O RABO DO CACHORRO
(por Domingos Oliveira Medeiros)
="#0000ff">
As diversas experiências que a população brasileira tem enfrentado ao longo das últimas décadas, no que se referem aos pacotes econômicos impostos pelos tecnocratas de plantão, assemelham-se aos relatos de paixões e traições, esperanças e desenganos, enfim, aos diversos dissabores e sabores que a vida nos ensina a provar: doces , amargos e amarguras, que brotam do âmago de nossa frágil condição humana.
No início de qualquer relacionamento, todos sabemos, há , sempre, o processo de admiração; de encantamento pessoal entre os candidatos e as candidatas. As eleições e o namoro, se fizermos a comparação.
Depois, a aproximação e o conhecimento maior. Mais adiante, as urnas, a escolha, a votação. As alianças e os eleitos. O casamento e a posse. As comemorações e a lua- de- mel. Política e vida se misturam e se confundem.
As primeiras medidas são divulgadas e implementadas. Nascem os pacotes econômicos. Nasce o primeiro filho. E ambos (filhos e pacotes) já começam a preocupar; a incomodar.
Iniciam seus primeiros passos; suas caminhadas; ainda inseguras, aos trancos e barrancos. Há quedas e há machucados. Todos se assustam. Mas é assim mesmo, dizem os mais velhos. E todos aprendem a se levantar e a limpar a poeira. E tornam a ficar de pé. E tentam nova caminhada e novos rumos. Sempre resta uma esperança. E tudo aponta, por enquanto, para o paraíso. O tão sonhado futuro, para onde foram projetados os desejos e as promessas, sugerem que está próximo. Que serão cumpridos. Que todos realizarão seus sonhos.
Até que um dia, a realidade surge como uma tempestade. O sol vai embora. Ventos fortes e uivantes transforma o cenário; raios e trovões riscam os céus, explodem e iluminam as coisas no chão. As nuvens negras encurtam os dias. Antecipam-se noite e escuridão.
As chuvas caem, aumentam de sonoridade, e prendem a nossa atenção. Derrubam árvores e inundam ruas, calçadas, casas e quintais; formam rios caudalosos; isolam pessoas em seus abrigos e residências.
Presas e angustiadas , as pessoas se sentem frágeis e indefesas. É tempo de reflexão.
Os filhos não podem ir ao colégio. A chuva e o tempo ruim não recomendam. Ademais, este ano, a exemplo de anos anteriores, o número de vagas não foi suficiente para atender a todos.
Sobraram algumas vagas, apenas, nos colégios particulares. Mas o preço da mensalidade é proibitivo. Pelo menos para a grande maioria das famílias. Algumas das quais com os chefes desempregados. Ou subempregados.
E mesmo para os que ainda ocupam postos de trabalho, o salário não acompanha os preços das mensalidades escolares. Espera-se mais um ano. Mesmo que tudo aponte para a incerteza quanto às melhorias futuras, ainda resta a esperança por dias melhores.
Afinal, nos acostumamos a dizer que ano que vem será vida nova. Que tudo se realizará. Muito dinheiro no bolso e saúde prá dar e vender.
Mas paciência tem limites. É chegada a hora de começar a perdê-la. A encurtar o pavio. Qualquer coisa é motivo para discussão. As crianças, com a chuva e o frio, adoecem. A culpa é da esposa, que não fechou as janelas na hora da chuva. Mais brigas. Mais discussões.
O governo entra na história: “também tem a sua parcela de culpa”, diz a mulher. – Concordo, diz o marido. - Mas temos que fazer a nossa parte. - As crianças não podem ficar doentes o tempo todo! “Vamos ao médico”.
Já o governo vai à televisão e pede mais paciência. A inflação aumentou, mas aumentou menos do que há dez anos passados. Boa notícia. Para o governo. Para as donas de casa não faz o menor sentido. Não há carne na mesa. Feijão, arroz e banana. E todos agradecem a Deus por estarem vivos.
A chuva finalmente vai embora. Foram ao hospital da rede pública. Não existe atendimento hospitalar de urgência e de qualidade. No ambulatório, só com consulta marcada e, assim mesmo, para daqui a seis meses. “Seis meses? Até lá o vírus da gripe já morreu de falta do que fazer.”
A solução é apelar para remédios caseiro. Chá de limão. De alho. De ambos. Isso se ainda existir gás no bujão, cuja chama avermelhada já dá mostras que está no seu final. Se a coisa apertar, vou ter que pedir emprestado ao vizinho.
O tempo vai passando. Algumas contas começam a ser deixadas de lado. As dívidas vão se acumulando. Os salários continuam os mesmos; enquanto a inflação cresce devagar, esperando a hora de dar o bote fatal.
Restrições no consumo. Já não dispomos de qualquer supérfluo para economizar nos gastos. O aumento dos juros, antes justificado para atrair investimentos estrangeiros, agora não tem mais explicação. Virou rotina. Coisa de viciado. É uma droga, dizem todos. A inadimplência é geral. Falta o gás e a comida escasseia. Sobram desesperanças e desarmonia.
O que a gente já sabia, mas fingia que não acreditava, realmente aconteceu. Como sempre. Não foi nenhuma surpresa. Mas deixou a gente, como sempre, surpreendido, incrédulo: começou a “dar água”, como dizem, no plano econômico. Houve furos no planejamento, por onde a água deve ter entrado. Plano é feito no papel; e papel, com água, geralmente molha e se rasga. Chega uma hora que não presta mais para nada. Tem-se que jogar fora. Pegar outro papel e passar tudo à limpo. Recomeçar.
As brigas vão ficando mais acirradas. Políticos discutem. Casais brigam. Ressentimentos são realçados. Ânimos acirrados. Calúnias e difamações por todos os lados. A desconfiança começa a tomar conta do planeta. O plano econômico e a família começam a ruir. O desinteresse do casal (e do governo) por tudo e por todos, passa ser a tônica do dia-a-dia.
Ninguém mais se entende. Ninguém mais diz coisa com coisa. E a vida se torna um inferno. Nas Câmaras Municipais, nas Assembléias Estaduais e no Congresso Nacional. Nas praças, nas ruas, dentro e fora das casas. Dentro dos casais. No interior de cada pessoa, a desintegração, a desunião e a separação parecem inevitáveis.
Até que um belo dia o sol reaparece. As nuvens negras foram embora e nem percebemos. As ruas secaram. Voltaram as folhas e as flores. Reacendem-se as esperanças. Um novo amor principia. As eleições estão novamente nas ruas. Novos candidatos e candidatas. Novas promessas. Um novo futuro é traçado. Vem o Natal e, com ele, o apelo ao perdão.
Mais um voto de confiança no futuro. Afinal, temos que pensar nos nossos filhos. E a vida continua. E desta vez tem que dar certo. Vai dar certo. E o ciclo se repete. Não se aprende com os erros. O mesmo título eleitoral. Os mesmos candidatos. As mesmas idéias. Os mesmos planos. O mesmo futuro. As mesmas promessas. Os mesmos erros. As mesmas explicações.
E tudo volta a girar no mesmo sentido, pelas mesmas coisas, nos mesmos lugares, até o próximo Natal. Tal qual como fazem os cachorros em círculo: tentando morder o próprio rabo.