Só o interior tem maravilhas que as capitais desconhecem. Porém, nem tudo que reluz é ouro e há alguns preços para se pagar por essas maravilhas, ainda que nada se compare à falta de qualidade de vida nas capitais. Um pór-do-sol no interior, por exemplo, não tem nada que pague. Por outro lado, um dos ingredientes necessários para se viver numa cidade média do interior é o de se fazer um bom curso de aprofundamento, se possível ao nível de pós-graduação, com Jó, aquele mesmo da Bíblia, o da descomunal e incomensurável paciência. De fato, se Sandra Bullock tivesse vindo a Botucatu, por exemplo, há dias atrás para prestigiar o seu "Amor à Segunda Vista", talvez tivesse tido insights necessários para um próximo roteiro de filme com grandes chances de se tornar campeão de bilheterias. Ela que já encenou grandes velocidades em terra e mar, certamente não teria dificuldades para lidar com uma lerdeza compulsiva no trànsito. Rapidamente ela se depararia com uma nova definição em velocidades: a LPV, ou seja, a "Lerdeza à Primeira Vista". Identificar o tartarugoso das ruas de Botucatu, com certeza não lhe requereria grandes esforços. Representá-lo, entretanto, não sei se lhe apeteceria. Para analisar o comportamento do "fenómeno", pode-se, como bem se sabe, escolher, ao acaso, rua, avenida e hora do dia. Um horário de pico, entretanto, seria o ideal. O que transparece é que na linguagem do tartaruguês, a velocidade máxima é nociva, a mínima não. Passar como um raio pelo outro é pecado mortal, mas entrar na frente do outro e segurar o trànsito de vários quarteirões sem ao menos olhar no retrovisor, é natural e sadio. Afinal, como já se dissera na saudosa Jovem Guarda, "só uso espelho prá me pentear" é um refrão que pegou e alguns dele não abrem mão. Pobres normativos insulsos que vivem perto do equilíbrio! Parece até que a velocidade tartarugante dá direito à indulgência plenária e a lugar de destaque nos primeiros bancos das igrejas no domingo de manhã, além do elogio explícito do padre. Onde está o "esperto" ancestral de ortogonal que definiu essas regras??? Deve vir do arquétipo humano de LPV, ou seja, daquele de mudanças lineares e sem traumas, como se a natureza fosse assim. Isso me faz lembrar de um episódio interessante quando morei nos EUA. Ao fazer meu primeiro exame de trànsito, peguei um dia de muito frio e chuvisco nas ruas de Lincoln, Nebraska. Na minha lógica, dirigi com o máximo de cuidado possível e com velocidade baixa, evitando todo e qualquer derrapagem e outros deslizes para não macular minha ficha de candidato. Não tive um problema sequer em todo o meu trajeto e me senti realizado, o que não evitou que no final do exame, a moça, fiscal de trànsito, me reprovasse alegando o tráfego em velocidade muito reduzida. Devo ter ficado no limite do mínimo aceitável e a argumentação do cuidado pelo chuvisco e pista escorregadia, além de ser forasteiro, não prevaleceu. Foi uma lição e tanto. E tem sua lógica, já que se há um máximo que deve ser obedecido, há também um mínimo. Se o excedente do máximo causa problemas, o abaixo do mínimo também.
No nosso caso, também temos velocidades máximas e mínimas, mas quem respeita? Quem sabe delas, na verdade? Se alguma tartaruga rançosa quer desfilar, por que não toma sua direita e deixa os demais o ultrapassarem??? Esse comportamento virou moda a tal ponto, que já foi exportado para pedestres. De fato, dentro dos supermercados há vários pedestres que imitam lesmas e tartarugas e emperram o trànsito naqueles ambientes. São muitos os que decidem o que comprar largando o carrinho no meio dos corredores, atravancando as passagens. Sem falar daqueles que largam os carrinhos "guardando lugar" na fila do caixa enquanto, belos e formosos, continuam suas compras. E vá você reclamar... Se não lograrem pegar ou provocar uma bela fila no seu dia-a-dia, é sinal de profundo fracasso, devem recitar em seu Exame de Consciência da noite. Pensando melhor, até Sandra Bullock desistiria quando se deparasse com a LPV em estágios avançados. Para quem fica, entretanto, haja Jó!
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