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Contos-->A COCOTA E O LEITE -- 02/11/2000 - 21:18 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A COCOTA E O LEITE


Conto de João Ferreira




Frente às buganvílias vermelhas, pensativa, Cris estava chocada. Bailavam em sua cabeça as imagens daquela festa. Música pop, agitação, dança e muita bebida.
Não lhe desagradara de todo o ambiente. A descontração juvenil contrastava com a imagem inédita e inconcebível que retinha em seus olhos. Para ela, uma imagem agressiva que não iria esquecer. Com detalhes que faziam parte da festa e foram compactuados por suas amigas mais íntimas de quem jamais iria suspeitar.
Em sua mente rodopiavam confusas lembranças da festa. Entre elas, a sua situação desesperada, às duas da madrugada, no Lago Sul, esperando um táxi que não vinha. A figura do motorista que gentilmente a recolheu em plena noite e a levara até casa.
Aquela festa louca a intrigava. Era a primeira vez que entrava num embalo tão estranho. E queria decifrar em sua cabeça por que esse grupo de amigos adolescentes o patrocinou com tanto interesse e carinho. O que estava fora de dúvida é que o embalo foi literalmente uma bacanal ritual digna dos clássicos rituais das festas em memória de Baco. Uma orgia em alto estilo, no moderno templo de uma mansão de classe média alta no Lago Sul, na capital do Brasil. Cris estava ainda chocada com aquele black-out geral e com o estardalhaço do onomatopaico tá-tá-tá que se ouviu na abertura de muitas latas de leite Moça que soaram como matracas estranhas num ambiente de luz apagada.
- Nossa - exclamou . Do que eu me livrei!...
Ainda emocionada, seu desapontamento consistia em ter sido traída, sem aviso, nos segredos da noite. Agora, frente às buganvílias iluminadas pelo sol, lembrava o momento crucial. Tudo ia bem, quando, após o black-out, um jovem rapaz, já iniciado no ritual, partiu para cima dela, tocando-a, querendo agarrá-la e despi-la. Caspite! Cris só teve tempo de ouvir o estalo rápido de sua mente, e fugir. Foi a maneira que teve de responder ao esquema que tinham armado em torno dela. Desvairada, atravessando todas as portas, ganhou a rua, já muito escura.
- Agora, pensando com mais calma e reconstituindo as cenas à luz do dia , tornava-se mais vivo o cenário que presenciara e que era um atentado contra sua ingenuidade. Também ela era jovem mas não aceitava esses costumes da barbárie e da promiscuidade de alguns de seus amigos.
- Por alguns minutos, estivera nas mãos do destino, muito perto de cenas desagradáveis para o tipo de mulher que achava que devia ser. E não teve dúvidas de que seu anjo da guarda a protegeu no breu da noite, lá no Lago Sul.
Analisando bem, na hora em que esbaforida esperava a chegada de um táxi, sua cabeça estava mais confusa do que agora. Tentara acalmar, mas o choque fora grande e não conseguira dormir. Na área do jardim do padrasto, andorinhas e buganvílias misturavam a cor e a vida livre da natureza. Ainda agitada e nervosa, no círculo do seu pensamento uma pergunta ia e vinha em frequência digna das melhores estações de rádio:
- Por que as luzes se apagaram sem que ninguém protestasse, numa cilada armada em torno dela? Porque aquele atrevido tentou agarrá-la e despi-la na escuridão?
O maior grilo de Cris era entender a conivência da própria amiguinha Beth que lhe transmitira um convite como se fosse a própria Sadilei.
- Não te preocupa, não, dissera Beth. É uma festinha de adolescentes, em ambiente de família. Gente muito boa. Tudo promete que a reunião vai ser um barato. Não esquenta. A Sadilei me disse que não era preciso levar nada, a não ser uma lata de leite condensado. O resto ficará por conta dela.
Cris teve dificuldade em compreender tudo aquilo. Mesmo assim e apesar de seu estado emocional, conseguira relatar o essencial a seu padrasto sobre a polêmica reunião. Ele ainda não conseguira entender porque a moça chegara a casa quase às duas da manhã, vomitando fogo.
O padrasto foi em frente. Procurou Sadilei e ao chegar ao endereço dado por Cris, verificara tratar-se nada mais nada menos de uma mansão do Lago Sul. Um lote amplo, com um casarão de classe rica, um jardim bem cuidado. Era a residência dos pais de Sadilei. Estes haviam viajado para a Europa e deixaram Sadilei como administradora absoluta do casarão. Meio boquiaberto, o padrasto de Cris pôde confirmar a verdade da orgia da noite anterior junto de Sadilei e entender melhor o choque por que passara sua enteada.
- Foi uma festa entre amigos, dissera a mocinha.
Sadilei tinha apenas quinze anos. Era uma cocotinha muito experiente nas bacanais frequentadas por certos grupos de jovens burgueses do Lago Sul. O que acontecera tinha uma explicação. De fantasia exuberante, Sadilei achou-se dona daquele mundo, enquanto seus pais passeavam pela Europa. Para ela, seria bom pra caramba organizar uma curtição diferente, assessorada por seu namoradinho Dionísio. Conversaram longamente sobre experiências anteriores e armaram uma festa na base do leite condensado.
Sadilei sabia. Num supermercado da capital ouvira uma conversa interessante.
- Não dá para explicar a saída exagerada do leite condensado no supermercado do Lago Sul. nos últimos três meses, dizia uma senhora a uma amiga.
A ideia pululava na fantasia de Sadilei. Mandara recadinho a todos os seus amigos e amigas que convidava:
- Vai haver tudo de sobra: música, salgadinhos, refrigerantes. Não precisa trazer nada, a não ser uma lata de leite condensado.
O que chocara a sensibilidade de Cris fora o black-out geral na mansão a partir da uma hora da noite, exatamente quando todo o mundo estava embalado na música rock, dançando no amplo salão. Cris não entendera a ausência de protestos contra aquela escuridão que lhe trazia calafrios e insegurança. Não entendera também o barulho metálico parecendo o destampar contínuo de muitas latas.
Mas o que tinha havido ali, na verdade, era um propositado apagar de luzes ordenado pela anfitriã, senha básica do início de uma bacanal que traria muitas sensações aos participantes. Uma bacanal que nada deixaria a dever às grandes bacanais nos templos de Baco e que se adaptava perfeitamente aos padrões da nova sociedade industrializada. O black-out era o momento em que os parceiros poderiam aproximar-se das cocotinhas para besuntar-lhes o corpo inteiro. Numa segunda fase passava-se a uma sofisticada operação de sensualidade, em que o moço adolescente deveria lamber o leite esparramado pela pele das gurias, nas partes do corpo expostas e nas mais recônditas, entre ais e suspiros dos mais audaciosos. Era o retorno aos badalados hábitos da Roma decadente em pleno clima tropical.
Sadilei representava todo aquele conjunto promíscuo. No fundo, vibrava com o sucesso. No escurinho, também ela participava do ritual do leite condensado, mantendo junto dela o namorado Dionisinho. Para ela, tudo isto o maior barato. Sensual e vanguardista do novo estilo, Sadilei tinha já uma história de vida desde os treze anos nas lúbricas técnicas do prazer. Quando frequentava a escola de primeiro grau, era seu costume atrair seus colegas para o muro e para a escuridão. Ela e outras meninas colocavam uma balinha na vagina como forma de atração e convidavam os rapazes para usufruir no local o sexo oral. Este estilo atraía muito gaviãozinho de sua idade e era considerado ideal para não correr muitos riscos.
Pelo seu passado, Sadilei era uma cocota malandra e apesar de sua pouca idade sabia organizar e dirigir uma festa e botar para quebrar. Ela se vangloriava de ser uma das mais badaladas cocotas do Gilberto Salomão e nas paradas da pesada conseguia segurar motoqueiros e roqueiros doidões da zona boêmia do Lago sul.
Aquela noite fora um batismo de fogo. E tudo o que o padrasto de Cris transmitira a seu pai no regresso do Velho Mundo não iria empanar nem um pouco a nova experiência que envolvera sua fantasia.
- Um barato e tanto. Ainda que o velho fique meio chateado com isso, não há dúvida. Foi um barato. - Você devia ter visto como foi bacana e como todo mundo ficou satisfeito, numa boa, comentava indiferente aos traumas de Cris e aos protestos do padrasto da desertora.



João Ferreira/Jan Muá
Brasília, novembro 83.
novembro 2000
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