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Contos-->O Executivo e a Dama Pé de Cabra -- 21/11/2003 - 21:52 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este homem vivia sozinho no seu vasto apartamento de solteiro, três divisões capazes de conter uma família multi-racial da Musgueira, com mais de três gerações de almas. Ginásio, Health Club, circuito de vigilância, creche para possíveis crianças, relvado a perder de vista... Este homem sentava-se também numa ampla cadeira de espaldas em escritório virado para o sol que lhe iluminava os passos desde o dia em que nascera. Este homem tinha um futuro brilhante à sua frente, mas não estava feliz, na manhã em que decidiu tirar umas férias por sua conta.
Abandonando clientes e contratos, papeladas e lideranças pediu licença sem vencimento por tempo ilimitado... Este homem não sabia que os minuciosos preparativos que empreendia se destinavam a uma viagem para os confins do tempo sem rosto, onde um homem se defronta consigo mesmo e com a morte, nas malhas do silêncio.
Tinha sede de planícies, emaranhado de raízes, selva inculta, terra nunca vista nem pisada, ansiava transformar-se num moderno explorador de condições climatizadas, onde houvesse lugar para a aventura, sem nunca cair nos vorazes abismos e armadilhas dos antigos pesquisadores do sonho... Por isso, partiu.
Mas como já poucos paraísos restam sobre a terra, o nosso executivo não foi para muito longe, sobretudo porque queria evitar os aviões e toda a voracidade própria da civilização, aquela que come o tempo e quebra o sabor das distâncias a percorrer. Munido de um todo o terreno alugado e apetrechado com todo o equipamento que lhe souberam vender, caça, pesca, campismo, ele que se lança em busca de fragas inóspitas, sítios onde o criador não pôs o dedo, na memória os textos de Herculano, Antero de Quental e Aquilino, um moderno Eurico, o Presbítero em busca da verdade das coisas. Foram dias e dias de sol cretando-lhe o rosto, na euforia de comer quilómetros, como quem encurta a distância de uma amada, na prossecução de um sonho sem contornos, mas perigosamente promissor. Estacionava onde podia, e perdia-se depois pelos ermos em busca do silêncio das almas perdidas, aquele onde não ouvimos mais que o piar das aves e um arrepiante eco de solidão.
Numa dessas caminhadas este homem sentou-se sob uma árvore a chorar. Não sabia bem por que o fazia, mas sabia-lhe bem exaurir-se em soluços e espantar da alma coisas mortas, uma espécie de lava arrefecida que se tinha depositado em resíduo calcário de dor ignorada. E enquanto chorava, revia a sua vida organizada e sem aparente sentido. Um caminhar por trilhos vigiados, climatizados, seguros por mil cláusulas contratuais com a própria vida... Como uma harmonia exterior, desenvolta e fácil, em que os ecos citadinos encobriam o cristal partindo-se dentro de si.
Parou de chorar quando ouviu a voz. Não seria exactamente uma voz, mas um sopro de luz, na escuridão do dia. Como uma ave celestial em voz de mulher. Ergue-se com um arrepio a percorrer-lhe a espinha, talvez o primeiro momento de verdadeira emoção, rasgando-lhe os sentidos, desde que se lançara nos braços da aventura. A voz agora é riso timbrado, uma cascata de riso escorrendo pelo vale, o pio das aves subitamente emudecido, como se transformadas em pedra ou húmus de silêncio. Virou-se o homem para perscrutar o horizonte, mas o riso vinha de perto, como se o céu se houvesse aberto num sorriso, para soltar um anjo brincalhão...
Então, viu-a. Sentada num dos ramos da sua árvore do choro, balançando as pernas, umas botas altas de montar, calças justas, uma fita vermelha nos negros cabelos, a expressão corada e feliz de quem habita a natureza. Poucas palavras foram ditas. Apenas a ajudou a descer, sentindo na mão que lhe estendeu uma descarga de prazer, como quando recebemos um inesperado choque ao mudar a lâmpada do tecto, mas algo que lhe despertara inequivocamente os sentidos para o amor. Depois, preso dos seus olhos pequeninos e brilhantes, o verde incandescente de pradarias do paraíso, caminhou com ela pelos campos, como quem caminha pelos anos de mão dada com o sonho.

Não permaneceram muito tempo na natureza. Ela queria ver o mundo, ele queria mostrar-lho. Partiram na viagem de regresso, o homem sentindo cumprida a sua saga de aventura, ela sempre calada, naquele silêncio hostil de quem nada pede e só o riso quebrava. E ele palhaço, malabarista de palavras, trejeitos, lacunas de pensamento, propositados erros, um gaguejar de linguagem para a fazer desabrochar em riso e electrizá-lo de novo, na urgência de possuí-la à beira dos caminhos. E ela rindo, se entregava mansamente, brindando-o com a ferocidade do seu sentir. Amava como as feras, arrapenhava-lhe a pele como as feras, cravava-lhe o desejo como as feras e perdia-se nele com a inconsciência das feras. O homem sentia-se feliz e sonhava com ninhos climatizados de crianças de rumo igual ao seu, conforme seus pais antes dele haviam feito, na história familiar da liderança do destino. Ansiava por partilhar com ela a sua banheira de meia-lua, o seu mundo de certezas e confortos e por isso acelerava contra o vento, silêncioso também, absorto na contemplação do seu tesouro novo.
Foram noites de delírio e dor, sempre que algo novo lhe preparava, um novo cenário, uma nova configuração dos rituais, festas de fantasia e erotismo, para a arrancar da solidão e do silêncio. Era como se ela só existisse no amor. Fora dele, deambulava pelos lugares como fera enjaulada fazendo o reconhecimento dos seu novo mundo sem luz. Não a sentia triste. Apenas evasiva e alheia, presa ali mas solta algures. Até que, numa noite de vendaval, encenou com ela um novo jogo, na tentativa última de lhe dar a conhecer a ternura, como se lhe desse a provar um novo fato, uma nova pele, mais humana e terna...

As palmeiras oscilavam como plumas nas mãos de escravos indóceis e o vendaval varria incansável o areal da praia. Noite de demónios soltos nos caminhos, escuridão eterna na face obscura da noite sem lua. Rugia o mar invectivando as rochas e o temporal penetrara a fundo nos ossos e sentidos. Barcos apitando nervosos entre as vagas, a barra sul com seus baixios e o farol amigo do Bugio, rodando sereno na sua voz de silêncio. E em terra a esperança de um abrigo, um sucumbir à tempestade num sono frio de pesadelos e lutos pressentidos.
Por isso, porque naufragava um barco perdido no seu peito, antes dela chegar, tomou no bar um leve aperitivo. Lembro-se do olhar recolhido, o medo do mau tempo, a excitação de a esperar e a raridade de a encontrar naquele hotel, tão indefesa construção frente ao mar. Recorda-se que o empregado lhe cerzia os olhos dos seus, curioso de um homem que espera uma mulher, para mergulhar com ela naquela noite de breu, num pacato hotel à beira de uma mar encrespado. Ele de olhos baixos, ruborizado de antecipação, afogueado de desejo, níveo de vergonha pela exposição óbvia do seu sentir, o tempo arrastando-se enfadado num hotel sem gente. Então, a meio do aperitivo ela chegou.
Enlaçaram-se os olhos e um sorriso lhes uniu as mãos. Eram os amantes do vendaval. Não havia susto nas suas pupilas, mas apenas o lustro do mais puro ardor lhes varria o olhar e uma coisa indefinida, rolando pelas pálpebras no pestanejar dos olhos. Algo como um rubor de ternura, a vontade de um abraço mais profundo que o negro oceano, mais forte que o rumor das vagas nos rochedos.
Subiram, conversando muito pouco e pouco calmamente, atropelando palavras, respirando olhares com aquela inexactidão dos amantes que o são apenas na consubstanciação dos corpos. Naquela noite, porém, parecia-lhe a ele, que finalmente levavam um abraço no horizonte dos seus passos. No elevador ela premiu-o contra o seu corpo, e não foi de ternura apenas ou de desejo o seu enlace, foi da urgência de se sentirem e se tocarmos como reais para além da encenação, ou para melhor cumprirem as didascálias da clandestinidade, sentindo nela o proibidido fruto dos corpos, as suas curvas, os seus contornos desconhecidos, como exploradores que abarcam a montanha a escalar.
Quando entraram na intimidade de uma noite, o seu corpo era já dela, aladas as suas mãos de fera no seu pescoço, no seu peito, os lábidos ávidos sugando a pele, a alma a carnação do sonho. E ria, ria nervosa, com aquele riso em cascata que acende mais e mais o desejo. Podia ser uma noite igual a tantas... Mas, por um momento ele parou-a como se suspendesse o ardor dos corpos para medir o das almas. Ela sentiu o magnetismo do seu olhar nela seriamente deposto, em oferenda final. Ficaram assim por um segundo, um bebendo a alma do outro, prisioneiros na sua, ela recusando-lha, ela resistindo, medindo-se de forças no olhar. E nesse instante mágico, souberam que o abraço era inevitável eEncontraram-no sozinho, no dia seguinte.

Encontraram-no de manhã meio prostrado, o pescoço sangrando, os membros gelados. A morte bailava-lhe no olhar fixo, a ver o mar para lá do mundo. A seguir a uma noite de tempestade, vem sempre uma manhã de tormenta. Para este homem, só muito mais tarde virá a bonança. Chamaram uma ambulância. Levaram-no dali. Dela nem as roupas ficaram. Apenas, mais tarde a arrumadora dos quartos viu uma fita de cabelo vermelha entre os lençóis. O recepcionista que era novo no hotel, titubeava desculpas, seguro que não adormecera durante a noite, e certo que não vira sair dali nenhuma alma viva, mulher ou homem que fosse. O mistério percorreu o hotel de alto a baixo, como vaga que o varresse. Ainda por cima havia a história do cão. Uma podenga muito dócil que encontraram ao lado do homem e que o recepcionista jurava não ter visto entrar... Como castigo obrigaram-no a ir pôr o bicho no canil municipal, apesar do testemunho do barman que confirmava ter visto apenas um casal.

Um quarto de hospital, luzes intensas, cheiro a éter. Este homem recorda agora a noite em que se emaranhou nas suas próprias redes. Recorda o beijo intenso, a ternura pela primeira vez revelada, os corpos perdidos num amor profundo, humanamente entretecidos de pausas para a doçura, um vórtice que os uniu sem desespero pela primeira vez o amor no sexo. Suave o fluir dos corpos, doce a fonte onde se banharam, macio o leito que os acolheu no sonho das almas fundidas. Ela era agora uma mulher.
Quis beijar-lhe o corpo, percorrer-lhe pela primeira a vez a pele, num passar de dedos, lábios, face, com uma doçura de amante, pois que não lhe fugiu como dantes fazia. Mas ela resistiu. Sem bem saber por que o fazia, desta vez ele insistiu e foi brutal. Levanta o lençol, disfarçando em riso o seu gesto, e vai para mergulhar nas suas pernas longas, perfeitas pernas de mulher, cochas cheias de mulher, mas... pés em forma de casco de caprino... Pausa de silêncio. Terror. Desagua-lhe na boca um "Meu Deus!" e nos dedos o sinal da cruz. Acto contínuo, sai-lhe a mulher de entre os braços, esfuma-se em nada com um ruir dos céus, abate-se no quarto um clarão de luz, e um véu de inconsciÊncia cobre o homem, no momento em que sente o arremesso de um cão e dentes que se lhe cravam na garganta, donde o grito nem chega a sair.
A ferida não é grave, diz-lhe o médico. Pode sair. Virá a polícia, querendo saber. Vieram. Ainda hoje o tramam com perguntas e mais perguntas. O cão é a explicação de tudo. A rapariga? Saiu a meio da noite e o recepcionista não viu.
Este homem continua hoje tão executivo como outrora seu pai foi, mas mais frio nos negócios que seu pai, desalmado nos despedimentos e nas expropriações, gelado nas ordens e bons dias. Frio. A sua lógica é a do pensamento. Dentro de si, um vendaval permanente. A sua alma perdeu-a, na noite em que jugou e ganhou a dela. Maior agora a sua casa, maior o bem-estar a quem o desse, menor porém o dom de tecer partilha. Este homem vive agora ainda mais só, com a única companhia de uma podenga muito negra e dócil. Dizem que fala com ela, nos ermos e penhascos deste mundo. Dizem que morreu numa noite de tormenta. Mas ele sabe. Os homens podem traçar o seu destino, mas sempre será o destino a traçar os homens.

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