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Contos-->Um dia completo -- 14/11/2003 - 22:39 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Silvio acordou cedo, disposto e, como era costume às sextas-feiras, cantarolando. Cantarolava uma música bastante conhecida, porém não se lembrava do nome, e nem da letra da mesma. Era sempre assim, as palavras desconhecidas eram substituídas por um amontoado de vogais e consoantes, que acabavam por remendar a canção, preservando as rimas e até mesmo o sentido das letras.
Era a primeira sexta-feira de outubro, um dia que amanhecia sem uma nuvem sequer ao céu. Como era cedo, o calor não estava incômodo, como viria a ser ainda antes do meio-dia, trazendo o verão para dentro da primavera.

São Paulo, em outubro, apresenta sempre as mais malucas variações de clima e temperatura, não sendo raros os dias de frio que demandam cobertor alternarem-se com dias de calor que exigem aparato de verão escaldante, como ar-condicionado e ventilador.
Silvio sabia, por conta de seus trinta e seis anos intensamente vividos, que aquele seria um dia muito quente, ainda mais para ele que teria que caminhar bastante, especialmente pela tarde, quando o astro-rei tornar-se-á impiedoso demais.

Roberta estava dormindo, como sempre acordaria antes que Silvio saísse do banheiro do quarto. Era até irritante essa rotina, Silvio saía do banheiro, com os cabelos molhados e a toalha de rosto jogada sobre os ombros, e deparava-se com Roberta pronta para o seu turno de higiene matinal, em pé, preparada para o dia que viria, com os cabelos alinhados, negros, lisos e escorridos, divididos bem ao meio, criando um efeito de sombra no rosto formoso que sempre fora um motivo de orgulho machista para Silvio. Engraçado como ele sempre reparava naquela leve sombra causada pelos cabelos no rosto de Beta, e isso sempre causava uma leve impressão de “dejá vu”, muito embora Silvio nunca tenha comentado isso com sua esposa, nem com ninguém.

Aquele era um dia especial, Silvio estava nitidamente radiante, e não sabia porque. Sem dor nas costas, sem espirrar ao se levantar (hábito recorrente nos últimos anos), sem reclamar de algo que teria que fazer durante o dia, sem sequer praguejar em silêncio, outro de seus hábitos matinais.
Talvez o maior motivo disso fosse o fato de não ter que trabalhar naquele dia. Provavelmente era isso. Após meses de negociação, ele conseguira o tão sonhado emprego na agência de publicidade de seus sonhos. Desde o início do ano, com aquele telefonema misterioso que acabaria por se transformar numa entrevista, ele estava sonhando com aquele emprego.

Engraçado, Silvio sempre fora avesso ao relacionamento emocional entre funcionário em empresa, sempre vira a relação capital – trabalho como algo nocivo, predatório. Sempre tivera para si, e para os mais próximos, que nada feito por obrigação poderia ser bom, pelo menos para quem era obrigado.

Mas nesse caso era diferente. Desde quando estava na faculdade, ainda um anteprojeto de publicitário, ele cultivava uma admiração quase infantil pela Publimagem. Era seu sonho de empregado, trabalhar naquele prédio, freqüentar o barzinho do térreo, com suas mesas metálicas na calçada, os publicitários mais renomados do Brasil bebendo e rindo de piadas que só um publicitário seria capaz de compreender. Ele se imaginava adentrando as portas de vidro da recepção principal, cumprimentando todos pelo nome e sendo alvo de comentários invejosos de seus colegas, que se dividiriam entre a admiração por ele, seu talento e seu carisma, e ciúmes do seu ótimo relacionamento com o Bobby. Aliás, o Bobby seria um capítulo à parte em sua vida profissional. Bobby era o apelido do Roberto Salesiano, o mais alto expoente da publicidade brasileira, laureado em todos os festivais ao redor do mundo, desejado por clientes os mais diversos, autor e protagonista dos maiores “cases” da propaganda brasileira nos últimos 20 anos, o dono, coração e alma da Publimagem.
Sonhava em ser íntimo do Bobby, já se via brincando com ele a respeito de alguma derrota do Santos, seu time do coração, e já podia até ouvi-lo, com sua voz sempre muito rouca chamando-o por “palmeirense”, com ar de intimidade amiga.

Na tarde de quinta-feira despedira-se de seus colegas na agência onde trabalhava desde os tempos de formado com nada mais que a mínima tristeza necessária, e mesmo assim com uma certa pantomima. Chegara a ensaiar um quase-choro, mas percebera ser muito canalha simular isso tudo. Não estava nada triste. Sentiria saudades, mas estaria praticamente do outro lado da rua, dois minutos andando do escritório atual. Chorar seria falso demais, pois almoçaria com aqueles caras mais do que almoçava nos dias atuais, com sua constantes crises de saco-cheio que o afastavam da vida social com o pessoal do trabalho. Além disso estava realizando um sonho de mais de quinze anos, o que reprimia qualquer sentimento negativo naqueles dias.

Por isso aquele dia era mágico para Silvio, por mais que esse trabalho viesse a ser perfeito, não seria tão bom quanto nos sonhos dele. Em seus sonhos ele flutuava pelos corredores forrados com fotos do cotidiano da agência, distribuindo sorrisos, sendo alvo das atenções de todos, ocupando papel de destaque por ali, atolado em respeito, recebendo cantadas descaradas de beldades disputadas no meio publicitário, requisitado para festas e disputado para cafezinhos informais na copa do escritório.
Ele era muito sonhador, mas não um idiota. Sabia que nada daquilo aconteceria de verdade, nada, mas o que quer que venha, será bem-vindo, só por ter aquele crachá laranja e preto, ele já seria um cara mais realizado do que jamais fora na carreira.
Portanto, aquela sexta-feira, 4 de outubro, estava matematicamente caracterizada como o dia mais legal de sua vida. O mais feliz era o do casamento, muito embora estivesse apenas aguardando o primeiro nenê do casal nascer para ser deslocado para o segundo lugar, mas ainda não estavam programando esse evento. O mais triste fora o da a morte de seu tio, o Totó, um pai para Silvio, em todos os sentidos, afetivo, financeiro, profissional. Tudo nele tinha um pouco do Totó, que praticamente o criara desde que seu pai se fora, antes dele completar dois anos de vida.
E aquele era o dia mais legal. Sem trabalho, sem trânsito, sem pressa, sem responsabilidade nenhuma, com sol, emprego dos sonhos na segunda-feira, dinheiro no bolso, e ainda por cima uma sensação extra de liberdade, felicidade. Tinha vontade de correr e dar uma estrela dentro do próprio quarto.

Beijou Beta na testa, pois ela nunca o beija na boca antes de escovar os dentes, o que ele sempre viu como um pudor condenável, inibidor de intimidades, mas relevava. Beijou-a na testa mais uma vez e tornou a cantarolar, dessa vez imitando a vinheta de um programa de rádio matinal, deixando evidente que iria ligar o aparelho de som do quarto.
Após ligar o rádio e sintonizar naquele mesmo programa, riu bem alto e trocou olhares com Beta, pelo espelho da pia, ao ouvir no rádio o mesmo trecho da vinheta que estava cantando. Ela sorriu, fez cara de abismada e fechou a porta atrás de si, buscando privacidade, adequada para a situação.

Ficou mais feliz ainda ao escolher uma bermuda como parte do uniforme oficial do dia. Não iria ver ninguém que demandasse qualquer outro traje, bermuda estava ótimo. Escolheu uma camiseta branca, lisa, vestiu um tênis e considerou-se pronto.
Deitou novamente na cama, braços esticados em busca do alongamento perdido durante a noite, e pensou no que seria seu dia.

Beta iria passar a manhã visitando uma obra no Morumbi, e almoçariam juntos em qualquer restaurante que ela escolhesse. Nesse meio tempo, entre o café-da-manhã e o almoço, ele iria andar até o clube, onde cortaria o cabelo e tentaria arrumar um adversário para uma partida de sinuca. Esse era outro sonho que decidira concretizar, uma partida de sinuca no clube. Esse sonho talvez fosse ainda mais antigo que o da agência, menos intenso e forte, mas mais antigo.
Não foi difícil encontrar um parceiro para a sinuca, foi até que bem fácil. Enfrentou, em uma série melhor de sete partidas, um senhor japonês, que em quatro jogos liquidou com sua vontade de jogar. Silvio tinha para si que era um jogador de sinuca bem acima da média. Após a surra que levou do ancião, tentou lembrar de alguma surra que ele já tivesse aplicado em alguém, qualquer alguém, amigo, irmão, desconhecido, e não foi capaz de se lembrar de uma única vitória expressiva em seu currículo. Foi necessário levar uma sova, como dizia o Totó, para refrescar sua memória e traze-lo à realidade.
Concluiu que seria mais prudente para sua auto-estima procurar não se lembrar da performance em mais nenhum esporte, ou buscar em sua memória mais nada que pudesse desmascarar o conceito que tinha de si próprio. Na verdade, as coisas, após a lavada que levara do ancião japonês - com seu colarinho fechado até o último botão e seu colete de lã, ambos quase implorando por uma boina, para juntos comporem um visual do tipo aposentado-campeão-senior-de-sinuca - caíram num processo irreversível de verdade irrefutável, gerando um certo desconforto em Silvio.
Partiu tentando acreditar na estória que gostaria de contar - que perdera para o campeão senior do clube.

Já na rua, buscando lembrar de onde havia combinado de encontrar Beta para o almoço, ele se pegou cantarolando a mesma música da manhã. Mais uma vez tentou em vão lembrar de alguns trechos da letra da música, que foram substituídos pelos mesmos grunhidos daquela manhã, e ficou por isso mesmo.

Beta atrasou-se os tradicionais quinze minutos, que já nem mais irritavam Silvio como haviam incomodado nos primeiros anos de casado. Durante o namoro ela jamais atrasara o suficiente para ser registrado como atraso irritante, mas depois de casados, isso virou regra. Quando Silvio estava nos seus costumeiros dias de bom humor, ele brincava com ela que existia um fuso-horário entre ambos, que Beta estava sempre quinze minutos atrasada com relação a ele. Mas quando estava num daqueles dias, aquilo nunca era classificado como menos que desrespeito, falta de consideração e até de amor.
Bom, aquele dia era regra, e não exceção, logo Silvio e seu ótimo-humor estavam tomando uma batida de carambola, outra de suas fantasias do ócio, enquanto ele brincava com dois garfos, distraindo-se mais do que já estava distraído, quando Beta entrou.

Beta vale um parágrafo exclusivo, aliás, vale, para Silvio, tudo, tudo o que ele tem e o que jamais terá. Era lucro realizado, um sonho acordado. Era mesmo uma tremenda sorte sua, aquela mulher que durante quatro anos hipnotizara todo o contingente masculino da faculdade, que dera nome e sobrenome às fantasias sexuais daqueles pós-adolescentes, tivesse escolhido a sua cantada como a melhor da festa de formatura, e acabar fazendo daquela meia dúzia de beijos quase roubados um amor que prometia durar para sempre. Sortudo, não havia outra explicação. Beta era inteira bonita, por dentro, por fora, dormindo, bêbada, cansada, descabelada, fantasiada de feiticeira - aquela do seriado antigo de tevê, como sempre ia a festas à fantasia -, falando, cantando,... . Inteligente, fugira da carreira publicitária e fora trabalhar com o pai, numa construtora, onde fazia um papel de “olho do dono”, acompanhando as obras e cuidando para que tudo corresse como o planejado.
Os cabelos eram negros, lisos e sempre brilhantes, a boca sempre estava com um sorriso preparado, com seus lábios gordos e bem vermelhos, alta, ela exalava elegância, e conseguia ser magra sem parecer magra, ou parecia magra sem ser magra. Parece confuso, mas vendo-a de perto, da mesa onde estava Silvio, isso era naturalmente compreensível.
Os olhos azuis avisaram os lábios, que se abriram para mostrar os dentes, perolados, em forma de sorriso, quando viram Silvio ali, sentado, fitando-a com uma candura que só a espontaneidade pode providenciar para um cara como Silvio.
Era um dia perfeito, completo. Tudo o que queria estava acontecendo. Já sentia um leve torpor advindo da vodca da batida, e uma ligeira sensação de euforia assumira o lado romântico do moço.

O almoço foi espetacular. O restaurante era arejado, claro e ainda por cima servia uns pastéis de siri que eram famosos por toda a cidade, e fizeram a alegria gastronômica de Silvio que, sozinho, devorou quase uma dezena deles. Beta falou bastante sobre sua discussão com um mestre-de-obras gago, o que fez com que os dois chamassem a atenção dos outros freqüentadores do lugar com suas gargalhadas mais invejáveis que contagiantes. Mais de duas horas depois se despediram à porta do carro de Beta, e combinaram uma ida ao teatro na noite seguinte. Beta iria convidar um casal de amigos, e Silvio não precisaria fazer nada a respeito, apenas estar em casa antes das oito. Esse era o seu dia, um dia completo, e amanhã prometia ser sossegado, também.

Já eram quase seis da tarde quando Silvio entrou numa loja de CD´s a duas quadras de casa, após andar por mais de meia-hora vindo da casa de sua mãe, onde cochilou por duas horas no sofá da sala - o mesmo em que cochilava quando era criança, após os almoços de domingo, enquanto sua mãe e seus tios jogavam buraco, ou tranca. Mais um sonho do ócio realizado: Dormir no sofá da casa da mãe após o almoço num dia de semana, quando todos estão preocupados com clientes, verbas, anúncios, resultados, e outras coisas que foram extirpadas de sua vida por um dia. Dessa vez sua mãe não jogava baralho enquanto ele babava nas almofadas aveludadas do sofá, mas marcou sua memória ao falar da vida de suas tias e contar as últimas fofocas a respeito dos sócios do clube de quem ele jamais ouvira falar, como era costume da velha Iara desde sempre.

A loja de CD´s não era novidade para ele, aliás também não fazia parte de seu sonho de ócio. Ele era um assíduo freqüentador daquela loja, onde se escondia vez por outra e ficava por horas a fio escolhendo CD´s que nunca compraria, e comprando sempre no máximo dois, nunca mais de dois de uma vez. Não era uma regra estabelecida, nem acordo regulador de consumo com Beta, era apenas um fato, talvez uma mania desconhecida, mas não seria aquela sexta-feira uma exceção. Comprou dois CD´s. Pensara em procurar aquela música que havia cantarolado duas vezes naquele dia, mas ela fugiu-lhe da memória por completo, como que se escondendo para não ter seu mistério revelado.
Ele e seus dois CD´s partiram apressados rumo a um boteco bem próximo à loja, cerca de três quadras, onde iria tornar seu dia ainda mais completo.

Dinho e Lucas já estavam lá, sentados na mesma mesa de sempre, dos tempos de faculdade, do final da adolescência, das despedidas de solteiro, das comemorações e das fossas mais pesadas. O bom e velho Bar e Lanches Aritana, propriedade do não menos bom e velho Birigüi, que um dia teve Aritana como apelido, coincidentemente na época em que fundou aquele boteco simples e honesto, que era muito mais limpo, agradável e acolhedor do que parecia, e ficava exatamente no meio do caminho entre a casa de Dona Iara e a casa de Silvio e Beta.

Silvio havia apelado à amizade profunda e histórica que mantinha com aqueles dois irmãos para convencê-los a adiar por uma hora a viagem que ambos e as esposas fariam ao litoral para comemorar aquele dia.
Exatamente, a idéia era simplesmente comemorar o dia completo de Silvio, um dia sem chefe, sem responsabilidades, sem preocupações, só de sorrisos e devaneios, os mais diversos. Ele sabia que só uma amizade como a que mantinha com os irmãos Aquino seria capaz de enfrentar esposas furiosas e longas filas nos pedágios para comemorar um dia diferente, mágico, de um amigo que já os tinha convocado uma semana antes para comemorar o novo emprego no mesmo boteco.

As mesas e cadeiras de madeira, aparentemente frágeis (aparentemente, pois nunca vira nesses mais de quinze anos de assiduidade uma delas sequer assustar alguém com uma ameaça de tombo) passavam a Silvio uma sensação de lar, de pertencer àquele lugar, uma certa vontade de ficar por ali, passar ali seus dias, ajudando o Birigüi nas tarefas diárias e simples daquela vida pacata. As bebidas dispostas nas inúmeras prateleiras que cobriam as paredes pareciam sempre dispostas da mesma maneira, com as mesmas quantidades de bebida dentro das garrafas. Na verdade ele só conseguiu formar com sua memória imagens de pessoas bebendo cerveja e chopp. Ele mesmo já havia tomado porres homéricos à base de destilados naquele mesmo bar, mas não conseguia formar lembrança disso, só era capaz de formar imagem do copo americano com cerveja.
Os dois irmãos estavam lá, esperando por ele aparentemente há bem pouco tempo, pois seus copos ainda pareciam virgens e a cerveja estava ainda tampada dentro do balde de plástico que Birigüi insistia em manter no inventário do Aritana.
Lucas levantou-se e abraçou Silvio demoradamente, de forma até inesperada ele sussurrou um “parabéns” no ouvido do amigo e tornou a sentar-se, já tomando o abridor de garrafas em mãos. Dinho parecia um tanto agitado, nervoso, mas obviamente se esforçava em disfarçar. Ele nem se levantou, mas estendeu a mão e, após cumprimentar o amigo, abraçou-lhe a cintura, como que dando um “vale-abraço” em Silvio.
A conversa com a dupla foi superficial e agradável, variando sobre os temas superficiais de sempre, das conversas superficiais: futebol, trabalho, pitadas de política e economia de boteco, e um pouco de mulher, como não poderia deixar de ser.

Despediram-se os quatro, pois Birigüi juntara-se a eles na porta do Aritana, finalizando com um piada de mal-gosto, tradição do Birigüi nessas ocasiões, e deram-se as costas às gargalhadas, muito mais em função do praguejar de Birigüi ante a reação à sua piada que a ela em si. Dia mais completo impossível.

Quase em casa, de onde já podia ver o carro de Beta à porta, sua memória, que meio que o abandonara naquele dia, disparou um alerta, fazendo-o se lembrar dos dois CD´s que esquecera no boteco. Capitulou, mas avaliou que seria ideal voltar lá e buscar-los, principalmente porque um deles havia sido especialmente comprado para servir de trilha sonora para aquela noite, quando ele e Beta tornariam aquele dia realmente completo.

Meia-volta foi dada, e Silvio rumava apressadamente para o Aritana, quando reparou em duas meninas que iam à sua frente, altas, bem magras e com visual que não deixava dúvidas sobre o fato de serem modelos, ou aspirantes a, e com certeza ainda adolescentes.
De repente, um rapaz suspeitíssimo na opinião de Silvio, pois além de mal-encarado estava vestindo uma blusa de lã, folgada em pleno calor daquela sexta-feira, vindo na direção contrária, ao passar pelas meninas, deu uma meia-volta súbita e passou a acompanhá-las bem de perto, buscando ângulos que permitissem visão de seus braços, bolsas, pescoços. Era um ladrão - imaginou Silvio, e entes que pudesse imaginar mais alguma coisa notou o rapaz ajeitando um volume em sua cintura, nitidamente algum tipo de arma.
Silvio viveu um segundo de tensão vendo aquela cena. Aquela calçada estava razoavelmente cheia de gente, pelo menos vinte pessoas se espalhavam pela calçada nos mais ou menos quarenta metros que os separavam da esquina.
Num lance que foi muito mais instintivo e intuitivo que premeditado, estudado, Silvio acelerou o passo, tomou o cuidado de não ultrapassar o rapaz muito próximo ao seu ombro, tentando não parecer agressivo ou ameaçador, o que fez com maestria, e aproximou-se das meninas. Com uma voz que procurou fazer parecer confiável e firme, perguntou à que identificara com a mais branquela das duas se ela sabia as horas. A menina disse que não tinha relógio, mas parou para fazê-lo. Aquela era a deixa que ele queria mas não havia imaginado. Ele postou-se diante das duas e perguntou à outra se ela sabia as horas, no que obteve a mesma resposta. Perguntou às duas, ao mesmo tempo, se elas tinham pelo menos idéia de que horas eram naquele momento, já notando uma certa preocupação no olhar que uma dava para a outra. Porém, esses poucos segundos foram suficientes para que os três fossem ultrapassados pelo sujeito, ao mesmo tempo em que elas responderam quase em uníssono algo que ele nem prestou atenção, mas notou certa tensão no ar e nas vozes. Rapidamente ele explicou que achava que elas estavam para serem assaltadas pelo rapaz de pulôver verde, e enquanto os três olhavam o sujeito que ia à frente deles, o rapaz virou-se e topou com os olhares amedrontados das duas e o heróico de Silvio. O provável assaltante fez questão de olhar Silvio bem nos olhos, com o que deveria ser o seu olhar mais intimidador, no que foi correspondido por um aceno de cabeça e uma piscadela do herói urbano daquela sexta-feira.
Completo era apelido, aquele dia estava mais para perfeito. Até herói ele fora, e pela primeira vez, ainda por cima para duas moçoilas lindas que ainda o olharam como se ele fosse o Batman. Era o seu dia, sem dúvida era o seu dia.

Menos de dois minutos depois ele se encontrava ouvindo mais uma piada do Birigüi, dessa vez dividindo a platéia com mais um freguês assíduo do Aritana, o Pedro, um cara que via desde os tempos de colégio por ali, mas de quem não sabia nada além do primeiro nome.
Riu, por educação e misericórdia, de mais uma piada sem graça do Birigüi e tomou o rumo de casa.
Duas quadras após sair do bar, já quase duas quadras de casa, notou que o rapaz de pulôver vinha na sua direção. Sentiu um aperto no estômago, que não podia ser classificado senão de medo, mas não reagiu, nem picou, mas o rapaz passou por ele e nem o fitou. Não sabe se foi tática de seu subconsciente ou pânico misturado com sorte, mas o fato é que passara por aquele susto.
Dia completo é assim, tem até alívio, pensou ele com uma postura positiva, quase boba, que nunca tivera com relação a nada.

A calçada não estava vazia, na verdade estava tão cheia, ou quase cheia como estava há dez minutos, quando de seu ato heróico. Pessoas iam e vinham, aparentemente em busca de casa e da oficialização do final de semana.
Sua casa estava há menos de dois minutos dali. Já podia sentir o cheiro de casa, aquele que ele nunca notava quando estava lá, só quando não estava. Era uma forma olfativa de sentir saudades do lar.

Sem mais nem porque, uma dor aguda atingiu-lhe as costas. Uma mistura de calor, pancada e pontada aguda tomava conta do meio de suas costas, enquanto sentia ainda uma espécie de tranco empurrando-o um ou dois passos à frente. Aquilo queimou suas costas.
Suas mãos não eram capazes de encontrar o ponto exato que de onde vinha a dor. Nada lhe passava pela cabeça, apenas aquela dor que crescia e tomava maior área em suas costas.
Ouviu uma voz que falara algo como “pisca agora”, mas não fez sentido naquele momento.

Ouviu uma voz de mulher gritando por ajuda ao mesmo tempo em que sentia uma mão tomando-lhe pelo braço, tentando segurá-lo como a ergue-lo. Suas pernas perderam força de repente, e uma espécie de tontura fez com que preferisse cair, levando junto consigo a pessoa, aparentemente pequena, que tentava mantê-lo em pé.
Respirou, sentindo um pouco de dificuldade em puxar ar para o peito, abriu os olhos que fechara ao cair e deparou-se com um amontoado de desconhecidos a observá-lo com curiosidade e caridade. Uma moça, pequena, quase anã, tinha os olhos cheios d´água e pedia a ele que tivesse calma. Vozes se alternavam ao seu redor, nos mais variados tons e timbres, explicitando desespero, agressividade e talvez revolta.
Estava perdido, assustado, começou a pensar que estivesse enfartando, quando cruzou novamente o olhar com a moça baixinha e pediu-lhe que o levasse a um hospital, pois estava enfartando.
Ela nada lhe disse, mas passou a ele a impressão de que tivesse entendido o que dissera, e começou a sentir um líquido escorrendo em suas costas. Estava ferido, aquilo era sangue, tinha certeza.
Tentou levantar-se, com pouco controle das próprias pernas, e tornou a cair, dessa vez sobre seus joelhos, que não doeram como ele esperava, meio dormentes. Tentou levantar novamente, mas dessa vez foi contido por um rapaz forte, que o tomou pelo braço e procurou sentá-lo. Disse ao rapaz que não podia ficar ali, que tinha compromisso, que sua esposa o esperava, que voltaria mais tarde para resolver aquilo tudo. Disse que pagaria por tudo, que dinheiro não seria problema, que ele resolveria tudo depois, quando terminasse seu compromisso. Seu delírio alcançou o extremo quando disse que ninguém ali o conhecia, que não podiam impedi-lo de ir para casa, que poderiam falar com o Birigüi, que era conhecido por ali, que eles se arrependeriam daquilo.
Sentia frio, e a respiração ficava difícil, curta e improdutiva. Tossia muito.
As pessoas já formavam uma roda ao seu redor, falando muito, vozes sobre vozes, alternando mensagens de otimismo e pedidos de socorro.

Silvio estava boquiaberto, literalmente, assustado com o que estava acontecendo. Sua mente lembrava a de um bêbado, incapaz de concatenar raciocínios completos, e de entender o que se passava.
Súbito o frio cessou, e uma calma enorme tomou conta dele. Sentado, encostado numa porta metálica de um estabelecimento comercial fechado, ele levantou minimamente a cabeça que estava baixa, e foi capaz de mirar dezenas de pés, todos parados, e no meio deles a baixinha jazia ajoelhada, afogando-se no próprio choro e pedindo-lhe calma e força com uma boca torta de choro incontrolável.

Seus olhos abriram-se ao máximo, e ele mirou dois pares de pés calçados, um calçava sapatos finos, pretos e de amarrar, aparentemente novos e bem cuidados, e para uma sexta-feira à noite, bem engraxados. Ao seu lado estava outro par de pés, indubitavelmente femininos, calçando tamanco de madeira com faixa de couro branca, deixando à mostra um par de belos e delicados, além de bem-cuidados, pés.

Silvio apoiou-se nas duas mãos, e tentando num impulso se levantar foi ao chão, dando com a cabeça ao lado do par de pés, entre eles e a baixinha ajoelhada.

Um gosto estranho que lhe veio à boca naquele instante, com seu rosto já colado ao solo, lembrou-lhe os bebedouros do colégio, com sua água enferrujada às segundas-feiras pela manhã. Lembrou-se da escola, da água enferrujada, de Lucas e Dinho esperando no portão de casa pela carona de seu pai, de sua mãe jogando cartas, das garrafas eternas do Aritana. Sentiu o gosto de ferrugem lhe saindo pelas narinas, já não lhe doía mais nada.

A música voltou à sua mente, queria cantá-la novamente, mas não consegui comandar sua boca.
Olhou bem para aqueles dois pés que pareciam destacarem-se da multidão de outros pés e pensou: “Totó, Beta, que bom!"
- "Enfim um dia completo!”.
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