Usina de Letras
Usina de Letras
283 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62171 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22531)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50576)

Humor (20028)

Infantil (5423)

Infanto Juvenil (4756)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6182)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->ADEUS, MUNDO CRUEL -- 14/11/2003 - 22:20 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A cena era lamentável, digna de filme de arte francês de meados da década de setenta.
O cenário compunha-se de uma sala azulejada, com seus azulejos bege, alguns trincados, outros simplesmente faltantes, uma mesa de madeira rústica, gasta pelo tempo e pelos cotovelos e antebraços que ali apoiaram-se nos últimos quarenta anos ou mais, opaca, desprovida de todo e qualquer brilho ou charme. Havia ainda três frágeis cadeiras de madeira, todas com fundo e encosto de palhinhas, já devidamente esgarçadas, tornando certa a queda de qualquer desavisado que se aventurasse a sentar de maneira menos delicada em uma delas. Uma fruteira com duas maças totalmente fora de condições aceitáveis de ingestão, e uma pilha de jornais velhos, amarelados pelo tempo, jogada num canto próximo à janela, que não era aberta havia mais de dois anos.

Numa das cabeceiras da mesa, sentado no que deveria ser a mais resistente das três cadeiras, estava Silas, estático, semblante desolado, pensativo e vazio. Iluminado por uma luz amarelada, fruto de uma nesga de sol que passava espremida por entre frestas da janela.

O sol que iluminava, com dificuldades, aquela sala, estava ainda nascendo. Eram seis e dez da manhã de um terça-feira que prometia ser quente, como vinham sendo todas as últimas terças e demais dias daquele verão impiedoso na cidade de São Paulo.

Silas era um esboço mal feito e mal acabado do homem que fora durante noventa por cento de sua existência. Filho da classe média alta paulistana, fora criado a pão-de-ló, como fizera questão de sempre lembrar-lhe sua falecida mãe. Estudara nos melhores colégios, conseguira freqüentar a melhor faculdade de direito do país. Conhecia o mundo todo, ou quase. Poderíamos dizer que conhecia o que valia a pena conhecer no mundo. Falava línguas, podia-se apresentar como poliglota em qualquer roda que freqüentasse. Sua carreira, se não fora promissora e meteórica, jamais poderia ser classificada de medíocre. Advogava há quase vinte anos no mesmo escritório, onde é conhecido por levar a sério o que faz e por terminar tudo o que começa. Seu casamento acabara já há sete anos, e havia durado longos quatro anos. Brigitte era uma garota belga que ele conhecerá um seminário de direito internacional em São Paulo, ela era assistente de um dos palestrantes e Silas apaixonara-se no primeiro olhar que dera para a moça. Daí para o casamento passaram-se apenas três meses. Três meses de um amor louco, que parecia não caber nos pequenos corações dos dois pombinhos.
O casamento começou bem. Brigitte foi trabalhar em uma empresa de consultoria em comércio exterior, e a vida de ambos parecia cem por cento estabelecida, rumo à felicidade inevitável.
Mas, nem tudo é como se quer, e o casamento internacional terminou, deixando como saldo um coração partido, o de Silas, uma criança sem lar, o pequeno Pedro, e uma estória de traição e adultério que até hoje rende conversas em rodas da sociedade paulistana. Brigitte apaixonara-se por seu professor de yoga, e entre a paixão e o fim do casamento, passaram-se alguns meses, criando um longo processo de desconfianças e intrigas que acabaram por ruir com o equilíbrio emocional de Silas.

E lá estava ele, Silas, sentado mais uma vez na cabeceira daquela pequena mesa, que já vira dias mais gloriosos, como a época em que seu pai sentava-se ali, deliberando sobre os rumos da família, do país, do mundo. Ahh, bons tempos em que o velho ainda estava esperto, pensou Silas, lembrando instantaneamente da figura esquálida e desmemoriada que visitava semanalmente no lar para idosos. Não conseguia fixar seu pensamento em nada por mais de alguns segundos. Todo dia esperava o sol nascer ali, naquele exato lugar à cabeceira da mesa da copa. Seu sono era precaríssimo, durava menos de quatro horas diárias e era ponteado por sonhos ruins. Acordava diariamente antes do sol, e ficava ali, estático, aguardando a hora de vestir-se e ir para o trabalho, cumprindo uma rotina meticulosa e repetitiva, que já durava exatos seis anos. Saía de casa exatamente às sete e trinta da manhã, caminhava cerca de dois minutos da portaria do prédio onde mora até a padaria localizada na esquina do quarteirão. Rapidamente degustava um copo de café com leite, engolia um sanduíche de presunto e queijo e, jornal em mãos, dirigia-se ao ponto de táxi do outro lado da rua. Era assim há quase sete anos, de segunda a sexta, diariamente.


Mantinha as aparências durante o dia útil, conversava com os colegas de escritório, fazia algumas amizades, relacionava-se bem com os seres humanos ao seu redor. Obviamente, alguém com esse estilo de vida não acabaria conhecido por sua comunicabilidade e alegria, e era o seu caso, tinha fama de tímido e alguns o achavam estranho até demais, sempre almoçando sozinho e nunca frequentando os eventos sociais do seu meio. Cuidava de uma área bem específica do escritório, ficando a seu cargo os clientes com longos processos tributários, demandando de Silas um nível menor de exposição e relacionamento com pessoas.
Desde o divórcio sua vida mudara demais. No início procurou minimizar, mantinha um relacionamento bem próximo com Pedro, que na época tinha um pouco mais de três anos, passando com a criança fins de semana alternados de forma religiosa. Com o passar do tempo, Pedro foi crescendo e passou a se relacionar mais com o padrasto, o tal professor de Yoga, do que com Silas, o que foi minando o relacionamento entre pai e filho, tornando Silas cada vez mais sem uma referência familiar, um homem cada vez mais só. Sua família passou a ser sua mãe e seu pai, ela cada vez mais atribulada com o trabalho de corretora de imóveis, o que viria a matá-la num infarto fulminante, e ele já padecendo do início do que veio a saber-se ser Mal de Parkinson. Até a morte de sua mãe as coisas ainda pareciam reversíveis em sua vida, ainda mantinha os encontros quinzenais com Pedro, que cada vez mais mostrava menos interesse no pai, e tinha gente para dividir a tristeza crônica dos domingos à noite. Nunca foi de ter amigos, assim chamava os que conhecera no colégio e na faculdade, mas não havia ninguém de outra família que freqüentasse sua casa e com quem pudesse dividir qualquer sentimento ou momento não profissional.
A morte de Dona Iara e o diagnóstico da doença de seu pai, o que sobrara de seu mundo ruiu de vez. Passou dois meses em licença, cuidando do velho e tratando de acomodá-lo em uma clínica onde poderia receber atenção durante todo o dia. Percebeu-se absolutamente só, sem ninguém para conversar. Chegou a procurar antigos colegas mais chegados da faculdade, mas sentiu-se inconveniente antes mesmo de passar do estágio de amizade superficial. Seu pai já não o reconhecia, nem falava coisa com coisa, resolveu investir novamente no relacionamento com seu filho.
Mas, reconquistar, ou melhor, conquistar Pedro mostrou-se uma batalha inglória, foram dezenas de idas a parques de diversão, zoológico, cinemas e outras receitas de sucesso na conquista de filhos distantes, mas o pequeno parecia mais disposto a relacionar-se filialmente com o magricela pseudo-zen que hipnotizara sua mãe. Nunca mais mantivera um diálogo significativo com Brigitte, nem brigar brigaram, tudo foi resolvido da maneira proposta por Silas.
O golpe final viera há quatro semanas, quando fora buscar Pedro para um show de música infantil, quando ouviu, ainda no corredor que dá acesso à porta de entrada do apartamento do casal-zen: - Mãe, pai, o Tio Silas está subindo. Vou pedir pra ele me deixar aqui mais cedo para eu ir jantar com vocês. Não quero perder a pizza com sorvete.
Tio Silas? Pizza, sorvete?!?! Aquilo foi demais para Silas, que sentiu uma pontada acutíssima bem no meio do peito. Morrera ali, naquele momento sua vida esvaiu-se, virara poeira. Seu filho referira-se a ele como tio, chamara o sujeito que corrompera seu casamento e dera início a sua derrocada de pai, e demonstrara interesse em trocar o show que lhe custara duas horas de fila por uma pizza e sorvete. Virou e foi embora, sem jamais explicar à família o ocorrido.

Desde então seu sono diminuíra, sua fome tirara férias e seu ânimo decretara falência. Era um zumbi. Ele mesmo espantava-se em ver que conseguia manter certas aparências durante o trabalho. Ganhava bem, pagava uma gorda pensão para o filho, sempre em dia, e não gastava mais com nada. Não saía de casa quase nunca, vez por outra jantava com o pessoal do escritório para alguma comemoração, mas vez por outra era quase nunca.

Pensara em fazer análise, em buscar alguma explicação para sua tristeza, e alguma solução para o seu futuro. Mas desistira rapidamente. Melhorar para que? Para quem?
Ninguém poderia, jamais, dizer que ele não pensara em tudo o que acontecia o que acontecera em sua vida, era só o que ele fazia. Já pensara em tudo o que podia ser feito de sua existência, e não via nada de positivo. Ele concluíra que deixara passar oportunidades que quase ninguém perde. Ele passara quase quarenta anos sem formar uma rede de relacionamentos, e isso estava acabando com sua vida agora. Sua existência vista pelo âmbito social poderia ser descrita da seguinte forma: Nascera, apegara-se aos pais, conhecer um mulher aos vinte e sete, casara-se com ela, ela o abandonou aos trinta e dois, sua mãe morreu e seu pai desaparecera por detrás de uma doença sombria e, para terminar, seu filho passara a chamá-lo de tio antes dos dez anos de idade. Os que conhecia por amigos, tratavam-no por conhecido, às vezes colega. Essa era a sua biografia social. Certa vez concluíra que uma obra biográfica a seu respeito caberia num telegrama.

Havia algo estranho com aquela terça-feira. Silas não sabia o que era, mas algo havia de diferente com ele, com os outros, com o tempo, com os carros. Estava tudo diferente.
Parecia que ele teria um encontro naquela noite, ou que teria um prêmio para receber. Sentia-se como se tivesse recebido, por escrito, uma receita mágica para acabar com seus problemas, bastava executá-la e tudo ficaria bem. Isso foi se tornando incômodo com o passar das horas, aquela sensação de conforto era inadmissível para alguém com uma vida daquelas, uma ofensa à sua inteligência, na sua opinião, bem acima da média.

O dia foi passando e a sensação não ia embora, Silas resolvera que iria trabalhar aquela sensação durante a noite, iria vasculhar no seu íntimo e encontrar o porquê daquela sensação de liberdade das pendências que não conseguia gerenciar.
Chegou em casa e dedicou-se a decidir o que fazer de sua vida daquele momento em diante, e descobriu que jamais fizera isso, jamais pensara em tomar uma decisão, adotar uma estratégia, pôr a mão na massa. Aquilo era o que o seu subconsciente comemorava desde aquela manhã. Hoje era o dia “D”, o dia da decisão.

Ficou aliviado, não haveria mais manhãs como aquela, não haveria mais alvoradas na copa, geladeira vazia, secretária-eletrônica virgem, janelas lacradas e tédios colossais, aquilo acabara, agora ele estava prestes a criar um novo homem.

E a noite se foi em meio a debates solitários sobre os caminhos possíveis, atitudes corajosas e estratégias mirabolantes para tornar digna e significativa a sua existência.
O astro rei já começava a lançar seus primeiros raios sobre o edifício Cinderela quando Silas pulou da cadeira e gritou um “eureca” bem alto, dirigindo-se em seguida para o quarto e voltando com caneta e papel em mãos. Redigiria ali, naquele exato momento, sua carta de despedida. A partir daquele instante tornara-se um suicida.

A decisão fora elaborada, mas não fora difícil. Fazia total e absoluto sentido prático acabar com a sua vida. Na sua opinião, a vida era para ser desfrutada, uma eterna conciliação entre dificuldades, sacrifícios, alegrias e gozos. E ele não tinha nada daquilo, a vida lhe apresentava apenas ônus sem jamais lhe oferecer bônus. Não tinha amigos, não tinha sucesso, não era vaidoso, não tinha família, não tinha namorada, nem se animava para conseguir uma, seu filho adotara outro pai, e sua ex-mulher mudara tanto que faria sentido ela mudar o documento de identidade, seu trabalho era fácil e repetitivo, não praticava esportes e era tímido demais para mudar sua atitude frente à sociedade. A solução era advinda da mais pura e simples lógica. Esse mundo não é para ele.

Decidiu deixar para a próxima noite o estudo de como levar a cabo seu plano, o que fazer para encerrar sua vida sem dor e com algum glamour. A carta de despedida ele deixou para depois, antes ele iria curtir um dia de convívio com um Silas decidido, um Silas desaparecido há tempos.
Seu dia foi maravilhoso. Não havia mais a pendência, ela já estava riscada de seu caderninho, ele não voltaria atrás, levaria aquilo até o fim, e logo. Dera a si mesmo o prazo de liquidar com sua existência até aquele domingo. A felicidade potencializara-se com o fato de não ter que encarar mais uma noite dominical.

Não fraquejou nem por um segundo durante aquele dia, e chegou em casa ansioso por delinear uma estratégia para a própria execução. Queria um meio digno de morrer, de encerrar uma vida que já não lhe agradava, de abortar o projeto Silas Trifolo. Dedicou horas a pesquisas na internet, procurou desde métodos descritos em sites americanos até sites biográficos que detalhavam o suicídio de famosos.

Arma de fogo nem pensar, atirar-se do alto de algum edifício também não, lhe parecia passível de questionamentos e dúvidas enquanto estivesse no ar. Talvez envenenamento, mas demandaria um estudo minucioso de drogas que não lhe causassem dor nem risco de fracasso, e ainda por cima seria difícil adquirir os ingredientes para o mortífero coquetel. Enforcar-se seria tétrico demais, e teria que caprichar no nó, coisa complicada para quem evitava sapatos de amarrar. Overdose de remédios para dormir podia dar errado. Uns bons goles de veneno de rato era a possibilidade que mais lhe pareceu factível, estudaria um pouco mais, mas tendia a faze-lo dessa maneira.

Vestiu um jeans, que já não devia esperar ser vestido novamente há alguns anos, e saiu em busca de um café da manhã decente. Padaria velha com português antipático no caixa, nunca mais! Caminhou por quase uma hora até deparar-se com um hotel, um hotel cinco estrelas, desses cheio de executivos estrangeiros carregando notebooks, na porta e sujeitos de cartola e uniforme cor de vinho na entrada. Entrou e foi direto para o bufett do café da manhã.
Enquanto degustava seu segundo omelete, pensou em como estava sendo agradável desfrutar daquele momento de forma intensa. Pensou em como poderia encaminhar o processo até domingo de maneira a dar continuidade àquela realidade artificial que criara para si. O café da manhã fora fabuloso, empanzinara-se com um sortimento inédito de derivados de leite e de ovos e também com uma variedades impressionantes de pães e de embutidos. Resolveu continuar a caminhar até completar a digestão da refeição nababesca, sem rumo, sem pressa.

Durante a caminhada resolveu que terminaria sua vida com estilo, faria daqueles três últimos dias os melhores de sua vida. Essa seria sua vingança, vingar-se-ia da vida desfrutando dela, gastando-a. Aproveitaria cada minuto, gastaria sua poupança, venceria a timidez, viveria bem e morreria melhor.

Quinta, sexta e sábado, ainda teria três dias completos para curtir, e no domingo agregaria a solenidade necessária para o evento, até lá era só festa.
Fez, em sua cabeça uma pequena lista do que não poderia morrer sem fazer. E essa lista começava pela compra de um carro.

Desde a morte de sua mãe, há três anos, Silas não tinha um veículo próprio. vendera seu último carro logo após o enterro da genitora, num rompante de desapego material que, de certa forma, durava até hoje. Nunca mais interessara-se em ter um carro, achava um saco ter que cuidar, estacionar, abastecer um carro, na sua opinião táxi era mais barato e mais prático.
Chegou em casa e procurou numa agenda antiga o telefone de um sujeito que lhe vendia carros no passado, o Álvaro, Alvinho.
O telefone do Alvinho não mudara, nem sua memória prodigiosa. Alvinho lhe perguntou se ele queria trocar o monza 93. Nem ele se lembrava mais do velho monza vermelho, que ficara com ele um bom tempo após o fim de seu casamento. Explicou-lhe que o monza fora passado para a frente há mais de meia década, e que ele estava procurando um carro esporte, preto, dos mais bacanas possível, com a única condição de que pudesse pegar o carro naquele exato dia, não esperaria mais de duas horas para assumir a propriedade do veículo. Alvinho capitulou e disse que em quinze minutos teria uma boa opção. Voltaria a chamar.

Antes da hora do almoço Silas já havia comprado um carro. Importado, preto, esportivo, completíssimo como dissera Alvinho. Ele iria retirar o carro no meio da tarde.
Ficar em casa , nem pensar. Como seu estômago ainda lhe garantia ser cedo para a próxima refeição, resolveu ir até o parque Ibirapuera e caminhar como um aposentado, curtir um pouco de verde e ver gente. Ele queria ver gente diferente, ser visto e ser notado.

Ficou impressionado com a quantidade de pessoas que habitavam aquele parque no horário conhecido como comercial. O que será que sustentava financeiramente esse povo? Eram inúmeras as pessoas que passavam por ele correndo, patinando, andando, falando ao celular, isso só para mencionar os que pareciam estar na idade adulta, pertencerem à população economicamente ativa, havia ainda uma outra multidão de jovens e crianças, além dos que estavam lá a trabalho, vendendo toda sorte de bugigangas e comes e bebes.
Caminhou sem rumo definido por mais de meia hora, estava beirando o marasmo quando lhe ocorreu que poderia fazer alguma arte, algo que poderia divertir-lhe enquanto seu bólido não ficasse pronto. Passou a procurar por alguma vítima para saciar seu desejo por diversão, alguém que lhe parecesse merecedor de alguma chacota.
Não tardou para que surgisse à sua frente um sujeito magro e alto, pilotando uma bicicleta cheia de acessórios, e trajando um uniforme de ciclista no qual destacavam-se um óculos modernoso com lentes amarelas e uma bermuda de lycra amarela com bolinhas vermelhas. O sujeito passou lentamente em sentido contrário a Silas e pareceu estar iniciando um percurso que lhe levaria a passar novamente por ele. Silas reparou no cavanhaque do rapaz, que instantaneamente lembrou-lhe do marido de Brigitte, o tal professor de yoga, com o seu ar de intelectualóide despreocupado com o sucesso. Passou a odiar o ciclista.
Poucos minutos depois Silas avistou ao longe o ciclista e sua bicicleta amarela, aproximando-se numa velocidade um pouco mais rápida, mas ainda longe de estarem num ritmo compatível com aquela fantasia de ciclista profissional. Quando estava a pouquíssimos metros de distância, quase passando ao lado do ciclista, Silas saltou na frente da bicicleta e transfigurou-se, gritando alto, de forma grave e incompreensível, com o sujeito que, de pronto se descontrolou. O susto que o rapaz levou fora impressionante, a primeira reação, instantânea, foi de espanto, levantando o corpo antes inclinado e arregalando os olhos, o que fez com que o equilíbrio fosse completamente comprometido. Então, o rapaz, sem equilíbrio, iniciando um zigue-e-zague, gritou de volta, um grito de pavor, já tendendo a virar um grito de desespero, visto que o zigue-e-zague o levava para um canteiro onde encontrava-se a estátua de um leão, e onde descansavam um jovem e seu cão, um rotweiller com pinta de quem estava louco por um bom fêmur humano. Os gritos, já desesperados do ciclista chamaram a atenção do cão, uma vez que o dono permanecia deitado, com fones nos dois ouvidos, uma perfeita vítima incauta. O cão não teve dificuldades em arrancar um bom pedaço da bermuda de lycra do barbicha, enquanto seu dono, em decorrência do susto que levara, e sem saber a origem da queda do ciclista, aplicava-lhe alguns chutes e desferia palavrões a esmo. Silas rapidamente dirigiu-se a um portão lateral e saiu daquele cenário bizarro, deixando duas ou três testemunhas de sua traquinagem. O saldo daquela brincadeira seria de uma bermuda de lycra perdida, uns cinco ou seis hematomas na região glútea do ciclista, e um cão desestressado.
Tomou o primeiro táxi que surgiu e, como faltava ainda mais de uma hora para retirar seu carro novo e, aproveitando o ensejo da lembrança do barbicha da yoga e todo aquele clima de violência descabida, dirigiu-se para o apartamento do casal.
Chegou no térreo e avisou ao porteiro que seu filho o esperava. O porteiro argumentou que o menino havia saído com a mãe e apenas o pai (pai?) estava no apartamento. Silas disse então que o pai do rapaz o aguardava, e como estava sempre por ali, embora não fosse reconhecido como o pai do garoto pelo porteiro, o mesmo permitiu a ele subir sem ser anunciado. Chegou à porta do apartamento e tocou a campainha, que foi prontamente atendida pelo grito do barbicha perguntando quem era. Silas anunciou-se e disse, sem ser perguntado, que estava ali para deixar uma lembrança para Pedro.
Nunca havia trocado uma palavra sequer com aquele sujeitinho, talvez um alô, ou algum com dia, mas não havia registros disso em sua memória.
O cara abriu a porta com uma espécie de sorriso "vamos-ser-amigos-afinal-de-contas-a-mulher-é-minha-mesmo-e-o-menino-também", que desapareceu com o golpe certeiro desferido por Silas, de punho cerrado e tendo como alvo a área compreendida entre a boca e o nariz do professor de yoga, incluindo boa parte da barbicha, que rapidamente tingiu-se de sangue. Em meio a palavras sem muito nexo proferidas pelo sujeito, sentado no chão e com as mãos a cobrir o estrago feito pelo soco de Silas, ele se retirou rumo ao elevador, rindo como uma criança, feliz como não se lembrava de ter sido antes.

O carro era magnífico! Além de linhas esportivas, o motor parecia rugir, o estofamento, de couro reluzente, além do cheiro de carro novo transferia ao veículo uma aura de elegância e distinção que eram uma tremenda novidade para Silas. Quarenta e cinco minutos bastaram para Silas resolver toda a burocracia e sair com seu carro pela cidade afora. O próximo passo seria um rápido banho de loja, a fim de melhorar o look de Silas, que estava uma década defasado, com seu jeans semi-bag e sua camisa polo Lacoste listada, sem falar nos sapatos de couro estilo pai-com-filhos-na-churrascaria-no-domingo.

O rápido passeio até a garagem do shopping center foi muito agradável, chegou até a notar algumas moçoilas olhando para o conjunto Silas-carrão com olhares interessados, era exatamente o que ele queria para aquele dia.
Entrou no estacionamento e achou logo uma vaga próxima ao elevador, era incapaz de lembrar-se da última vez que estacionara um carro, ainda mais numa vaga "premium" daquelas. Andou alguns metros à frente e engatou a ré a fim de estacionar o carro, quando notou pelo espelho retrovisor um carro entrando de frente na sua vaga. Aguardou dez segundos, custando a acreditar naquilo, e viu uma jovem, muito bonita e bem arrumada, descer do carro, fingindo que não lhe vira. Buzinou e acenou para a mulher, que deu de ombros para a buzina e gesticulou algo como "vá te catar", na melhor das hipóteses" para o aceno de Silas. Descorçoado, procurou outra vaga enquanto procurava minimizar o ocorrido, imaginando que poderia não ter sido com ele aqueles gestos grosseiros vindos da perua.
Comprou duas calças, uma jeans e uma social, três camisas, dois pares de sapatos e alguns apetrechos mais, tudo última moda, na loja que lhe pareceu mais "por dentro" do shopping, deduzira isso baseado em três fatores, a decoração da loja, a aparência dos que a freqüentavam, e o nível de beleza das vendedoras, impressionante, em sua opinião.
Compras feitas, resolveu que estava na hora de retirar-se, pois já passava das cinco da tarde e ainda precisaria resolver o que seria de sua noite, não teria muita pela frente. Chegou ao seu carro e, antes que abrisse a porta, resolveu ver se o carro de sua amiga ladra-de-vagas ainda estava por ali. Caminhou uns vinte passos até a vaga que quase fora sua e lá estava ele, o carro da perua, brilhando como o seu, mês indubitavelmente mais chique e mais caro. Não pensou duas vezes antes de murchar-lhe os quatro pneus, arrancar-lhe todos os três limpadores dos vidros, retirar cirurgicamente as letras que denominam a marca e o modelo do carro detrás do mesmo, aplicar-lhe longos e generosos riscos na lataria, do farol dianteiro até o traseiro e vice-e-versa. O carro, antes preto, parecia uma zebra. Voltou calmamente ao seu carro, certo de que ninguém vira tal atuação sua. Entrou em seu carro e dirigiu-se para a saída, mas não sem antes parar o carro, descer e retirar de seu posto uma lata de lixo, que acabou sendo utilizada para quebrar os dois faróis traseiros do carro da perua folgada.

Entrou novamente em seu carro e dirigiu-se rapidamente para a saída, pois sabia que agora tinha sido visto por alguma câmera de segurança ou afim. Chegou à rua com uma certa sensação de alívio. Estava adorando sentir-se daquela maneira. O espírito beligerante e violento tomara conta dele novamente.

Rui, o tal professor de yoga, deixou o edifício onde mora com a família que um dia fora de Silas, e caminhava pela calçada. Era pouco antes das seis da tarde, e uma voz conhecida, não lembrava-se de quem, vinda de trás, chamou-lhe pelo nome. Virou-se, curioso por identificar o dono daquela voz e, acabou reconhecendo o dono da voz não pelo rosto, mas sim pelo soco que recebeu, desta vez no olho direito. Pareceu que haviam acendido e apagado uma luz, um lampejo luminoso incidiu sobre aquele olho antes que ele se fechasse num instantâneo hematoma, digno de filme de ação americano.
Silas retirou-se do local deixando mais uma vez o sujeito no chão, mãos no olho. Aquele soco havia, na sua opinião, sido bem melhor que o primeiro, realmente a prática leva à perfeição.

Triunfante, Silas entrou em casa cheio de pacotes. Achou aquele lugar tétrico, escuro, sem móveis, sem vida. O fato de parecer sem vida seria mais propício para o Silas de domingo do que para o de hoje. Virou-se e saiu, hospedaria-se no hotel do café da manhã. Hospedou-se numa suite das mais luxuosas, e fez reserva para outros dois dias. O quarto era muito espaçoso, inutilmente espaçoso, repleto com quinquilharias inúteis e uma decoração exageradamente requintada, mas era um tremendo quarto de hotel. Como já passava das oito da noite, e ele nem havia almoçado, resolveu que sairia para jantar, pois fazer as duas únicas refeições do dia no hotel seria um tanto nonsense para a vida que pretendia viver.
Jantar sozinho estava fora de questão, também. Aquele carrão, aquela roupa bacana, hotel cinco estrelas, jantar sozinho seria um motivo para antecipar a execução de domingo. Não demorou para decidir que a artificialidade do personagem que estava vivendo deveria ser mantida também na conquista de companhia para jantar.

Chegou à mais famosa casa de prostituição de São Paulo pouco depois das nove e meia da noite. O porteiro lhe cumprimentou como se fossem velhos conhecidos, a moça da recepção deu-lhe um cartão de consumação e apontou-lhe o bar. Uma multidão de mulheres o aguardava lá dentro, a proporção naquele momento deveria ser de vinte mulheres por homem, visto que enxergara, se muito, três sujeitos espalhados pelas dependências da casa.
O lugar era curiosíssimo em sua opinião. Cheio de dourados e cores pesadas, muitos espelhos e mulheres, de todos os tipos, cores, alturas, algumas vestidas “para matar”, outras trajadas como se fossem a uma festa elegante. Mulheres bonitas, mulheres gostosas, mulheres bonitas e gostosas. Algumas poderiam ter sua profissão descoberta no primeiro sorriso, outras passariam por mães de família da alta sociedade paulistana sem gerar a menor desconfiança.
Como seu objetivo primário era o de ter companhia para um jantar, não que descartasse uma boa noite de sexo animal na suite bacana no hotel, mas naquele momento ele queria era ter uma boa companhia para o jantar, algo que não tinha desde que seu casamento começara a ruir, há muito, muito tempo atrás.
Disparou olhares convidativos para uma moça muito bonita, elegantemente vestida que estava só, num dos cantos do imenso bar no meio do salão de danças. Foi imediatamente correspondido pela moça, que aproximou-se dele e puxou a conversa.
Quinze minutos de papo foram suficientes para Silas sentir-se sortudo, a moça era simpaticíssima, inteligente e muito boa de conversa, o que o fez apressar-se em convidá-la para jantar. Questionado sobre se iriam ”apenas” jantar, Silas deixou claro que provavelmente não, mas não queria falar em dinheiro, que ela receberia por aquela noite com ele mais do que estava acostumada a receber por uma noite de trabalho.

Pagou pela consumação sem atentar para o fato de que nada consumira. Acompanhado pela jovem e bela moça aguardou pelo seu carro, que, como previra, chamou a atenção de todos por ali. Notou na jovem um certo ar de alívio ao ver surgir aquele bólido caríssimo, o que automaticamente deu-lhe maior segurança de que receberia por aquela noite conforme haviam combinado.
Silas, aos trinta e nove anos, não era um homem classificável com “de se jogar fora”, mantinha um porte razoavelmente atlético, mesmo sem praticar qualquer tipo de esporte, e era um desses grisalhos precoces que costumam fazer um certo sucesso com as mulheres. Explorava muito mal seu potencial de conquistador, e associando-se à sua timidez e ao absoluto desinteresse pelas mulheres após a traição de Brigitte, podia-se dizer que sua vida afetiva era o mais redondo zero nos últimos anos, nos últimos sete longos anos.
Mas ali estava ele, acompanhado de uma mulher belíssima, Kátia, como foi descobrindo durante o trajeto até o restaurante, estudante de arquitetura, vinte e cinco anos, nascida em algum lugar do sul do país, que ele não se preocupou em guardar na memória. Ganhava a vida daquela maneira havia seis meses, não se orgulhava do que fazia, mas segundo ela, orgulhava-se de não depender dos pais, orgulhava-se do padrão de vida que conseguia manter, e garantia que deixaria “aquela vida” tão logo estivesse com o diploma em mãos, passando a levar uma pacata vida de arquiteta. Era talvez a terceira ou quarta garota de programa que ele conhecera em sua vida, e o discurso daquela menina era muito parecido com os ouvidos por ele em sua pós-adolescência, há quase vinte anos atrás. Sentiu um certo desconforto em estar ali, com aquela menina, naquele carro, daquele jeito, mas passou tão logo concientizou-se do momento que vivia, um dos últimos.

Chegaram ao Le Chateau D’Orange, o que há de mais chique e paparicado em São Paulo, por volta das dez e meia da noite. O bar lotado de pessoas aguardando por um sinal do senhor de terno e gravata que parecia coordenar a espera por uma mesa, não intimidou Silas, que chamando o sujeito de lado passou-lhe um maço de notas de valor vultoso bem discretamente, e ouviu do mesmo, alto e bom som, que sua mesa estava preparada. Silas jamais estivera ali, nunca vira aquele sujeito, nem pensara em fazer reserva para aquele jantar, mas sabia que não há gerente de restaurante no mundo que resista a um bom punhado de notas como substituição a um simples telefonema para reserva de lugares para jantar.
Kátia seguia o gerente, seguida de perto por Silas, que deleitava-se com os olhares destinados àquela jovem, com seu corpo bem formado e seus longos cabelos negros ornando suas costas, à mostra graças à generosidade do vestido que usava.

Reconheceu algumas pessoas, mas apenas conhecia-as de vista, acenou para um sujeito que trabalhava no mesmo prédio que ele, e sentou-se em uma mesa muito bem localizada.
Kátia parecia maravilhada em estar ali, provavelmente já percebera que Silas era dos mais bem intencionados, além de ser educado e tímido.
Jantaram muito bem, como prato principal saborearam, ele um filé de cordeiro ao molho de hortelã, e ela um steak au poivre, tudo regado por um excelente vinho tinto, escolhido pelo preço, era o mais caro da carta, selecionadíssima, do lugar. Silas ficou um pouco alegre devido o excesso de vinho, pelo que ele estava habituado a beber, pouco mais de meia garrafa era um excesso. Kátia, mais resistente à bebida não acusara as muitas taças que sorvera.
Pouco mais de uma hora da manhã, estavam ambos entrando novamente no carro, provavelmente rumo ao hotel, quando Silas, num lampejo inédito nos últimos trinta e nova anos, declarou uma certa vontade de dançar. Kátia não pestanejou, indicou-lhe o caminho até a boate mais exclusiva de São Paulo, onde mais um pequeno maço de notas colocaria os dois diretamente porta adentro.
Dançaram, riram bastante, beberam uma variedade impressionante de drinques, o que levou Silas a um estado de leveza e alegria indescritíveis. Beijavam-se como amantes. Abraços apaixonados destacavam os dois em meio à multidão. Silas lembraria no dia seguinte de ter sentido a luz de alguns flashes, o que indicava que foram alvo de fotos durante a performance de pombinhos dançantes.

Chegaram ao hotel exatamente às seis e meia da manhã, Silas ria à toa ao ver a luz alaranjada do sol banhando-lhe o rosto. Rira ao imaginar que aquela mesma luz alaranjada estava acostumada a encontrá-lo cabisbaixo e catatônico diariamente sentado à cabeceira da mesa da copa, e agora via-o ali, com aquela tremenda gata, chegando a um hotel cinco estrelas num baita carrão. O sol não devia estar acreditando que eram a mesma pessoa. E não eram.

Acordou com a freada brusca de um ônibus ou um caminhão. Viu no relógio do videocassete que passava das onze e meia da manhã. Kátia, mais bonita ainda, estava ao seu lado, dormindo como uma criança. Lembrou-se de flashes do que havia sido sua manhã com a moça, e conclui que valera a pena, não só aquela manhã de sexo, mas toda a noite ao lado de Kátia havia sido inesquecível, melhor ainda do que planejara.
Não tratava-se de recuperar alguma espécie de auto-estima, ou algo igualmente cabeça, tratava-se de sentir prazer. Prazer em estar com alguém agradável, em curtir uma boa noite de gastronomia, diversão e sexo. Só isso, prazer. E isso sobrara naquelas últimas quinze horas.
Kátia acordou enquanto ele tomava uma boa chuveirada quente. Ele já encontrou-a devidamente vestida em sua volta ao quarto. Ela continuava muito bonita, estampando um alvo e largo sorriso no rosto. Aceitou de pronto o convite para desfrutar de um café da manhã, que dado o horário foi encomendado junto ao serviço de quarto.
Após o desjejum, bem mais frugal que o do dia anterior, Silas entregou à moça um envelope com o logotipo do hotel, aparentemente ocultando um bom volume de notas. Num rápido olhar no conteúdo do envelope, Kátia já pode notar que tratava-se de mais dinheiro do que estava acostumada a receber por uma semana de trabalho, e nem fora árduo o trabalho daquela noite, ela adorara. Beijou o rosto de Silas e, não sem antes dar-lhe o número de seu telefone, foi-se, levando uma boa nota e mais uma estória para contar.

Como já passava do meio-dia, Silas concluiu que não tinha tempo a perder, era seu penúltimo dia de vida, e não havia tempo a perder.
Ficara particularmente impressionado com o impacto que fora causado pelo seu dinheiro junto à Kátia, ao gerente do restaurante e ao porteiro da boate. Nunca se dera conta de que vinha fazendo uma poupança gorda nos últimos anos, e vivia a mais barata das vidas. Não tinha herdeiros a quem gostaria de deixar sua pequena fortuna, seu pai mantinha-se às custas de uma aposentadoria generosa, e também não gerava despesas significativas, seu filho se auto-deserdara quando elegeu o tal da yoga seu pai, e não lembrava de mais ninguém que pudesse estar em alguma espécie de linha familiar com ele. Foi ao banco e sacou bastante dinheiro, em notas gordas.

Parou seu carro num semáforo, a caminho de lugar algum, e assustou-se com um pedinte, um sujeito encorpado, muito forte, que bateu em sua janela. Refeito do susto, abriu o vidro e ouviu do grandalhão um pedido por alguma esmola, que estava desempregado e precisava de dinheiro para comprar sandálias e material escolar para seus três filhos pequenos.
Silas comoveu-se com o choro daquele homem. Talvez por não dirigir, e mal sair de casa, jamais deparara-se com um sujeito daqueles, um negrão de porte gigante, chorando por alguns centavos. Em sua opinião não havia orgulho que resistisse a ver um filho passando necessidade, e achava particularmente decente daquele cara não colocar os filhos para pedir, ele via logo atrás do sujeito três crianças bem novinhas sentadas na calçada. Pediu ao homem que aguardasse ali, iria ao supermercado logo em frente e voltaria com algumas prendas para as crianças. O homem duvidou e deu de ombros.
Silas estacionou na garagem do supermercado, aliás um hipermercado, e foi em busca de material escolar para os filhos do negrão. Enquanto subia pela escada rolante, notou à sua frente um casal em plena briga familiar. O sujeito reclamava de alguma coisa, a moça não lhe dava ouvidos, fingindo não ser com ela, aparentemente constrangida com o que estava se tornando aquela situação, com o cara gesticulando e falando cada vez mais alto. Silas já antipatizava com o par da mocinha, ambos não deveria passar muito dos trinta anos, quando o moço desferiu um bofetão no rosto da mulher. O estalo abafado doeu mais em Silas do que na moça. O rapaz, não dando-se por satisfeito, puxou-a pelos cabelos e ameaçou-a de alguma forma. Silas esboçou pedir calma para o rapaz, no que foi vítima de uma ameaça, o cara olhou para ele e falou algo como “nem vem bancar o herói que apanha junto”, referindo-se a Silas como palhaço, ou algo do gênero. Silas recuou, pensou por segundos, e retirou-se do supermercado a pé, caminhando apressadamente até a esquina.
Encontrou-se com o negrão e, chamando-o de lado, ofereceu-lhe uma boa nota, uma fortuna para aquele sujeito, para fazer-lhe um pequeno servicinho.

O casal da briga retirava-se rumo ao estacionamento do hipermercado, ela cabisbaixa, ele pisando duro, quando foram interpelados pelo novo amigo de Silas. Do carro, onde Silas estava junto com as três crianças filhas do negão, que divertiam-se com as inúmeras luzes que acendiam e apagavam nos banco traseiros do carrão, pôde-se ver que seu novo amigo falou qualquer coisa para os dois antes de acertar uma série impiedosa de golpes no covarde que ameaçara Silas e agredira a mulher. Foi um massacre, rápido e unilateral. Não houve reação por parte do rapaz, se ao invés de golpes fossem desferidas palavras, aquilo seria um monólogo. Silas deleitou-se ao ver o sujeito caindo no chão e a mulher, em vez de socorre-lo ou algo do gênero, correr para a rua, onde pode ser vista tomando um táxi. Paulo, o negrão, entrou no carro e Silas disparou, vendo o corpo inerte do covardão no chão. Depois de confirmar com Paulo que ele não havia matado o cara, Silas deu-lhe um envelope de dinheiro parecido com o de Kátia, o que arrancou ainda mais lágrimas dos olhos daquele gigante que lutava feito um profissional de vale-tudo.
Após deixar aquela família num ponto de ônibus, ele resolveu que, por ser cedo para um almoço, gastaria algum tempo antes de procurar lugar para almoçar.

Entrou na academia como alguém que nunca freqüentara uma, aliás, coisa que ele realmente nunca fizera. Pediu algumas informações improvisadas à recepcionista e perguntou se poderia dar uma volta pelas dependências e conhecer bem o lugar antes de associar-se. Prontamente atendido, dispensou a acompanhante que estavam lhe providenciando e caminhou lentamente por entre as salas e corredores que encontrava.
A aula havia terminado, e o professor despedia-se da última aluna de forma pouco ortodoxa, com um beijo estalado e rápido nos lábios daquela menina que devia ter metade de sua idade, quando notou no espelho um homem vestido de forma inadequada para aquele lugar. Tarde demais para evitar o golpe que lhe atingiu a orelha esquerda, levando-o ao solo, enquanto a menina corria para fora da sala gritando por socorro. Com o sujeito caído ficou fácil para Silas acertar um chute em suas costelas e outro no olho que não estava roxo. Retirou-se apressado e encontrou um monte de gente correndo em direção à sala. Como não vira a menina que beijara o barbicha e testemunhara sua agressão, antecipou-se, e anunciou que havia um ferido na sala de yoga, que ele iria chamar uma ambulância. Saiu rápida e discretamente porta afora e sorriu ao entrar no carro. Lamentou não ter alguém com quem dividir aquilo.

Ficara espantado ao tomar consciência das economias que tinha feito nesses últimos anos, não fazia idéia de que tinha tanto dinheiro guardado. Não que não se apegasse ao vil metal, mas não o usava. Percebendo que teria um problema deixando todo aquele dinheiro como herança para Pedro, não admitia a possibilidade de enriquecer àquela família esquisita formada por Brigitte, o professor e Pedro. Como já era a tarde de sexta-feira, resolveu que iria almoçar e envidar esforços em encaminhar adequadamente suas reservas a quem lhe desse prazer enriquecer.

Almoçou em um pequeno restaurante que lhe lembrava sua mãe, mais porque ele lembrava de ter ido com ela almoçar ali um certa vez, em que ganhara de presente pelo dia das crianças uma bicicleta. Lembrava como se fosse ontem a alegria que sentira ao ganhar aquela bicicleta. Como ela precisava de rodinhas, foi com Dona Sara a um bicicletaria, e aguardaram pela instalação das mesmas almoçando no pequeno e simpático restaurante. Com certeza, muito mais pela bicicleta que pelo almoço ou pela presença de sua mãe, aquele lugar ficara gravado em sua memória por mais de trinta anos, mas respeitar a memória é algo de que ele não podia prescindir naquela situação.

Ainda durante a sobremesa ocorreu-lhe que a noite de sexta-feira, aquela especificamente, dava início ao seu direito quinzenal de desfrutar de exclusiva companhia de Pedro. Ele já não exercera esse direito nas duas últimas vezes que o tivera, e não dera a menor explicação a Brigitte ou ao próprio Pedro. na verdade o único que tinha notícias suas era o tal da yoga, se é que ele tinha conseguido reconhecer Silas nos encontros rápidos que tiveram nos últimos dias. Pediu ao garçom que lhe indicasse onde haveria um telefone para que ele pudesse fazer uma ligação e dirigiu-se ao caixa.

Brigitte atendeu à ligação e foi logo berrando com Silas, querendo saber o que lhe dera para agredir seu marido repetidas vezes, e de forma tão covarde.
Num improviso que depois lhe daria orgulho, Silas retrucou dizendo que a versão que fora dada à Brigitte era a versão de um covarde, de alguém que temia que ela soubesse da verdade. Que sim, ele realmente agredira o sujeito, mas motivos não lhe faltaram, e em respeito ao pequeno Pedro, ele não contaria o corrido, que ela fosse cobrar a verdade do tal da yoga. - Você me conhece muito bem e sabe que eu não sou nem nunca fui a favor de qualquer forma de violência, além de desprezar qualquer forma de covardia - berrou Silas ao telefone, enfático e convincente. E, realmente, Silas nunca fora homem de medidas extremas, de vias de fato. Sempre fora pacato e até apático em situações que demandavam pulso firme e rispidez. Disse à ex-mulher que queria ver o filho, que tinha esse direito e não gostaria de envolver a polícia na garantia de seus direitos concedidos por lei, mas que já deixara de sobreaviso um delegado do qual se tornara próximo ultimamente.

Brigitte, atarantada com a verborragia de Silas e sem entender o que estava acontecendo, e também apavorada com a possibilidade de receber a visita de força policial em seu apartamento, concordou com Silas, e disse-lhe que Pedro estaria esperando por ele à porta do edifício às oito em ponto. Silas agradeceu e falou que devolveria a criança na tarde do dia seguinte, pois tinha compromissos inadiáveis para o domingo.

Pedro estava lá, a postos, aguardando por Silas na portaria do prédio, tinha os cabelos castanho-claro bem penteados, repartidos no lado esquerdo, vestia uma calça jeans com aparência de nova e uma camiseta clara, provavelmente bege, ou amarela. Não foi possível identificar nenhum tipo de sorriso ou similar em seu rosto ao ver o pai em pé, na calçada.

O menino acompanhara-o até o carro e não se encabulara em perguntar-lhe de quem era aquele carro. Ficou muito nítido em seu rosto a satisfação em saber ser do pai aquele bólido, que causaria certo furor se fosse visto por seus colegas na entrada da escola.

Silas perguntou a Pedro onde ele gostaria de ir, no que foi prontamente respondido por um gesto de ombros mais do que característico. Comunicou ao filho que iria levá-lo então a um lugar diferente, que ele ainda não conhecera, mas tinha certeza que ele adoraria.
Pedro permaneceu mudo durante todo o itinerário, sendo correspondido plenamente por seu pai. O silêncio foi interrompido por Pedro, já à entrada do estacionamento, perguntando a Silas o que eles estavam fazendo ali, no estádio do São Paulo.
Silas respondeu que iriam assistir a um jogo de futebol, e pediu-lhe que abrisse a sacola que estava no banco traseiro.
Enquanto Pedro perguntava a Silas se ele era realmente Corintiano, o que foi confirmado por um aceno com a cabeça, ele abriu desajeitadamente a sacola, e foi incapaz de esconder o espanto e a felicidade ao ver tratar-se do uniforme completo do São Paulo Futebol Clube, seu time de coração.
Silas sabia que, para uma criança de nove anos, o uniforme completo do time do coração, ainda mais com um par de chuteiras, significava o mesmo que um carro zero quilometro para um pós adolescente. Era o máximo!

A mudança na relação dos dois começava a mudar, pelo menos já havia palavras envolvidas nesse relacionamento. Pedro vestiu-se rapidamente e estava um perfeito mascote quando chegaram aos portões do estádio. O moleque estranhou quando reparou que havia quase ninguém por ali, perguntando ao pai se hoje era mesmo dia de jogo.
Pedro respondera que sim, mas o jogo começaria em duas horas, porém aquela era a hora de chegada para quem entra em campo com o time. Como não houvera reação por parte do pequeno, Silas foi um pouco mais claro:
- Pedro, você vai entrar em campo junto com o time, por isso chegamos cedo, e por isso você está vestido como jogador.
Aquilo foi uma jogada de mestre, se pudesse Silas correria alguns metros e daria pulinhos seguidos de socos no ar, comemorando a brilhante atuação. O moleque pulara em seus braços e abraçara-o de forma inédita, com força, com vontade.

Foram ao juizado de menores, onde Silas assinou a autorização para Pedro entrar em campo, comeram cachorro-quente, e ficaram mais de meia hora postados à porta do vestiário aguardando a chamada do coordenador de mascote. Nesse momento, Silas ficou conversando com um rapaz identificado com um crachá do clube mais de dez minutos, e não escondeu muito mal as várias notas de dinheiro que entregou nas mãos do sorridente e também pouco discreto rapaz.

Por estar escadaria abaixo, aguardando pela volta dos pequeninos, Silas não pode ver a alegria-maior da vida do guri. O rapaz do crachá, munido de máquina fotográfica, tirava incessantemente fotos do menino que, em êxtase, entrou em campo de mãos dadas com o craque do time, outra conseqüência do punhado generoso de notas entregues pelo pai do garoto.

Chegaram aos seus assentos com quase cinco minutos de jogo. Assistiriam a toda a partida saboreando diversos tipos de balas, doces e chocolates, e viram uma maiúscula vitória do São Paulo sobre um time argentino, como pai e filho. Silas esforçou-se de forma hercúlea em fazer comentários futebolístico, assunto no qual ele era leigo como poucos, com Pedro, aproveitara os comentários e observações dos torcedores ao redor, e tamanha era a concentração do menino na partida que os comentários do pai soaram como originais.

Na saída do estádio, Silas estava triunfante com o estado em que colocara o menino. Ainda nos portões do estádio, ele dirigiu-se a uma grade lateral, onde era aguardado pelo mesmo rapaz de crachá que batera as fotos de Pedro no gramado. O rapaz abriu uma pequena porta onde lia-se que era exclusiva para funcionários do clube, e depois de entregar a Silas um filme fotográfico, encaminhou pai e filho por um caminho que Pedro veio a descobrir ser o caminho dos vestiários dos times.
O moleque delirou ao ver os jogadores ali, em carne e osso. A inibição em ver a maioria dos craques nus desapareceu em segundos. Silas realizou ali que tardou muito a reconhecer o valor do dinheiro, e as aplicações que podem ser dadas a ele. Suas economias de uma vida o permitiriam ter três últimos dias de rei, e aquela empreitada futebolística estava saindo barata para ele. Muito barata.

Entraram no carro, e Pedro não parava de encontrar autógrafos na camisa do time que vestia, identificara quase todas as assinaturas que levava consigo.

- Pai, você bateu mesmo no tio?
- Bati, Pedrão, mas eu tive meus motivos. Você já bateu em alguém na escola?
- Já, muitas vezes. E um garoto bateu em mim, com o estojo.
- Então, quando você bateu nos outros você teve seus motivos para fazer isso, não teve?
- Tive, só que eu...
- Eu também tive os meus. Brigar é feio, mas como as crianças, os adultos brigam de vez em quando. Mas ele não se machucou muito né?
- Machucou pra caramba. Tem um olho dele que não está abrindo. Ele falou que você foi covarde.
- Isso é desculpa de quem apanha. Você já ouviu alguém dar essas desculpas, não.
- Já, tem um menino que .................

Silas nem chegou a ouvir a estória do pequeno Pedro, deleitava-se em imaginar o tal da yoga com os olhos roxos, com um bife sobre cada olho, e com o nariz parecendo uma batata grande.

Silas disse ao filho que iriam jantar e depois iriam para casa. Como desconfiava que sua casa não devia estar na lista de lugares agradáveis de Pedro, deixou claro que iriam dormir em outra casa, uma casa que ele estava morando por enquanto.

Jantaram pizza, a escolhida por Pedro, e depois foram para o hotel, onde Pedro parecia estar na Disney. O amplo quarto, o video-game providenciado por Silas para entreter o filho, e os vários sorvetes solicitados por Pedro tornaram o fim de noite inesquecível para o menino.

Silas passou boa parte da noite sem dormir, fazendo cálculos, anotações e, vez por outra olhando seu filho dormir. Ficava feliz em ver o menino crescido, já capaz de dialogar e opinar sobre alguns temas. Sentia que daquela vez fizera a criança feliz, talvez fosse a única vez, mas levaria aquele momento consigo.

Pedro abriu os olhos depois das nove horas, meia hora depois do pai. Meia hora foi tempo suficiente para Silas admirar mais uma vez o rosto adormecido e inocente do menino, que provavelmente ele via pela última vez acordar.

Pedro acordou, e Silas levou-o direto para o café da manhã, do qual já virara fã de carteirinha. O menino refestelou-se em meio àquela orgia gastronômica que lhe fora oferecida, empanturrou-se com panquecas, omeletes e bolos e, por repetidas vezes mencionara a aventura futebolística da véspera.

Silas estava realizado como pai. Fora um pai abaixo do sofrível durante nove anos, mas agora, nos estertores de sua existência, carimbara sua participação no evento mais importante da vida daquela criança. Aquele jogo, aquela noite, talvez até aquele desjejum, ficariam tatuados na memória daquela criança. E isso ninguém tira dele, o verdadeiro pai. Mesmo que esse moleque peça a benção diariamente para aquele ser de cavanhaque pelo resto de sua vida, esse momento fora deles, pai e filho, e estava eternizado na memória de ambos.

Finalizado o café da amanhã, Silas levou a criança à maior loja de brinquedos da cidade, onde fez questão de torrar grana suficiente para encher o porta-malas e o banco traseiro do carro com presentes para o filho. De video-game à patins, passando por autorama e bola de futebol, poderíamos dizer que compararam o enxoval completo para os primeiros dezessete anos de vida de qualquer criança do sexo masculino.

Exatamente às duas e quinze da tarde, Silas despediu-se de Pedro com um abraço apertado e um beijo carinhoso, o que seria impensável vinte e quatro horas antes daquela despedida. Da janela, Brigitte não podia acreditar na cena, mais tarde ouviria do filho que o pai estava “esquisito”, mas que queria que ele continuasse esquisito daquele jeito. Foi necessário que Seu Mário, o porteiro, ajudasse a carregar as dezenas de sacolas prédio adentro

Silas reparou na presença da ex-mulher na janela, mas não esboçou travar contato nem sequer visual. Acenou para o filho sorridente e disparou com o carro.

Menos de meia hora depois ele estava na clínica onde seu pai morava. Passou um bom tempo na sala do diretor, onde efetuou uma doação mais do que generosa para a clínica, e recomendou cuidados extras ao velho.
Sentou-se na cama do pai, que interrompeu sua sesta ao sentir o peso do corpo do filho na cama. Como de costume ele identificou-se para o pai, que sempre olhava-o com olhos desconfiados, duvidando um pouco da veracidade das informações prestadas por aquele homem. Passados os primeiro minutos, como sempre, a confiança do pai se estabeleceu, e mantiveram um diálogo mais razoável. Silas contou ao pai sobre algumas passagens de sua infância, sobre o que conhecera do pai de seu pai, e evitou falar de sua mãe. O pai ouvia a tudo maravilhado, esqueceria de tudo algumas horas depois, mas durante alguns minutos via-se ali pai e filho conversando, rindo e, vez por outra trocando alguns afagos e abraços.
Silas deixou o pai somente na hora do jantar, expulso do quarto do velho por uma enfermeira que parecia ter como hobby o levantamento de peso, ou luta greco-romana, um verdadeiro monstro, com mais de cem quilos e um pescoço que deveria ter o diâmetro da cintura de uma enfermeira normal.

Silas avistou o barbicha da yoga ainda do outro lado da rua, caminhou em sua direção e fez questão que fosse logo identificado pelo sujeito.

- Calma amigão. Calma que eu só quero conversar com você. Chega desse ciúme ridículo, estou aqui para me desculpar. Vim implorar pelo seu perdão.
- Você é um louco, cara! O que que te deu na cuca?
- Desculpe colega, desculpe!

O barbicha desarmou-se, em sua frente estava um homem destruído, fraco, que lançara mão de agressões covardes para esconder sua fraqueza, para esconder o rancor de ter perdido uma família. Era momento de perdão, de misericórdia.
Mal a idéia de perdoar se fazia clara na cabeça do professor de yoga, uma mão, dura feito pedra, atingiu sua testa, deixando-o zonzo e fazendo-o presa fácil para o segundo e o terceiro golpes, atingindo o nariz e a boca, respectivamente.
Sem falar um só palavra, Silas retirou-se calmamente, sem se importar com duas moças que estavam num ponto de ônibus próximo.

Chegou ao hotel e tratou de produzir-se. Roupa nova e gel nos cabelos, lá se foi Silas rumo ao encontro de Kátia, sua namorada de fim de vida.
Kátia estava conversando com um senhor, sentados numa mesa de canto, parecendo muito próximos, quando Silas adentrou o recinto. O homem ficou falando sozinho, com dois copos à mesa, enquanto Kátia atirava-se nos braços de Silas, o mais próximo de um príncipe encantado que ela já conhecera.
A noitada dispensou as formalidades do jantar, alimentaram-se de sanduíches entregues na suíte do casal após o sexo animal.
Pouco depois Silas presenteou Kátia com um cheque preenchido com valores que arrancaram um rio de lágrimas dos olhos da moça. Silas dera-lhe dinheiro suficiente para não só abandonar àquela vida, como para viver qualquer vida que ela escolhesse. A condição de que ela voltasse para sua cidade natal e por lá ficasse, vivendo uma vida menos promíscua e mais estável, foi prontamente aceita pela menina que, mostrando um brilho no olhar, trouxe à tona um sentimento paternal em Silas, que contrastava com o corpo nu e bem formado da moça deitada em sua cama.
Silas pediu à Kátia que se fosse antes de dormir, pois seu filho estaria lá pela manhã.

Bem cedo, após o último café da manhã indecentemente vasto, Silas deixou o hotel, gratificando generosamente todos os que lhe serviram durante aqueles dias.
Chegou em casa, e custou a crer que vivia ali. Como conseguia passar dias e noites dentro daquela espelunca. Aqueles móveis antigos, aquela vazio, tudo aquilo colaborara significativamente para a sua derrocada como ser humano.
Respirou fundo e abriu todas as janelas, algumas ofereceram muita dificuldade para serem abertas, mas o apartamento iluminou-se pela primeira vez em anos. Não era um apartamento feio, apenas dera o azar de tê-lo como dono, principalmente naquela fase de sua vida.

Sentou-se na velha poltrona de seu avô e pensou em fazer um balanço de sua vida. Ponderou e resolveu fazer esse balanço considerando apenas os últimos três dias. Que vida ele levara nesses dias, hein?! Mulheres, bem apenas uma, mas que mulherão aquele, restaurantes, aquele carrão, os sorrisos de seu pai e de seu filho, as repetidas surras no professor de yoga. Que vida maravilhosa aquela! Pena não ser aquela a vida dele, pena não poder contar com aquela vida para sempre, mas aquilo havia sido apenas uma festa, uma celebração do fim de uma vida que não valia a pena viver.

O chute na porta, seguido pelos gritos do zelador ecoaram pelo prédio inteiro. O professor de yoga estava tomado por um ódio que o levaria a fazer qualquer tipo de loucura, inclusive matar, o que ficaria particularmente fácil com a pistola que tinha em sua mão esquerda. Ao ver que se tratava de um louco armado, o zelador se foi escadaria abaixo, gritando por um socorro que não viria tão cedo.
A sede de vingança do barbicha cessou ao ver o corpo inerte de Silas no chão, copo vazio ao lado e um bilhete sob uma das mãos.
Quem foi até lá com o intuito de tornar-se um assassino, acabou tornando-se o primeiro a ler o bilhete deixado pelo suicida.

“Se algo me acontecer, e eu falecer sem maiores explicações, quero que saibam que o atual marido de minha ex-mulher vem me ameaçando há tempos. Por algumas vezes respondi à suas investidas com a mesma violência que ele me oferecia, mas agora temo que ele tente algum método mais covarde. Se eu morrer, ele é o suspeito.”
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui