir celibato de uma jovem mulher? Brigava e condenava cada saída da menina. Aborrecida, Glorinha resolveu sair de casa novamente. Teve a sorte de a mãe exigir que deixasse a criança. Mas, para onde ir? A resposta chegou no convite de uma prostituta a par de suas dificuldades. Foi morar e trabalhar no bordel sujo da subida do morro.

VI
Aquela função, para ela, não seria tão difícil, pois já se acostumara com a troca de tantos parceiros. Já era experiente. O que não significava não ser uma vida ruim. Glória, agora, continuava, em maior proporção, porém, do mesmo jeito quando menina, ou seja, aparentemente alegre, mas um íntimo de grande tristeza. Anos se passaram, mudanças apenas de local, o mesmo tipo de vida. Os lucros não eram suficientes. Haviam fases difíceis. Teve um período em que engravidara novamente. Teve que afastar-se por um tempo. Alternava aquele tipo de trabalho com outro menos informal, em casa de família, em faxinas, supermercados, etc.. A mãe não perdeu contato. Dona Lurdes sofria com a hipertensão e em momentos de crise, Glorinha, avisada, fazia-lhe companhia nos pronto-socorros. A nova criança alternava creches com os cuidados da avó e dos tios. Glória ganhou a vida adulta naquela vivência. Uma prostituta de carteirinha, virando-se como podia. Não juntou nem um tostão. Divertia-se pouco, não tinha nem um parceiro fixo. Pensava nos filhos com freqüência e neles concentrava seus sonhos e projetos. Os cuidados com a saúde eram precários. Cuidava mal e com raridade das complicações ginecológicas que lhe acarretava aquela prática. Corrimentos vaginais e dores abdominais persistentes com episódios de agudização eram um sofrimento que contornava com métodos paliativos e ao qual ela procurava se acostumar.

Os anos se passaram. Maria da Glória aos trinta anos era então uma mulher da favela que ganhava a vida na prostituição e fazendo pequenos bicos. Os filhos estudavam e trabalhavam e se dividiam entre a mãe e a avó. Lurdes já não conseguia trabalhar fora por causa da doença que não lhe permitia esforços físicos. Vivia de uma minguada aposentadoria. Mas contava com a ajuda dos filhos, incluindo os irmãos de Glória que trabalhavam modestamente e escaparam do assédio das drogas e do crime. Glória tinha como projetos a construção de uma pequena casinha no morro e a compra de uma máquina de costuras para poder sair da vida de meretriz. Para isso mantinha um pequeno “pé de meia”.
Cautelosa, não tinha parceiro fixo. Seu propósito era o de viver honradamente em sua casinha com seus filhos.
Mas percebia uma certa debilidade na saúde. Vez por outra era acometida por uma febre rebelde. Havia dias em que, de tão fraca, mal conseguia levantar-se da cama. Era costumeiro um suor profuso. Tinha dores musculares e outros sintomas mal definidos. E, além do mais, sofria de sangramento vaginal irregular. Resolveu fazer uma consulta ao ginecologista, procurando um ambulatório de melhor atendimento do que aquele em que estava acostumada a freqüentar. Após o exame e a colheita de material para o preventivo o médico lhe avisou que tinha mioma. Todos aqueles sintomas talvez estivessem associados à anemia de que sofria em virtude da perda sangüínea provocada pelo mioma. Uma histerectomia resolveria. E assim foi feito. Após os exames pre-operatórios e um período de internação prévio para corrigir a anemia, Glorinha foi submetida à cirurgia. Tudo correu bem.

Recebeu alta dois dias após e foi para casa da mãe para a recuperação. Três dias depois começou a ter dores no local da cirurgia que inchou e iniciou com o vasamento de uma secreção com um odor insuportável.
_Infecção hospitalar!
Disseram as vizinhas. E retornou Glória ao hospital. Os médicos a reinternaram com o diagnóstico de uma infecção grave pós-operatória. Ministrado o tratamento, houve uma melhora relativa. Entretanto foi estranhada a ocorrência daquele tipo de infecção num hospital onde o índice de infecção hospitalar era quase zero. Os médicos estranharam também a lenta recuperação da paciente e pensaram na hipótese de uma acentuada queda no seu sistema imunitário. Não era praxe a solicitação do exame para HIV como rotina pré-operatória naquela época. Desconhecia-se também a prática de prostituição por parte daquela cliente. Foi realizado então aquele exame com o consentimento de Glória e para tristeza de todos, feito o diagnóstico de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA), ou AIDS, como querem os americanos. Glória foi encaminhada para um serviço especializado. Suas irmãs foram comunicadas mas todos preferiram esconder da mãe aquele resultado, com receio de uma piora na saúde já abalada de Dona Lurdes. Entretanto, a partir dali, Glória, não obstante o tratamento, foi sofrendo de uma piora acentuada do quadro clínico. A fraqueza era intensa. O ar lhe faltava. Uma diarréia persistente não lhe poupava. Não se alimentava bem e emagrecia dia a dia. Apresentava dificuldades motoras, já não conseguia caminhar e às vezes delirava. Glória não era só uma portadora do HIV, mas uma doente em fase adiantada.

Dona Lurdes, desconhecendo a natureza da doença, não aceitou o fato de os médicos lhe darem alta e parecerem se acomodar, como se estivesse ela desenganada. Não podia entender como uma mulher nos seus poucos trinta anos estivesse tão doente assim. Entendeu como negligência, como a costumeira falha no serviço publico de assistência à saúde. Sofria muito vendo sua filha padecendo daquele jeito. Não se conformava e resolveu agir. Procurou um conhecido médico de sua ex-patroa, um clínico geral de quem muito apreciava pelo esmero com que assistia a senhora. Bateu à sua porta e ao ser atendido, exibiu um pequeno volume envolvido por um saco plástico e lhe disse:
_Doutor. Eu vim aqui para pedir que o senhor tenha a caridade de tratar da minha filha Glória. Ela está sofrendo muito e não está sendo bem atendida. Só o senhor pode tirar ela daquela situação. Eu trouxe aqui um dinheirinho que eu economizei. Por enquanto eu só tenho esses oitenta e seis reais, mas já arrumei um comprador para a televisão e prum liqüidificador e no mais tardar depois de amanhã eu lhe trago o resto. Mais do que isso só Deus vai haver de recompensar o senhor. Abriu então o saco plástico e esticou o bolo desorganizado de notas amassadas, uma de cinqüenta reais, uma de dez, várias de um real e algumas moedinhas. A voz embargada, as palavras emocionadas, um ar compenetrado de seriedade revelando uma imensa preocupação e sofrimento. O médico olhou para aquele dinheiro seguro por aquelas mãos negras e calejadas, mediu a angústia daquela senhora no seu jeito simples e desafortunado. Teve a impressão de que nunca tinha visto tanto valor como naquelas notas. Aquele dinheiro contadinho, quanta dificuldade tivera para juntar. Numericamente não lhe pagaria nem a metade da consulta que costumava cobrar. Mas lhe parecia uma imensa fortuna ao se calcular, dentro da relatividade, o quanto custara para aquela mulher humilde que se apresentava disposta a contribuir com a sua própria vida para salvar a filha. Aquelas notas e moedas era tudo o que ela possuía e ainda se dispunha de vender o que julgava de mais valioso que tinha em sua casa. O médico já sabia da doença de Glória. A cliente, patroa de Lurdes já havia comentado. E foi então abatido de uma enorme tristeza, uma grande frustração que era a de não poder atender aquele pedido. Maldita era aquela sua profissão incapaz de curar. Maldita aquela doença que surgira não se sabia como, não se sabia de onde e que matava tão impiedosamente. Se algum falso moralista viesse com algum discurso sobre castigos contra a falta de castidade, que pensasse então nas crianças e mulheres inocentes que se contaminaram sem qualquer culpa. O médico ali parado, condoído e comovido, sem saber o que fazer e o que dizer, limitou-se a fazer um carinho no rosto de Lurdes, pedir para que guardasse o dinheiro e que aguardasse, pois iria se trocar e ir com ela ao Hospital. Lá chegando, conversou com a equipe, solicitou uma ambulância e trouxe de volta Glória à internação. Ao chegar, Glória já agonizava. Chamou Dona Lurdes a um canto e lhe revelou toda a verdade. Ela foi ao leito da filha, abraçou-a em prantos, acariciou-a como a um bebê, deitou-se ao seu lado no leito e a trouxe para aconchega-la como se quisesse amamenta-la. Como compreender aquela menina que nascera com tanto vigor, adoecer daquele jeito, terminar seus dias com tão pouco tempo de vida e uma vida sem alegrias, sem realizações, só de trabalho, dor e humilhação? Percebeu o último suspiro de Glória e olhando para o céu, pediu a Deus para que a acolhesse e perdoasse a sua indignação. Médicos e enfermeiros, acostumados ao sofrimento, fizeram então uma pequena pausa par dedicar um pouco de sua piedade àquela pobre e sofrida senhora. Ficou a lembrança daquela menina pobre, de futuro reservado e vítima daquela misteriosa, traiçoeira e cruel enfermidade.

Janeiro de 2004
Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br



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