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Contos-->O QUINTAL - Parte I - A cidade de Bambú -- 16/11/2003 - 01:00 (Edson Campolina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O QUINTAL – Parte I
A cidade de Bambu

Nosso quintal formava um grande retângulo de terra em aclive. Oferecia possibilidades várias de brincadeiras. Mas tínhamos a limitação das épocas certas para cada uma. Começava atrás do galinheiro de nossa mãe e do galinheiro de nossa avó, divididos por um corredor que levava-nos às plantações de milho, feijão, mandioca, milho de pipoca, abóbora e, em raros anos, melancia e amendoim. Um cantinho era reservado para as bananeiras e os mamoeiros.

Nosso pai aproveitava de tudo. Até a cerca de arame farpado com taquaras de bambus entrelaçadas servia para o cultivo do chuchu que, plantado à beira, trepava pela cerca se alastrando por todos os lados, assim como as buchas vegetais. A cerca ficava verde e a umidade logo apodrecia as taquaras. Estávamos sempre ajustando, emendando ou trocando as taquaras. Buscávamos as longas varas nos bambuzais à beira do ribeirão Felipão. Vínhamos arrastando-as pelas ruas, morrendo de vergonha.

Dividindo o quintal, um chiqueiro que, por sua vez, era dividido em dois cômodos de alvenaria à meia altura com telhado de madeira e telhas de argila. Um cômodo para os barrões, já em ponto de sacrifício, outro para as leitoas e seus leitõezinhos. Tudo com piso de cimento com caída para os fundos, onde aberturas escoavam para uma vala a água usada na limpeza diária. Da vala tirávamos com uma enxada o estrume que, amontoado ao sol para secar, era misturado com o estrume dos galinheiros e espalhado no quintal como adubo. Às vezes usávamos o estrume das galinhas para adubar os canteiros da horta.

As folhas do feijão, as de batata doce, que brotavam sozinhas em algum canto, e as folhas de amendoim eram complemento aos restos de comida e cascas de legumes. Misturávamos tudo em um farelo que nosso pai comprava, dando uma consistência pastosa ao bufê dos porcos. O milho era cultivado para mingau, para assarmos nas brasas do fogão a lenha de vovó Cocota, para as galinhas e, as espigas piores, para os porcos. Era uma tortura a época de colheita. Tínhamos que debulhar as espigas e armazenar em tambores de metal. Depois, para alimentar os pintinhos, triturávamos em uma máquina manual de moer. Nosso pai selecionando as palhas para cigarro. As de milho de pipoca eram preferidas pela textura e espessura. Todas as tarefas eram divididas e distribuídas pela criançada. Os restos de mandioca e aquelas que não se desenvolviam como esperado, também iam para a dieta do chiqueiro. Talvez por causa desta dieta o estrume não tinha tanto mau cheiro. Os porcos eram basicamente vegetarianos. Nunca adoeciam e eram bem limpinhos. Nos divertíamos lavando-os com vassoura e mangueira d’água.

No corredor que dividia os galinheiros, fazendo a entrada para o quintal, um antigo pé de mexericas azedas, com galhos pretos e lodosos, folhas muito verdes, que quando frutificavam suas flores, passava de um colorido verde e branco para o verde e amarelo em suas copas que atravessam as cercas de tela de arame dos galinheiros. Por incrível que possa parecer, as galinhas comiam as mexericas que caíam em seus terreiros. Até hoje nosso pai não sabe que aquela mexeriqueira era nossa principal fornecedora de forquilhas para nossos bodoques.

Como o terreno era em aclive, quando chovia a enxurrada abria uma pequena vala no corredor. As raízes da mexeriqueira seguravam a terra em sua volta, formando assim um pequeno platô em sua base. As goteiras de seus galhos pingavam na terra e formavam pequenas crateras. Ali instalávamos nossa cidadezinha de bambus.

Com as trocas das taquaras da cerca do quintal, separávamos as mais secas e cortávamos em pequenos pedaços, como palitos de picolés. Aproveitando a estação chuvosa, com o chão sempre macio, construíamos nossas pequenas casas, currais, garagens, escola, fazendas, hospital, delegacia e até cemitério.

Nosso irmão Ângelo sempre fora o mais criativo. Eu o mais novo dos homens à época. Depois o Cláudio, o Ângelo e o Magela. Mas o Magela nunca estava conosco. Já se mudara para uma cidadezinha chamada Florestal para estudar numa escola agrícola. O Ângelo seria um engenheiro ou arquiteto ou pintor. Era o que imaginávamos diante de sua criatividade e habilidade. Mas nunca somos o que sonhamos quando crianças. Eu queria ser piloto de caça.

Alguma coisa de proibido sempre tinha em nossas brincadeiras. A construção da cidade de bambus requeria o uso de ferramentas que somente no paiol de nosso pai poderíamos encontrar. Chamávamos de quartinho. Eram dois. Separavam a horta dos galinheiros. Num guardava-se as ferramentas pequenas, pregos, parafusos, enxadas, alavancas, foices, machado, pá, picaretas, uma machadinha que parecia indígena, pelo menos para nós, peneiras, colher de pedreiro, arames, vasilhames e muita parafernália. O outro quartinho para os mantimentos estocados, produtos de limpeza doméstica, querosene para as lamparinas, higiene, material escolar, um baú velho e o barril de milho.

Somente o quartinho de mantimentos tinha chave. Mas facilmente a conseguíamos com nossa mãe se fosse preciso. Bastava a necessidade na cozinha de algum mantimento. Alguém sempre estaria disponível para buscar. O outro quartinho era fechado com um barbante amarrado em dois pregos. Um prego na porta e outro no beiral de fora. O meu problema era a altura em que os pregos estavam na porta. Cresci tarde. Não dava pra usar alguma cadeira ou caixa pra subir, pois havia dois degraus na porta. Por muito tempo dependi de um irmão ou irmã para desenrolar o barbante. Era preciso lembrar sempre de lavar e guardar as ferramentas usadas na construção de nossa cidade antes de nosso pai retornar do trabalho. O martelo e a machadinha para fincar os palitos de bambu no chão. O facão e outras facas para o corte e afinamento dos palitos. A colher de pedreiro para a terraplanagem.

Delimitado o perímetro urbano de nossa cidade, sob a sombra da mexeriqueira, dividíamos os cantos para cada um dos proprietários. O Ângelo sempre ficara com a responsabilidade dos equipamentos comunitários, escola, prefeitura, hospital, delegacia. Fincava o primeiro pavimento com os palitos alternados no tamanho. Um baixo e outro alto. Ligava os baixos com pedaços mais largos de taquara desenhando dentes em suas extremidades que se encaixavam nos palitos longos formando a laje do primeiro pavimento. Depois era só fechar o teto do segundo pavimento. Sempre variava na planta baixa de seus prédios. Nunca eram iguais. Por mais que tentássemos, nossas imitações resultavam em desmanche. Às vezes com uma destruição catastrófica, raivosa, por um pé gigante.

Os menores da prole, eu, minhas irmãs Edna e a Rita nos limitávamos a fazendas e currais. Divertíamos mais com as manguinhas catadas no chão que transformávamos em vacas com pés de palito. O rebanho variava de bezerros, garrotes, vacas e touros chifrudos. Estradas eram abertas ligando as habitações. Pavimentadas com pedrinhas, cacos de telhas e meio-fio de palito de bambu. Porteiras e até mata-burros. Uma praça com árvores de ramos de grama, bancos de pedra e uma pequena cratera formada pelas goteiras como lago.

Na medida que a cidade se desenvolvia, ficava pequena para três ou quatro de nós brincar ao mesmo tempo sem que esbarrões ou tropeços em cercas, casas ou pezões em estradas acontecessem. E acontecendo era motivo de briga e desavenças. Começava então o alerta de nosso pai. Sabia ele que nossas pequenas posses limitavam suas possibilidades de nos presentear com brinquedos convencionais. Por isto, às vezes, indiferente para nós, negligenciava algumas brincadeiras e furtos de ferramentas, até mesmo admirava nossa criatividade. Mas sempre avisando:

_ Alguém pode pisar nisso e se machucar.
Alertava.

_ Vocês estão machucando as raízes da mexeriqueira.
Reclamava.

_ Vou acabar com isto já. Ta dando confusão.
Ameaçava.

_ Amanhã não quero ver nem um pauzinho fincado no chão. Trata de tirar tudo.
Ordenava.

Era o prenúncio de uma catástrofe. Um terremoto, uma enchente, um incêndio ou o mais comum: um gigante mau ou um monstro do Ultraman. Invariavelmente, quando as desavenças pós-construção surgiam, aos poucos a cidade era abandonada. Os danos causados pelas brigas raramente eram reparados. O frisson da brincadeira era sua construção e destruição. Destruição que nem sempre era em equipe, como sua construção. Um aproveitava a ausência do outro para destruir seus feitos. A vingança viria em seguida e em pouco tempo a destruição seria completa. Na próxima estação chuvosa, antes da colheita, outra cidade surgiria. Até que a infância fosse esquecida.


Por: Edson Campolina
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