Usina de Letras
Usina de Letras
33 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62275 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10382)

Erótico (13574)

Frases (50664)

Humor (20039)

Infantil (5454)

Infanto Juvenil (4778)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140817)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6206)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->Brasil brasileiro -- 17/08/2000 - 13:29 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Passei metade da minha vida lutando contra o Sistema. No começo não sabia bem por quê. E tinha uma grande dúvida: "quem é o Sistema?" O Governo - pensava eu. Aos dezoito anos fui induzido a acreditar que era o Capitalismo e seu representante mais autêntico, o "Grande Satã". Idas e vindas depois, concluí que o grande vilão era o Brasil - seu povo e seus políticos. Essa idéia perdurou até ontem, Dia dos Pais.

- Passa a maionese! - ordenou, irritada, minha sogra.

- Cadê o limão?

- "Tá" em cima da pia!

- Aqui não está! A caipirinha vai pro brejo! Onde está o limão, c...?!

A bacia com a maionese transbordava. De vez em quando um pedaço de batata ou cenoura picada sujava o chão ou a toalha de mesa quadriculada. Também... O almoço do Dia dos Pais tinha quatro casais, cinco crianças, mais os dois donos da casa. E a salada para acompanhar o churrasco era suficiente para sustentar por dias os velhinhos do asilo que ficava no mesmo quarteirão.

- É melhor sobrar do que faltar! - justificou-se Dona Alzira.

As crianças chegaram comportadas. Thiago, meu filho, alinhado como se fosse à missa. Estava com os cabelos penteados, a roupa alva e cumprimentou educadamente os avós e tios. Antes de sairmos de casa pedi insistentemente para que se comportasse. Vê se não bagunça a casa da sua avó, senão... - ordenei. Não adiantou. Meia hora depois, lá estavam eles brincando e brigando pelo corredor do velho sobrado. Minha mulher veio me pedir para eu dar um jeito no moleque. Mas como o seu João já tinha achado o limão e a caipirinha estava pronta, mal lhe dei ouvidos. Os homens se reuniram numa mesinha próxima à churrasqueira, exceto o Aníbal - o eterno churrasqueiro do bando. Até hoje não sei se o incentivávamos por causa de suas habilidades com os espetos ou por que ele é um chato de galocha. De qualquer forma, ainda que estivesse ocupado com as carnes, asas de frango e linguiça, sempre soltava seus palpites onde quer que estivesse.

- O FHC é um ladrão! - bradou, enquanto virava a picanha. Não vê esse caso aí do juiz, o Babau...

- É Lalau, Aníbal - corrigi.

- É esse mesmo! Vocês não acham que o Fernando Henrique o está acobertando?

Desprezei o comentário. Meu sogro fez sinal de positivo. Ele é do tipo que acredita de verdade que o bom político é aquele que constrói estradas e inaugura obras por toda a cidade. Vejam só... - desafiou-nos. Nunca vi uma placa com o nome do presidente nas obras que estão por aí! Quis mudar de assunto, já que o seu João tinha entornado dois copos de caipirinha, fora a cerveja. Mas o Claudinho, professor de História formado pela PUC, não podia deixar barato. Saiu desfilando seu arsenal de argumentos para explicar aos presentes as atribuições de cada um dos poderes e as funções constitucionais dos representantes executivos. Mas não deixou o assunto passar ileso:

- A culpa é dessa sociedade omissa brasileira!

- Nisso eu tenho de concordar! - afirmou meu sogro.

- Até que enfim você falou algo que preste - referendou o Aníbal.

Confesso que não tive forças para reagir no momento. A frase do meu cunhado não era assim revolucionária. Mas tinha fundamento. Se compararmos o comportamento social do brasileiro com as referências que vêm do Exterior desenvolvido, certamente encontraremos diferenças imensuráveis de conscientização social. Pelo menos é isso o que dizem meus amigos que já estiveram na Europa, Estados Unidos ou Austrália. Sempre argumentam que o senso de coletividade nesses lugares é muito mais apurado do que no Brasil. Achava que isso era verdade, embora fizesse restrições.

- Mas o Brasil ainda é muito jovem. Não teve tempo de amadurecer sua sociedade.

- Que nada! Você acha pouco 500 anos? - retrucou o Claudinho. Há sociedades bem mais jovens que estão melhor estruturadas.

- Pode ser...

Nossa conversa foi interrompida pelo Yoshiko, vizinho de frente dos meus sogros. Veio pedir o grifo emprestado para o seu João. Meu sogro o obrigou a entrar.

- Vai ter de experimentar churrasquinho, né? - brincou.

O japonês foi logo se acomodando no banquinho de madeira e surrupiando uma lata de cerveja da caixa de isopor. Sorria o tempo todo. Aníbal largou a churrasqueira para recitar três piadas seguidas sobre japonês. O Yoshiko se contorcia de tanto rir...

- Caipirinha bom, né seu João? Tem mais um pouquinho?

- Cadê o som? - perguntei.

- Bem lembrado, Roberto! Trouxe uns CD s. Aninha!!!! Onde estão os CD s? - quis saber meu cunhado metido a gaúcho.

Aninha, sua esposa, respondeu com um palavrão qualquer, alegando que estava ajudando a mãe na cozinha. Mas acabou trazendo o microsystem e os famigerados CDs. Aníbal, mais uma vez, distanciou-se da churrasqueira e se apoderou do equipamento. Homenageou-me com a terceira música do CD, colocada no último volume. Dona Eugênia abriu a janela da casa ao lado e fez cara de maus amigos. Contudo, acabou dando um sorriso amarelo e acenando uma aprovação. De certo se lembrou do baile que o filho mais novo promoveu na semana anterior, varando a madrugada. Meu sogro disse que chegou a ficar excitado ao ouvir uns gemidos que vinham do fundo do quintal alheio, lá pelas três da manhã. Decidiu não reclamar, pois sua velha já estava no terceiro sono. Fiquei pensando se os pais da minha esposa morassem nos arredores de Nova Iorque. Por um momento senti o gosto sem graça dos hambúrgueres torrando na churrasqueira. Imaginei também a formalidade do convite e as desculpas esfarrapadas para tentar não comparecer. Que é isso, Cristina? O vizinho do seu pai é japonês! Não está lembrada da Segunda Guerra? Além do mais, para chegar até lá, temos de atravessar aquele bairro negro...

- Como vão, senhores?

Meu delírio se desmanchou com a chegada do TJ, irmão mais velho da minha mulher. Tomás Joaquim odiava o nome - herança do avó. Ainda mais depois que foi promovido a gerente comercial de uma conceituada multinacional. Sua mulher e o pirralho intelecto-chato sequer nos cumprimentaram. Levaram o presente do avó para a sala de estar e se acomodaram por lá. TJ se esforçava para ficar entre nós. Detestava futebol. Quase sempre entrava em conflito com o Claudinho por causa de suas divergências políticas. Mas procurava ao menos ser simpático. Sua mulher, entretanto... Pediu licença para dar um beijo na mãe. Só voltou depois de muito tempo.

- O que temos aqui? - quis saber nosso companheiro executivo.

Lá pela uma e meia até mesmo TJ já tinha embarcado na caipirinha e começava a falar enrolado. Até arriscou alguns comentários sobre a última convocação da seleção. Mas sua mulher começou a aparecer de dois em dois minutos na porta, olhando feio. Dirigiu-se à sala e esparramou o corpanzil sobre o sofá, sem condições de terminar o almoço. Vera Lúcia nem tentou acordá-lo. Pegou o filho pelo braço, puxou a chave da calça do marido, despediu-se da sogra e das cunhadas e saiu em disparada para casa. Seu João, Aníbal, Claudinho e eu não tivemos condições de experimentar a maionese. De tanto beliscar o churrasco e pisar o pé no balde, não havia mais espaço sequer para uma azeitona. Dona Alzira nos xingava.

- Roberto, vamos embora? - sugeriu minha mulher.

- Mas meu amor... Justo agora que vamos jogar um baralho?...

Hoje, quando acordei, entendi um pouco melhor o Brasil e os brasileiros. Com ressaca e tudo fui para o trabalho. Se fosse um europeu, talvez não tivesse me excedido na bebida. Provavelmente teríamos assado uma costela e nos dado por satisfeitos. É provável também que nossos filhos estudassem em escolas públicas de qualidade. Mas, por outro lado, não assistiria às cenas que presenciei. Eu mesmo olhei para o Thiago e o imaginei crescendo, passando por tudo aquilo que estava vivendo naquele momento. Desejei ver meus netos pulando sobre o sofá, esvaziando os pneus do meu carro na garagem e derrubando o vaso chinês que ganhei de um amigo que foi ao Oriente. Daqui a um mês é aniversário de casamento dos meus sogros. As histórias se repetirão. Inclusive aquela que não presenciei, mas que minha mulher me contou, quando cheguei em casa à noite.

- O que será que sua mãe fez com toda aquela maionese? - provoquei.

- Ela levou para o asilo. Você estava bêbado e não viu, mas enquanto vocês enchiam a cara, estávamos fazendo um bolo para levar para os velhinhos comemorarem o Dia dos Pais.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui