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Contos-->Amargos Contornos na Simetria Suicida -- 06/02/2000 - 23:26 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Passou o dia no meio da estrada, no sol quente. As vezes tinha sorte de acontecer logo, ou de já encontrar o serviço feito, mesmo que fosse algo de dias atrás. O mérito era o mesmo: na lente de sua máquina fotográfica, tudo se tornaria uma arte única e pessoal. Sonhava com aquilo todas as noites e em como seria o próximo animal a ser encontrado esmagado no asfalto.
Até o final da tarde daquela terça-feira, o melhor que conseguiu foi um cavalo no acostamento. Houve uma capotagem de uma perua e ainda restavam cacos de vidro e pedaços da lataria perdidos pelo asfalto, clamando por sumirem dali o mais rápido possível. O cheiro, improvável, nauseante e rançoso, trespassava os seus olhos com não menos força do que as narinas. Lá estava, jogado de lado, com as patas quebradas e feridas enormes, fervilhando podres para sua lente, expondo costelas magras de animal miserável. A boca estava escancarada, com todos os dentes empapados de sangue escuro, formando crostas no chão. Tirou fotos de todos os ângulos que pode, mas já havia conseguido coisa melhor que aquilo.
É evidente que não vivia disso. Era uma atividade relaxante, mesmo que tivesse sua dose de obsessão ou compromisso. Para um homem de trinta e um anos, fotografar podia ser mais que uma terapia e sua infância toda se resumiu a uma polaroid que um tio cacheiro deu e que foi tomada voluntariamente pelos pais quando encontraram, já aos dezessete, fotos escondidas de namoradas nuas, sorrindo e se exibindo despretensiosas, apáticas ao suposto valor sentimental daquele material amador. Malícia a parte, foram bons tempos e se separar daquela câmera, em especial pela maneira a que estavam interligados, foi doloroso demais, motivo para meses de sofrimento intermináveis que só se solucionaram com remédios e muita análise.
Agora ele era um homem feito, formado e podia se divertir novamente.
Reencontrara o prazer perdido desde o verão passado, quando viu uma polaroid na vitrine de uma loja. Pensou que tivesse saído de moda, mas estava errado, docemente errado; imediatamente comprou-a e com algumas semanas já havia encomendado modelos especiais da câmera, profissionais, com flash, alcance e dispositivos especiais, e ainda assim nada era tão prazeiroso quando a sua suave e obsoleta polaroid.
Largou o cavalo morto ali, entre suspiros frustrados, e resolveu voltar para casa. Entrou no carro e arrancou pela pista com a máquina e as fotos batidas no banco do passageiro. Dirigia pensando em mais sorte para o próximo final de semana; na alto estrada, atropelamento de animais era uma coisa muito comum, o pessoal dirige chutado mesmo e passa por cima sem nem perceber. O asfalto era assim, carcaças sobre carcaças.
Foi nesse devaneio, aliado ao céu quase escuro da noite que chegava, que ele viu apenas o vulto de uma animal pequeno e patético adiante, em questão de instantes. Seria impossível parar e, com um condicionamento que ele jamais saberia dizer se havia sido reflexo ou voluntariedade, não tentou desviar o carro e atingiu em cheio, sentindo com a pele do automóvel o impacto corpo-máquina. Tudo se passou em câmera lenta para seus olhos, e quando o mundo voltou a girar normalmente, suava frio e seu coração estava disparado, apertado. Parou o carro novamente e desceu correndo com a sua adorada polaroid em uma das mãos, com o filme carregado.
Era um gato. Não dava para saber a cor ao certo, nem se tinha raça, por causa do estado; morreu na hora. A cabeça estava a uns dois palmos do corpo, esfolada e amassada, emplastada no sangue, parecendo um melão jogado de um segundo andar. O resto do corpo era uma bola de pêlos e carne com marca de pneu configurando deformações horríveis. Estava todo arrepiado e quando deu por si, com câmera em mãos, já havia tirado o filme inteiro e as fotos estavam caindo no chão a medida que eram batidas. Voltou para o carro, trêmulo, desconcertado com aquela obra-prima, pegou mais material e gastou tudo que tinha consigo no momento. Era a melhor de todas as carcaças que viera a encontrar.
Quando se preparava para abandonar aquilo, com o coração doendo(queria ficar ali, viver ali, acompanhar a decomposição passo a passo, lamentando-a), escutou um miado de mulher do outro lado da pista, do lado de algumas casas perdidas na estrada.
Meu gato, é meu gato...você atropelou meu gato, e veio correndo na direção dele, desamparada. Mal deveria ter dezoito anos, talvez nem tivesse feito dezessete ainda. Não deu tempo de catar as fotos ou escondê-las dela e invariavelmente foi flagrado ali, com o bicho estraçalhado, morto a seus pés.
Foi então que houve o primeiro contato.

* * *

No outro dia, logo cedo, voltou ao local. Não teve coragem de parar para procurar o gato destroçado nem fazer outra sessão de fotos, inclusive porque não havia voltado para isso. Foi por volta das dez da manhã que encontrou, perguntando de casa em casa nas proximidades da auto pista, o lugar onde a dona do animal morava.
Era evidente que ele tinha fugido sem se explicar no dia passado; deixou-a para trás, no acostamento, a contemplar aquela pasta sangrenta de pêlo e ossos. Trouxera uma cesta com um filhote de gato para ela, como uma espécie de desculpas pelo atropelamento, mesmo sabendo que a culpa não era sua por ter atropelado a criatura. Quando tocou a campainha, diante da minúscula casa descascada a poucos metros do asfalto, foi a própria garota que veio atender.
Eu fui embora sem dar desculpas, não sabia o que dizer e resolvi trazer isso para você.
Ela olhou e recebeu a cesta, desconfiada. Obrigada.
Não há de quê, olha, aquelas fotos que eu tirei...é que eu...tem uma revista que eu trabalho, daí precisava de algo parecido e eu não tinha conseguido nada...e daí...aquilo acabou sendo a única coisa que eu vim a encontrar o dia todo, mas sinto muito ter sido seu gato, quer dizer, eu não devia ter tirado as fotos, né?
Cadê as fotos?
As fotos? Rasguei...queimei(mentira)...
Eu queria. Preferia as fotos a esse gato novo.
Ela afagava o animal contra seus seios, calorosamente.
Se eu soubesse...daí eu não teria destruído(ela deve ter a buceta apertada).
Pois eu queria muito.
(ela tem a buceta apertada)
Eu acho que eu devo ir agora, só passei para deixar esse...essa cesta.
Foi muita gentileza. Eu sei que a culpa é do dono que deixou seu animal escapar para a pista. Nem precisava.
Fiquei com a consciência apertada. Consciência pesada.
Eu já vi matarem gente nessa pista e passar direto, sem parar para prestar auxílio. Um horror.
Um horror. É, eu já vou, tenho que ir.
Certo.
(ela vai falar mais alguma coisa ou acabou aqui? Essa porra desse gato)
Voltou para o carro, sem dizer uma palavra, sem olhar para trás, com cada músculo de seu corpo se contraindo contra sua partida eventual. Durante o resto do dia, não conseguiu fazer nada que não fosse pensar nela e olhar para as fotos do gato estourado no asfalto.

* * *

Procurou na lista telefônica o número referente àquele endereço logo cedo,. Ligou.
Alô, era ela.
Alô, aqui é o cara que atropelou teu gato...
Olá, o que houve?
É que, é que eu não sei. Como vai o gato novo.
Não o vi ainda hoje, acordei agora. Mas é bom ainda ter companhia.
Companhia?
Eu moro só. Por isso demorei para atender, você me acordou.
Mora só?...ah é, desculpe. Desculpe ter ligado.
Como você achou meu número?
Olhei na lista. Você num é muito...nova para morar só?
Já sou maior de idade
Nem parece.
Mas é.
Silêncio na linha.
Bom, acho que eu vou desligar...eu tenho muita coisa para fazer hoje(suas mãos estavam tremendo com a foto do gato diante de seus olhos).
Passa aqui.
Passar aí?
Não repete o que eu falo. Eu disse para você passar aqui. Queria lhe ver novamente, decorar o seu rosto.
Eu posso passar aí agora.
Você disse que tem muita coisa para fazer.
Mas eu posso passar aí agora.
Não. No fim da tarde.
Mas...está bem, no fim da tarde eu passo aí.

* * *

É evidente que houvera uma deixa para um gancho sexual no que havia acontecido. Toda a harmonia dos fatores estava lá, onipresente e imparcial: coincidências que em questão de instantes deixariam de existir, animais que não seriam esmagados, motoristas desatentos que não danificariam o pára-choque e amantes que por estes mesmos instantes poderiam jamais vir a se tornarem corpo e alma, carcaça e paixão.
Foi exatamente o que aconteceu com eles.
Naquela mesmo fim de tarde, ele passou lá e conheceu mais a respeito dela e em menos de uma semana, invariavelmente, se envolveram. O filhote de gato foi uma testemunha do que aconteceu, e talvez soubesse mais sobre ambos do que qualquer um deles. Isso tornava as coisas disfarçadamente mais difíceis. Já era sábado e estavam juntos, no sofá da sala, diante da televisão.
Ela: Eu já tinha te visto uma vez tirando foto de bicho morto na pista.
Ele, surpreso: É? Sério?
Sério.
Eu não faço isso por maldade, não faço por maldade, imagina. É que eu gosto de tirar foto exótica como hobby, desde criança...
Ah é? Então tira foto disso, ela se levantou e ficou nua na frente dele, esfregando a barriga na sua barba rala. Invariavelmente, fornicaram(ela tinha a buceta apertada, sim).
E foi assim por três dias, alheios ao resto da humanidade, diante de um filhote de gato e da televisão, as vezes fora do ar, as vezes passando programas que sequer sabiam o nome. Havia um elo estranho entre o casal: ele, com seu fascínio pelos contornos da gata(ela era uma gata no sentido literal da palavra) e ela, com sua estranheza para o que não lhe interessava. Não se alimentaram nem se lavaram durante esse meio tempo, conservando os estômagos doendo e os fluidos dos corpos misturados sobre a pele, esgotando todas as reservas humanas.
Então, no último dia, ele sem querer reparou que não havia comida alguma para o filhote de gato, provavelmente desde que o tinha dado a ela. Antes que pudesse perguntar com o que ela estava o alimentando, encontrou-a dando de mamar a ele, direto nos seus seios miúdos, numa cena estranha, meio materna, meio erótica; se ela não fosse delgada e esguia como uma gata, com as orelhas aguçadas para qualquer ruído, pareceria só uma tarada maluca, mas esse não era o caso. Definitivamente.
Ela parecia, em algum momento perdido de sua imagem, uma grande e enorme felina, com a pele mole deslizável nas articulações, olhos ligeiros e acessos no escuro. Sim, de longe, no limite em que se vê olho no olho, ele poderia jurar que ela tinha a íris partida verticalmente, igual aos gatos. Uma grande e enorme felina, que dava banho de língua nele durante o coito e que se sentava no sofá, preguiçosa, sem roupa, com os mamilos de lado para que seu filhote viesse absorve-la.
Como a coisa já era passional demais, ou por ainda não ser o suficiente, ele apenas sorriu e perguntou se ela fazia aquilo com todos os gatos que tivera.
Não, só com filhotes.
E desde quando você tem leite?
Ah, não sei. Desde o primeiro filho.
Filho? Ele ficou confuso e se sentiu um pouco atraiçoado. Não sabia que você já tinha tido filho...(ela nem tem tamanho para ter tido filho, com esse corpo minúsculo, essa cinturinha, essa buceta apertada, é impossível ser assim depois de uma gravidez, impossível)
Deixa para lá, deixa. Vem cá, esticou os braços para ele e desmamou o filhote, que correu para o outro lado da casa, satisfeito. Eram longas patas viradas para ele.
Faz bem mais de três dias que a gente está aqui, sem botar a cara para fora. Não dei satisfação no emprego, nem voltei para casa. Temos que dar um rumo para esse relacionamento, sei lá, alguma coisa tem que ser feita porque desse jeito num dá para ficar, acho que você concorda comigo, não é? Tem que concordar, desse jeito...num dá.
Colocou um dos dedos(dedos finos, unhas longas) sobre os lábios e fez shhhhhh, vem cá, para de falar e vem cá ficar comigo. Era quase hipnótica, ele realmente sentiu vontade de deitar ali com ela e foder, foder, foder, como se não estivesse acontecido nada, parecia até irreal. Quando voltou a si de novo, já estava lá, com a boca em um dos seios dela, tomando do leite da gata. Era um leite grosso, estranho, que descia queimando mas que não o deixava largar enquanto a fome estivesse reclamando.
Finalmente, parou. Ela se virou e disse, agora você também está bem alimentado e não precisa reclamar mais de nada.
Estava alimentado mas sentia-se envenenado, terrivelmente envenenado por aquele leite. Sua vista queria fugir para todas as direções e suas mãos tremiam; os ossos pareciam querer explodir, como se houvesse alguma pressão maligna sobre todos eles, sobretudo na coluna vertebral. Uma sensação horrível de opressão que, se estivesse de pé, já teria caído na frente dela. Flashes de fotografias pareciam percorrer cada rede de neurônios, queimando e torcendo as suas sinapses e estimulando até o último nervo. Poderia ter onze anos novamente, dezesseis, dezessete, qualquer idade, com uma polaroid detonada na mão e a namoradinha sem roupa fazendo poses, clic, clic, clic, fotografias caindo no chão, voando ao menor contato do vento, mostrando sorrisos de adolescentes desajustados com suas obsessões idiotas. Foto, rostos, foto, rostos, as fotografias eram tudo para ele e ninguém jamais teria o direito de tirar aquilo de si porque estavam ligados intimamente por um, isso mesmo, por um cordão umbilical. A lente da máquina era os seus próprios olhos refratários e suas essências se confundiam. Diante da gata dissimulada, de íris partida e músculos delgados, ele nada mais era a não ser um artista mecânico dos flashes distorcidos.
O que diabo...está acontecendo...
Dorme.
O que diabo...
Shhhhhhhh, ela fez. Dedo no lábio, quase ronronando. Uma gata enorme.

* * *

A consciência dele se recobrou muito tempo depois, o suficiente para perder toda a sua percepção de horas, dias e espaço. Acordou no chão da sala, com os olhos gradualmente voltando a enxergar e o nariz a sentir, de maneira mais ampliada, os aromas do ambiente. Cheiro de animal.
Um cheiro familiar, que algumas vezes já viera a deleitar; não um cheiro de animal comum, mas algo mais rançoso, adocicado, para a grande maioria das pessoas nauseante ou até mesmo angustiante. Cáustico, na medida do possível, e sugestivo de degradação.
Era cheiro de animais mortos, podres a muito tempo no asfalto.
Quando se sentou, ainda tonto, no chão, deparou-se com dezenas deles, compondo a decoração da sala: cavalos estourados, cachorros sem cabeça, gatos e ratazanas estraçalhadas, sujos de coágulos e pedaços de carne mal apodrecidos, vacas e bezerros incompletos, esfolados ou esmagados. Soltou um urro de pavor e se ergueu atrapalhado, cambaleando para as paredes que estavam emplastadas com sujeira. Devia ter se passado muito tempo para que alguém pudesse fazer uma coisa medonha daquelas, muito tempo mesmo. Chamou-a por alguns instantes, rouco, mas não obteve resposta alguma.
Sobre uma carcaça de algum animal de porte médio, impossível de se identificar, estava um álbum, tal qual o que tinha, mesma cor, modelo e forma, onde guardava as fotos que tirava de animais; poderia até mesmo ser o próprio.
Foi até onde estava e pegou-o para si, cauteloso. Passando as páginas, encontrou várias fotos tiradas de polaroids, não de animais atropelados, mas de gente. Homens, mulheres, alguns até jovens ou velhos demais para estar no meio de uma estrada, nus como apareciam das figuras, completamente expostos, vísceras, sangue e músculos. Haviam fraturas horríveis, torções, decapitações; era um conteúdo terrível, não só por serem humanos, mas por posarem apenas como os animais posavam para ele: seres que foram dizimados no meio do asfalto, carcaças e nada mais. Largou o grande álbum no chão, fazendo barulho.
E enfim, ela entrou na sala, vinda da entrada que levava para o quarto. Não veio sozinha; junto com ela, muitos gatos, centenas deles, penetraram no local, receosos pela presença dele, provavelmente a um passo de se tornarem hostis.
O que...eu não estou entendendo nada...o que é isso que eu estava olhando, e esse monte de bicho podre aqui, o que é isso??
Não fica assim, assustado. O meu leite deve ter te feito mal, você dormiu cinco dias direto, mas da próxima vez que você tomar vai reagir bem.
Cinco dias?? Que porra está acontecendo aqui?
Ela se insinuava para ele, gesticulando os braços no ar, dando passadas curtas, movendo pouco as articulações dos joelhos e andando na ponta dos pés, como uma gata.
Não reaja mal assim, meu amor.
Eu não...eu estou perdido, não consigo entender nada, você...você...
Que tem eu?
Você não é normal.
Ela riu, com classe, elegância. Felina e discreta.
Não entenda as coisas errado.
Entender errado?
Eu sou diferente de você, mas podemos viver juntos.
Diferente?
Não repete o que eu digo, não seja estúpido. Presta atenção: eu sou a mãe desses bichos todos aí que você está vendo e que, ainda por cima, fotografou.
Ele se encolheu assustado e não se pronunciou, aguardando-a concluir o que começara a dizer.
Nasceram de mim, de pais diferentes. O meu útero pode guardar qualquer criatura, do mesmo jeito que os meus óvulos se misturam com qualquer esperma e geram vida. Seja de homem, ou seja de animal, eu posso ter todos esses filhos maravilhosos.
Ele continuou parado, olhando-a.
Você deve estar pensando coisas horrorosas sobre eu e animais machos, mas tenta entender. Veja por você, que tira foto de bicho morto. Tirou foto de meus filhos esmagados no meio dessa estrada nojenta e mesmo assim estou apaixonada por você. Te observo a muito, muito tempo. Foi tudo uma armação para a gente se conhecer, tudo planejado. Aquele gato que você atropelou, o choro, tudo planejado.
E esse teu álbum com gente morta, o que você me diz dele, heim? Ele se ergueu, agressivo, mas ela, com a elegância de uma gata, permaneceu impassível.
Esse é o seu álbum, suas fotos. É só uma questão de interpretação.
Impossível, veio na cabeça dele. Mas não era.
Esses são meus gatos, os meus filhos prediletos. Mas eu acredito que, dentro em pouco, abandono essa função de genitora. Faz muito tempo que faço isso, e o nossa filha vai me substituir.
Filha? Nossa filha?
É, eu estou grávida. Sorriu. Sublime, translúcida.

* * *

Em poucos dias, a filha nasceu. Um bebê enorme, saído das entranhas dela com facilidade, sem alarga-la ou modificar a sua estrutura estreita e esbelta. Chorou forte, diante dos olhos do pai, que tentava assimilar a estranheza da sua concepção, rodeado por todos os outros animais.
Antes da criança nascer, ele descobriu que a sua amante tirava forças dos atropelamentos e da própria carcaça de seus filhos. Era preciso que fossem mortos o quanto antes, sendo estraçalhados na pista, sangue contra o asfalto, para que ela recarregasse suas energias. E assim vivia, nesse ciclo: procriava, esperava se desenvolverem e os mandava para a pista, sendo obedecida cegamente. A sua cadeia alimentar parecia ser talhada na carne de todos eles; ainda assim, existia algum amor tanto no sacrifício pela mãe, como na despedida para a criança-animal que partia para sempre.
Quando finalmente a criança deles cresceu, anos em questão de semanas, o que seria feito já estava sendo imaginado pelo pai.
Pegou a polaroid, carregada com filme. Foi para o meio da pista com sua grande gata, esguia, elegante, com uma categoria de criatura bestial consciente da sua importância. Ela era o ápice de genitora, o caminho para todas as evoluções; ele, seu mero artista perturbado. Não tardou algum tempo, foram atingidos por um automóvel em alta velocidade, que capotou, capotou e tingiu o asfalto com o sangue deles e das vítimas do acidente. Um espetáculo registrado nas últimas fotos dele, que voavam pelos ares, caindo no chão escaldado.
Fotos que caíram no chão, a medida que foram tiradas. Nada havia sobrado além das carcaças, observadas do outro lado da rua pelo filhote crescido do casal; uma garota de íris partida, polaroid em mãos, homem e máquina integrados, ofegando e registrando as imagens após estalidos mecânicos.
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