Usina de Letras
Usina de Letras
40 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62247 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22538)

Discursos (3239)

Ensaios - (10372)

Erótico (13571)

Frases (50643)

Humor (20033)

Infantil (5442)

Infanto Juvenil (4770)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140812)

Redação (3308)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6199)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Aqueles russos maravilhosos.... -- 02/05/2003 - 19:31 (Lindolpho Cademartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



" Erraram os que pensaram que, com a abertura dos Arquivos de Moscou, vieram à luz também todos os ardis e auspícios estratégicos que por décadas pautaram a linha de conduta da KGB. Quando o Muro caiu e a música parou de tocar, o Kremlin providenciou um walk-man e continuou dançando. Washington, por força de alguns milhares de ogivas nucleares situadas entre Moscou e Vladivostok, teve que acompanhar."





Quando eu pensava não haver mais nada de interessante para ser ler ou analisar a respeito da ação militar anglo-americana no Iraque, acabei por descobrir o meu éden de delícias políticas especulativas. Após ter transitado pelos websites de jornais brasileiros, norte-americanos, britànicos, portugueses e alemães, restei em silêncio e me imiscuí em análises passivas e megalómanas, imaginando tropas da 101ª Divisão Aerotransportada do Exército dos E.U.A desembarcando em território iraniano e demovendo do poder aqueles aiatolás bisonhos e imersos em exegeses teocráticas e fundamentalistas (às favas com o relativismo cultural...) , no não muito longínquo ano de 2005. Eu estava farto. Mas aqueles russos maravilhosos me salvaram do fastio e das forças do Mesmo.


Isso mesmo: são os russos os benfeitores deste que vos escreve. Estava eu a utilizar o meu modesto computador, quando, munido das mais despretensiosa curiosidade, acessei o website do diário russo Izvestia, onde, um tanto quanto surpreso, li a seguinte manchete: "Bombas estúpidas: americanos culpam equipamentos russos pelo seu fracasso militar.". Vibrei! Depois do estilo Pravda de ser da imprensa soviética e da ação tipo "Divisão Panzer" de Putin ao invadir o estúdio de uma rede de televisão russa, Moscou me sai com uma pérola jornalística de primeira grandeza. Convém, portanto, analisá-la.

O leitor já deve estar ciente do pivó argumentativo da manchete do Izvestia: funcionários do Departamento de Estado e da Casa Branca - incluindo o porta-voz Ari Fleischer - disseram haver indícios de que companhias russas estavam suprindo as forças iraquianas com "equipamentos militares avançados" (palavras de Sabrine Tavernise, repórter do The New York Times, em máteria intitulada "Putin Rejects U.S. Claims of Military Sales to Iraq", de 25/03/2003) tais como binóculos de visão noturna, mísseis anti-tanques e aparatos capazes de interferir na transmissão das coordenadas do Sistema de Posicionamento Global (GPS). Em conversa com Vladimir Putin, George W. Bush solicitou "mais observància e criteriosidade" por parte de seu contraparte russo, ao que foi prontamente rechaçado em suas solicitações: Putin qualificou as reclamações como "insubstanciadas". Disse não haver provas e tampouco evidências de que empresas russas estejam provendo o regime de Saddam Hussein com tais equipamentos, no que foi corroborado pelo Chanceler Igor Ivanov, o qual afirmou que, não obstante configurarem desrespeito relativo às sanções impostas pela ONU ao Iraque, as exportações de armas para Bagdá constituiriam "grave violação da lei russa" (Pravda, 25/03/2003. www.pravda.ru). Bravata por bravata - e retórica por retórica -, eu prefiro os russos.

Seguiu-se, previsivelmente, uma indecorosa troca de acusações: Washington declarou que Moscou estava incorrendo em violação da Resolução 661 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, responsável pela instituição do embargo ao Iraque; de sua feita, Moscou disparou para todos os lados: acusou a companhia anglo-holandesa Urenco de vender ao Irã equipamentos capazes de enriquecer urànio, assim como disse ter indícios de que aeronaves espiãs da Força Aérea dos EUA estavam sobrevoando o espaço aéreo da Geórgia no último sábado. Os saudosistas da cortina-de-ferro altearam os ànimos e voltaram a bater na mesa, revivendo os bons e velhos tempos da Guerra Fria e reensaiando as nostálgicas intrigas de chancelaria. Faltou apenas o célebre "Momento Primakov"[i], em que uma delegação franco-russa - que, nessa II Guerra do Golfo, não voou para Bagdá com o findo de persuadir Saddam Hussein a ceder às pressões norte-americanas - partisse rumo a Washington para acalmar os ànimos de Bush et caterva.

Saudosistas à parte, a contenda-zigoto entre Washington e Moscou não deu - e tampouco irá dar - em coisa alguma. Bush continuará reclamando dos escusos expedientes diplomático-comerciais do Kremlin, e Putin procederá exigindo, em tom de falsa indignação (que o digam os chechenos...), a "imediata suspensão" da ação militar no Iraque. E eu, claro, continuarei lendo o Izvestia.

Há, em verdade, evidências críveis de que os russos estejam de fato despachando carregamentos de equipamentos militares para o Iraque. A manutenção de boas relações com o regime iraniano e a relativa facilidade de acesso à fronteira entre o Irã e o Iraque nos leva a crer na veracidade de tal hipótese. Ademais, importa lembrar que, segundo dados do Hudson Institute, 65% dos equipamentos que constituem o arsenal das Forças Armadas iraquianas são de procedência russa (dos Avtomatik Kalashnikov- 47 aos MiG´s, passando pelos Scuds e por peças de artilharia fabricadas pela Mikoyan, entre outros), bem como a renovação dos equipamentos militares iraquianos até o fim da década de 1980 foi lautamente providenciada pela indústria bélica soviética. Todavia, a afirmação de que a Rússia - que, sob a liderança de Putin, vem procurando urdir com os E.U.A. relações económicas, políticas e estratégicas pautadas na cooperação e na estabilidade - continua a exportar armas para o Iraque em um período no qual os Estados Unidos se encontram em estado de guerra declarada a este país perfaz um contra-senso de difícil compreensão, que se torna ainda mais suspeito e intrincado em razão do pouco empenho russo em desmentir as acusações.

Assim, o lento e discreto desdobramento da questão conduz à interpretação de que a razão pela qual o Kremlin ainda não se mobilizou para desmentir as acusações de Washington é a de que a Rússia de fato tenciona arrogar-se de um peso político capaz de enfrentar os EUA, ao menos no que tange à imagem. Não se trata, com efeito, de Moscou passar a "reexistir politicamente", visto que uma nação que dispõe de mais uma dezena de milhar de ogivas nucleares jamais deixará de gozar de influência geopolítica. O que ocorre é que Moscou, impossibilitada de oferecer resistência diplomática fática e de reagir política e militarmente a uma ação unilateral dos EUA, optou pela via inversa iconizada na máxima de que "se eu não posso arcar com os custos de enfrentar o meu desafeto (desafeto circunstancial, diga-se), irei atrapalhá-lo auxiliando seu inimigo real.". Trata-se de uma manobra política situada entre a ação e a inação, entre a omissão e ação deliberada. Pode-se afirmar, ainda, que, em certa medida, a estratégia russa externa o perfil personalístico de Vladimir Putin, ao agir de forma discreta e sem propagar qualquer alarde que enseje desentendimentos mais profundos e duradouros com Washington. Erraram os que pensaram que, com a abertura dos Arquivos de Moscou, vieram à luz também todos os ardis e auspícios estratégicos que por décadas pautaram a linha de conduta da KGB. Quando o Muro caiu e a música parou de tocar, o Kremlin providenciou um walk-man e continuou dançando. Washington, por força de alguns milhares de ogivas nucleares situadas entre Moscou e Vladivostok, teve que acompanhar.

De volta ao início: a minha redenção russa e o brilhantismo cómico do Izvestia. Voltarei a submergir no ócio crítico, na ausência de peças de análise política interessantes e nas tediosas reproduções de lugares-comuns jornalísticos e de matérias pseudo-criteriosas a respeito das causas, do desdobramento e das possíveis consequências advindas da tão alardeada II Guerra do Golfo. Pois bem: começou, e eu não sei quando irá terminar. Até lá, continuarei espremendo idiossincrasias políticas em meus artigos jocosos e cínicos. Mas, em contrapartida, tenho razões para estar satisfeito: amanhã tem outra edição do Izvestia. Tomara que eles voltem a falar das bombas estúpidas.





Lindolpho Cademartori, 21, é acadêmico de Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG) e colunista da Revista Autor (www.revistaautor.com.br). E-mails: lindolpho@brturbo.com e lcademartori@revistaautor.com.br









--------------------------------------------------------------------------------

[i] A expressão "Momento Primakov" é de uso corrente nas chancelarias, devido ao ex-agente da KGB Yevgeny Primakov, que viajou várias vezes a Bagdá, entre 1990 e 1991, com o propósito de demover Saddam Hussein da intenção de invadir o Kuwait.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui