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Contos-->UM BOM BURGUÊS -- 01/01/2004 - 12:12 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
I

Era o mais belo bebê do berçário. Um lindo e bem ornamentado de uma tradicional casa de saúde do Rio de Janeiro. Os visitantes, boquiabertos e entusiasmados, esmeravam-se nos elogios:
_E é o maior de todos!
_Quase quatro quilos!
_Que beleza!
A jovem mãe, ainda em repouso no leito pela cesareana, no apartamento todo enfeitado com cortinas azuis e rosas, a longa e espessa colcha bordada cobrindo-a da cintura para baixo, recostada sobre o travesseiro requintado e com a face ruborizada pela satisfação e convencimento, não se cansava, ao lado do novo papai, de receber cumprimentos e galanteios.
Inaugurava, assim, a vida em sociedade do mais novo burguesinho do Rio de Janeiro dos anos cinqüenta. Já nascia com uma bela identidade, “pedigree”, um capital e o mais importante, um futuro. Os padrinhos, claro, alguém das relações, mas um pouco acima na hierarquia social.
Os seus primeiros anos não poderiam ser diferentes daqueles das outras crianças de classe média alta. Babás uniformizadas, pediatras renomados, cuidados rigorosos, vestuário excessivamente numeroso, limpo e rico. O jardim de infância e as primeiras letras em colégios tradicionais. As festas de aniversário não dispensavam a pompa, os registros com fotógrafos de primeira, convidados importantes e, quem sabe, até um pequeno espaço numa coluna social em jornal de alta tiragem?

A família do Luís Alberto (nome cuidadosamente escolhido após longo debate entre pais, avós, tios e outros membros próximos) necessitava esforçar-se mais do que era capaz para manter aquele “status”. Sua criação trouxe, pois, um certo desgaste, não puramente econômico, mas também emocional na vida de seus pais. Era preciso fazer contenções em seus gastos pessoais, não haviam como poupar, estressavam-se com a iminência de dívidas e tinham que esconder aquele sufoco. Mas não podia ser diferente pois afinal pertenciam a um círculo exigente e sair dele seria o equivalente a uma desonra. Tinham que administrar, portanto, aquela privação, de modo mal distribuído, mas haviam que manter a aparência de bem sucedidos, a qual se fazia representar, sobretudo, pelo padrão de vida do Luís Alberto. Não é preciso dizer que o menino pagou por aquele luxo, uma vez que a vida na intimidade do lar não era das mais agradáveis. Não podia compreender o modo estressado e mal humorado que dominava as relações entre seus progenitores. E na medida em que foi crescendo e se aproximando da difícil época da adolescência, embora nada lhe faltasse que se integrasse no mundo físico, um lento, gradual e cruel afastamento foi se instalando e um sutil isolamento minando o que havia de melhor na relação afetuosa que deveria dominar no seio daquela família. É preciso reconhecer que o jovem casal foi vitorioso. Afinal, não terminou na ruína. Conseguiu manter um padrão de vida regular, usando, é claro, de métodos ilusionistas. Conseguiam driblar convites para festas, reuniões e viagens caras usando de pretextos bem convincentes. Enfim, souberam dourar a pílula. Eram “experts” em preparar uma bela embalagem para uma caixa de conteúdo simples. Mas arcaram com um custo alto. Não eram felizes. Culpavam-se mutuamente e ressentiam-se de uma convivência cordial entre os três. Isolaram-se, cada um dos membros conduzindo de modo egoísta o seu mundo interior. E nada transparecia. Nem eles próprios sabiam porque.

A adolescência chegou e se passou, obviamente, com um grande acréscimo na despesa e, paralelamente, na tensão familiar. Luís Alberto continuava sem que lhe fossem negados os seus desejos de consumo. Não participava do aperto dos pais, que ocultavam o déficit, não fosse por amor paterno, seria com certeza para que não fossem reveladas as dificuldades econômicas. Pela casa e especialmente no quarto do rapaz, centenas de fotografias documentavam aquela fase, como um grande painel ilustrativo que identifica o “modus vivendi” dos jovens de classe média alta das últimas décadas. Poses em trajes de automobilismos, ao lado de modelos caros, viagens turísticas no estrangeiro, vestes apropriadas para o gelo, esquis, sobre cavalos de raça, em “turnês” com amigos, jantares em restaurantes de ponta, bailes em clubes sofisticados, noites de carnaval no Sírio Libanês, etc. Luís Alberto, não obstante o desconforto na relação em família, era de boa índole. Seu grupo de amigos era composto por rapazes e moças moderados. As drogas não invadiam, na mesma intensidade de hoje, a população juvenil daquela época. Usuários assim eram excluídos e acabavam organizando seu próprio meio. Da mesma forma eram excluídos aqueles que se envolviam com a política clandestina. Muitos estudantes de classe média alta ingressaram nos chamados movimentos subversivos a partir da segunda metade da década de sessenta. Perderam o conforto de que desfrutavam, a saúde e alguns até mesmo a vida. Luís não entendia aquilo. Por mais que tentassem convence-lo, não compreendia o porque de tal engajamento. É que a criação eminentemente burguesa falava mais alto. Não lhe interessava a miséria do povo nordestino, os contrastes explícitos pelas favelas cariocas, os vergonhosos índices de mortalidade infantil, a subserviência econômica e política de seu país aos do Primeiro Mundo. Muito menos se doía por ser governado por alguém que ele não havia escolhido. Não se incomodava com a histórica exploração humana entre as diferenças de classe. Era jovem e rico, graças a Deus e isso lhe bastava. Esquecia-se de que há as duas faces da moeda, que sempre se alternam, mais cedo ou mais tarde. Nunca foi capaz de atinar para o fato de que somos de carne e osso, vulneráveis, participantes de um universo de infindáveis mistérios, de que envelhecemos e de que dependemos de um poder invisível, inimaginável e de dimensões no tempo e no espaço que jamais podem ser calculadas. Jamais se deu conta, ofuscado certamente por sua criação privilegiada, do tamanho de sua pequenês.

II
Luís Alberto tentou, mas não conseguiu ingressar na Faculdade de Engenharia. Seu pai conseguiu introduzi-lo no mundo dos negócios, no qual acabou se saindo bem. Seu cotidiano fora do trabalho era de festas, bailes, reuniões, pouco esporte e pouca arte. Assistia a eventos musicais e colecionava discos com fim de manter-se integrado ao grupo. Mas não era sentimental. Os namoros eram curtos, pois a disputa entre as pretendentes geravam a necessidade de uma certa rotatividade. Mas, enfim, aos vinte e três anos, iniciou-se um relacionamento mais sério que acabou em noivado. A mocinha reunia todos os requisitos necessários para fazer jús à sua companhia. Era bela, saudável, educada, séria, bem encaminhada nos estudos. Não se diferenciava da maioria das outras, a não ser por ter emergido do grupo de amizades de seus pais, gozando assim da simpatia deles e por inaugurar uma fase em que já se fazia necessário pensar em coisa mais séria.
Esse era o perfil de Luís Alberto. Um rapaz de classe média alta, residente na Zona Sul do Rio de Janeiro, educado, bem apessoado, bem comportado, com uma carreira empresarial em crescimento, noivo de uma moça bonita e de boa família. Por outro lado, um pouco inquieto, com uma tristeza que ora se exacerbava e que não conseguia traduzir, ao lado de um injustificável sentimento de solidão. Havia momentos em que tais sentimentos negativos eram mais nítidos, incluindo os de se encontrar perdido, à espera ou à procura de algo que não conhecia. Mas a lida do dia a dia não deixava que caísse em desespero.

Em uma das noites em que foi a um baile de formatura no Clube Monte Líbano, aconteceu-lhe algo diferente. Alguma coisa única, que jamais haveria de se repetir em sua vida. Uma sensação inigualável, um fato de curta duração mas que perpetuou-se em seus pensamentos para o resto de sua vida. Afastara-se da noiva por uns instantes, com a finalidade de se reunir com amigos em outra área do clube e, de repente, ao estender o braço para alcançar uma taça em uma bandeja, colidiu a mão levemente com a de uma jovem. O incidente fez com que, constrangidos, se fitassem para que se desculpassem. A moça era linda. Os olhos penetrantes tinham um brilho diferente. Revelavam uma inteligência incomum e deixava transparecer um coração meigo. Os cabelos negros e compridos realçavam um rosto suave e sereno. A voz vinha então para confirmar aquela primeira impressão. Um som cheio de ternura emoldurado pelo desenho sinuoso e delicado dos lábios. O decote bem recortado e discreto revelava o colo generoso e as curvas semi esféricas dos seios. Nesse momento, o conjunto musical iniciava uma melodia lenta, leve e romântica. Pela primeira vez na vida, Luís Alberto foi abalado por um encantamento daquele tipo. Pela primeira vez, emocionou-se com uma melodia. Ficou muito tempo ali, fitando-a e sendo correspondido por ela. Curiosamente houve uma reciprocidade. Um encantamento mútuo, um transe que foi quebrado violentamente pela interferência despropositada de um amigo. A moça foi então afastando-se lentamente, deixando-se agora ser observada pelas costas, ampliando o campo de visão de sua beleza, e revelando sua elegância. Voltava-se vez por outra para fitá-lo novamente, aguardando uma abordagem. Mas o amigo insistente atrapalhava, interferindo na sua atenção. Pessoas foram preenchendo o espaço cada vez maior entre os dois. E ele, fascinado mas ainda hesitante foi perdendo-a de vista. Não desistiu, desvencilhou-se dos amigos e continuou a procurá-la pelos salões. A multidão dificultava. O barulho já o incomodava e o rapaz, em incursões nos grupos de pessoas tentava achá-la. Até que, depois de quase uma hora de procura, ele a avistou. Ela também o viu. Insinuou-se, exultante, para alcançá-la, mas sentiu alguém segura-lo pelo braço. Voltou-se e ali estava a noiva, aborrecida, reclamando e exigindo que não mais se afastasse. Olhou mais uma vez para a jovem, que, fitando-o, aguardava. E ele ficou ali, parado, confuso, indeciso, espremido entre a namorada que o requeria e aquela imagem deslumbrante de mulher. A menina puxou-o e Luís foi retrocedendo vagarosamente, o olhar perdido na direção daquela pessoa encantadora, abstraído, perplexo, a imagem dela diminuindo, as feições agora entristecidas, mas ainda cheias de encanto. E agora? Ele a perdera. Sentiu que a perdera para sempre. Voltou-se para a futura esposa e sentiu o morno retorno à realidade. À realidade sem graça de que se compunha seus dias. Até o final da festa ele permaneceu distante, vez em quando explorando com um olhar aquele enorme salão, sobre aquelas cabeças agitadas, na esperança de um milagre distante. Um rápido e curtíssimo flerte que significou muito mais que todos os outros que já haviam acontecido em sua vida. Um sentimento forte, imperioso, de um romantismo sem par. Algo que desconhecia. Como se fosse um cego que repentinamente recuperasse a visão e desse de encontro com uma beleza descomunal, de cores vivas, revigorados todos os seus sentidos. Acabara de descobrir a beleza, a sensualidade verdadeira, uma inigualável emoção. Foi muito curto, mas perpetuou-se em sua mente e em seu coração, deixando ainda de quebra um penoso sentimento de frustração e de covardia.

III
Algum tempo se passou e aquela miragem ficou na sua lembrança como um sonho bonito que tivera. Aprendeu a conviver novamente com os pés no chão e num mundo onde não são perdoados os sentimentalismos. Casou-se e inaugurou mais um núcleo daquela sociedade em que se integrava tão bem. Os negócios indo de vento em poupa. Tornou-se membro de algumas associações corporativas, dessas que trocam favores, realçam privilégios e reafirmam a superioridade do poder econômico. Foi ficando mais maduro e a vivência em sociedade sempre superando a familiar, nos mesmos moldes de seus pais. A mulher cumpria perfeitamente com o padrão de esposa de senhora de executivo. Consumidora frenética, sempre integrada com seu grupo de amigas de vida similar. Cabeleleiros, estilistas, chás, reuniões com destaques no meio artístico e social de alto nível. Os filhos entregues às babás. O vasto círculo de amizade de Luís Alberto não era em nada diferente daquele dos anos de sua adolescência. As conversas eram sempre sobre o que havia de melhor e de mais moderno no mundo do alto consumo e da tecnologia. Os automóveis ocupavam um lugar de destaque. As viagens para o exterior eram outro assunto em que se abordava o progresso tecnológico. A qualidade e o luxo dos hotéis, a modernidade e o conforto das aeronaves. Arte era coisa restrita a um pequeno subgrupo e os esportes também. Mas de tudo era prioritário aquilo que se referisse a poder e a dinheiro. A identidade de cada um era confundida com o seu patrimônio. Uma sociedade em que SER vincula-se obrigatoriamente a TER. E havia também assuntos relativos à esfera sexual. Mulheres sempre visadas como belas e voluptuosas. Fazia parte do “status” a conquista de uma mulher daquele perfil e tê-la como amante, o que se traduzia muitas vezes num grande impacto orçamentário. Faziam parte do patrimônio que, mais importante que os prazeres que conferia, destinava-se a ser exibido, a confirmar poder e projeção social. Mas aquilo fazia parte do complicado retrato para o qual posava o perfeito protótipo do cidadão de meia idade da classe média alta brasileira. Se por um lado os olhos se postavam sobre os corpos bem feitos das mulheres alheias, o coração e o pensamento de suas próprias esposas iam ficando cada vez mais invisíveis e secundariamente inatingíveis, tornando seus lares vazios, frios, solitários. E a política? Ah, sim! Isso era importante! Política no que se refere a poder, política partidária, exclusivamente. Aquela que se reporta à conquista de privilégios, à participação indireta no governo, não se importa se de direita ou de esquerda, de que tendência seja, em que ideologia se baseia. E os graves problemas sociais do país? Que não se aproximasse nenhum chato com aquele tipo de conversa ou do contrário, iam todos se afastando, discretamente.

Não viam, entretanto, que tais problemas iam crescendo excêntrica e intrincicamente e que sutilmente, às vezes violentamente, viriam a espremer e acuar os de melhor sorte entre o mar e a montanha. Aliás, um outro motivo que também ocupava boa parte do tempo daqueles executivos, era o da segurança. Já se ensaiava uma enorme preocupação com aquele setor. E mais uma vez, a tecnologia, o dinheiro e o progresso eram incluídos no assunto. Armas, alarmes sofisticados, blindagens, firmas de segurança, etc. Até aquilo tomava parte no sustento de seu ego consumista. Enfim, aquele já era o retrato fiel de uma mentalidade própria de nossa era. A comunidade em que a tônica recai sobre a propriedade e o poder que devem ser alcançados a custa de competição, sadia ou não. A solidariedade é apenas uma conveniência que se situa num estreito espaço que sobra na mente e no coração dos homens. Os filhos recebiam, via de regra, a mesma educação de seus pais, copiando seus modos, seus valores, com poucas exceções. A beleza física era – e ainda é – um dos mais arraigados valores dos jovens e de seus pais. A cultura ao corpo belo já era uma das mais sustentadas. A mídia já se aproveitava e também já alimentava esse tipo de neurose da sociedade de consumo. Às artes marciais era destinada uma substancial fração do tempo dos meninos, sob o ar abobalhado de seus vaidosos pais.

IV
E assim o tempo consumiu boa parte da vida do nosso burguês. Décadas se passaram e ele tinha a impressão de que nada acontecera. Os filhos repetindo seus passos. A esposa distante, mantendo aparências e sem se dar conta daquele distanciamento. Achando tudo normal. No íntimo, no coração de ambos, uma inexplicável frustração. De vez em quando, em momentos raros de meditação, deprimido, Luís Alberto fazia uma retrospectiva de sua vida, com a intenção de encontrar algo. Algum erro no percurso. Em vão. Não achava nada. Mas era nesses momentos que vinha a recordação daquele baile há mais de vinte anos passados. E se deliciava com a imagem enigmática da linda moça. Ao mesmo tempo sofria com a frustração de tê-la perdido. Que rumos outros poderia então ter a sua vida se houvesse acontecido aquela relação? Não podia responder, mas reconhecia a força imensa e desconhecida daquele momento, que ele, por negligência, deixara passar. E foi no final de um daqueles dias, em que se sentia deprimido e distraído, que lhe aconteceu algo brutal. Foi assaltado no trânsito. Os meliantes, após rendê-lo, atiraram-no ao porta-malas e arrancaram. O carro andou por horas, em alta velocidade. Houve tiros, gritos e tudo indicava que o veículo estava sendo utilizado para outros assaltos. Luís, horrorizado, encolhia-se naquele espaço estreito, com medo de ser atingido. Várias horas de sofrimento, até que, após uma perseguição policial, ele foi libertado. Retirado daquela mala, exaurido, meio choroso, lambuzado de urina, caminhou apoiado pelos policiais e viu seu carro perfurado e no asfalto os corpos ensangüentados dos bandidos. Alívio, horror, uma tristeza de proporção incalculável.

Demorou para restabelecer-se daquele estado de choque e aliás, jamais se restabeleceria completamente. Ficaria como resíduo do fato, uma dolorosa cicatriz que lhe provocava medo, perplexidade e sobretudo uma grande interrogação. Por que? Por que isso acontece? Esse fato foi marcante na vida de Luís Alberto. Primeiro porque abalou seriamente a sua saúde. Fez com que se agravasse uma hipertensão arterial que até então não o preocupava já que não lhe provocava sintomas, diagnosticada apenas através dos exames de rotina. E mais, fez eclodir um diabetes, antes latente, passando o pobre a ter que viver às custas de dietas rígidas e do consumo de uma interminável lista de medicamentos. Realmente lastimável para quem conheceu o homem, antes alguém que exibia uma disposição física de fazer inveja. O desfalque na saúde prejudicou muito o rendimento no trabalho. Mas não foi apenas o prejuízo na saúde física, que bem ou mal, ainda tinha como contornar com uma boa assistência médica e o uso regular e rigoroso da medicação. Havia uma ferida incurável na esfera psíquica do rapaz. Tinha medo ao sair de casa, ficava apreensivo, não relaxava nem dentro de sua residência. Desconfiava até mesmo daqueles a quem encomendara a sua segurança. E paralelamente àquilo, sofria com a falta de resposta daquela sua pergunta. Por que? O assunto violência passou a ser uma constante nas suas conversas. Os amigos já se mostravam impacientes com aquela idéia fixa. Os mais pragmáticos que debatiam o assunto com ele apontavam causas do tipo insuficiência no aparelho repressor, incompetência governamental, falhas na segurança pessoal, etc.. Outros, com discursos mais demagógicos, falavam a respeito da miséria e da falta de investimento em educação. Luís não se satisfazia com tais argumentos pois lembrava-se bem de que os seus seqüestradores tinham uma aparência muito diferente dos residentes dos guetos e das favelas. Chamava atenção para o fato de que muitos governantes e ditadores, todos muito bem alimentados e educados cometeram os maiores massacres e crimes da história da humanidade. Incluía também naquele rol, os oficiais educadíssimos, por exemplo, das Forças Armadas americanas que aterrorizaram aldeias vietnamitas, com chacinas e estupros. E, por fim, os crimes por motivos financeiros executados por políticos e empresários do “colarinho branco”. Alguém tentou responsabilizar a falta de religião.
_Ora, incontáveis assassinatos foram cometidos e ainda são em nome da religião. Está aí todos os dias nos jornais.
Luís já não tinha mais com quem conversar e continuava sem respostas.

V
O abatimento foi aumentando. Ele já faltava bastante aos seus compromissos na empresa. Mulher e filhos não foram solidários naquela época tão difícil. Já não queria freqüentar a Clinica e desleixava nos cuidados com os remédios. Foi se instalando uma imensa e torturante solidão. Os amigos se afastaram com desculpas pouco convincentes. A vida continuava lá fora, sem ele. E ele sentindo-se fraco, medíocre, inútil. Mas o pior de tudo é que não encontrava a resposta. E aquilo lhe trazia um imenso desconforto. Não concebia o retorno a uma vida que não tinha explicação para o que lhe acontecera. Já não lamentava mais e nem se perguntava mais o porque daquilo ter acontecido com ele. Queria simplesmente saber porque acontecia. Por que a indiferença por tanto sofrimento? Por que sofrem os seres humanos violências muito maiores do que aquela que tanto o martirizou? Obcecava-o a necessidade de resposta. Não pensava em outra coisa. Não se alimentava. Perdia peso. Ocorreu então o primeiro derrame. Foi internado, a família acompanhou-o fugaz e à alta, já apresentava comprometimento de sua atividade motora como a marcha, o movimento dos membros superiores e da fala. Deprimiu-se mais ainda. A companhia da mulher e dos filhos não era suficiente para lhe dar algum consolo. Era rebelde, recusou a fisioterapia. De frente ao televisor, quase preso no leito, assistia aos noticiários ricos em violência e aquilo ainda aumentava muito o seu desejo por uma resposta. Precisava entender aquilo para poder voltar à vida. O pensamento agora era mais difícil, a concentração se arrastava. Voltava ao passado, media todos os seus passos e os achava inúteis, infrutíferos. Não tinha glórias. Não fez nada, pensou. Afinal não mexeu uma palha para melhorar a vida na Terra ou pelo menos, diminuir o sofrimento nela. Não só se eximiu, pensou, mas também colaborou. O pensamento cada vez mais obnubilado confundia-o e o remetia a uma auto culpa malévola e injusta. Continuava num processo de auto destruição que agravava ainda mais o seu já precário estado de saúde.

Houve então o segundo derrame. Acordara na UTI, imobilizado, cheio de tubos e percebeu que era o fim. A consciência ia e voltava e cada vez que voltava o sofrimento era maior. E ainda queria resposta e curiosamente foi satisfazendo-se. Conseguiu ver o seu vizinho de UTI. Alguém tão acabado quanto ele. Reparou que o homem também estava lúcido e ao vê-lo naquele estado desesperador, aquela respiração intensa a se fazer pelos aparelhos, o suor inundando-o, enxergou-se como num espelho. Entreolharam-se e estabeleceram um diálogo telepático. Afinal, eram um só. Compreendiam-se. E em meio àquela estranha conversa, vagarosamente vinha a tão ansiada resposta. No passo da compreensão de sua efemeridade, da transfiguração que representava aquele inexorável momento, da intuição de fragilidade e insignificância da vida e da concepção de uma existência maior. Maior que a de todo o mundo, que a de todas as épocas e muito diferente da que se traduz pela cegueira nata, genética, a qual torna os homens invisíveis uns aos olhos dos outros. E outras coisas tão nítidas mas ao mesmo tempo tão difíceis de serem descritas, mas tão claras para ele naquele instante. Luís Alberto agora relaxava, deixava-se tomar conta por uma paz que chegava a confundir-se com uma sensação prazerosa. Percebeu que estava partindo, escurecia e clareava novamente, os clarões gradualmente mais fracos e mais curtos. Foi se deixando ir. Repentinamente, ao chegar ao máximo seu relaxamento, um vulto apareceu diante dele. Forçou para vê-lo com mais nitidez e ele foi se tornando mais claro. Reconheceu o rosto da moça de mais de vinte anos atrás. A que o encantara num momento único de sua vida e com a qual ele sonhara desde então. A moça sorria e estendeu-lhe as mãos delicadas e macias. Beijou-o e cobriu seu corpo então inerte para sempre.
A esposa e os filhos compareceram ao Hospital chorosos e abatidos. Iniciaram as providências para o velório, ao qual compareceram os amigos, colegas e parentes. Houveram discursos emocionados e homenagens justamente cabíveis. Sete dias depois, todos já às voltas com a rotina, o convite para a Missa de Sétimo Dia. A esposa, diante do espelho tinha dúvidas acerca do vestido que usaria. Ainda teria que ir ao cabeleleiro e o mais importante, precisava fazer convites pessoalmente para a cerimônia e precisava fazer urgente a lista das pessoas ....por ordem de importância na hierarquia social.


Dezembro de 2003
Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br


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