Estamos dando continuidade a publicação destes pequenos artigos que visam mostrar um pouco da escrita poética feminina no cenário nacional e mundial.
Pretendemos, tão somente, falar da emoção de nossas descobertas literárias ao nos depararmos com a vasta produção feminina na construção de uma identidade poética.
É antes de tudo, uma gota de perfume que permitirá ao leitor curioso, buscar essências a partir da publicação destes textos.
Natália Correia
Natália de Oliveira Correia nasceu na Ilha de São Miguel, nos Açores, a 13 de Setembro de 1923.
Estudou no liceu Antero de Quental até 1934, quando mudou-se nesse mesmo ano para o liceu Filipa de Lencastre, em Lisboa.
Natália Correia é considerada um dos ícones da poesia portuguesa contemporânea. Destacou-se também como ensaísta e romancista, possuindo trabalhos no teatro e investigação literária.
Em 1942, casa-se com Álvaro Pereira. No ano de 1949, une-se a William Creighton Hylen, de quem posteriormente se separaria para casar, em 1950, com Alfredo Machado.
Em 1944, inicia sua carreira de jornalista na Rádio Clube Português.
Em 1960, grava o disco "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria".
Conhece em 1962, Dórdio Guimarães, parceiro de diversos trabalhos no cinema e na televisão. Casa-se com Dórdio em 1990, com quem permaneceu até o fim da vida.
Destacou-se na luta contra o fascismo. Teve vários dos seus livros apreendidos pela censura. Foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, por abuso de liberdade da imprensa.
Em 1971, ao lado de Isabel Meyrelles cria uma sociedade , cujo resultado será o Botequim (local de encontro, convívio e tertúlia, onde nasciam idéias culturais efervescentes).
Foi diretora literária dos Estúdios Cor e da Editora Arcádia. Em 1976 tornou-se diretora do "Século Hoje", da "Vida Mundial", e assessora do então secretário de Estado da Cultura, David Mourão-Ferreira.
Teve grande notoriedade no cenário político português, sendo eleita deputada pelo Partido Social Democrata, passando depois a independente.
Morreu em Lisboa, a 16 de Março de 1993, ano em que é publicada, em dois volumes, pelo Círculo dos Leitores, a sua obra poética completa: "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias".
Obras importantes de sua autoria:
Obras poéticas: Rio de Nuvens (1947), Poemas (1955), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), Cântico do País Imerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), As Maçãs de Orestes (1970), Mosca Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973), Poemas a Rebate (1975), Epístola aos Iamitas (1976), O Dilúvio e a Pomba (1979), Sonetos Românticos (1990), O Armistício (1985), O Sol das Noites e o Luar nos Dias (1993), Memória da Sombra (1994, com fotos de Antônio Matos)
Ficção: Anoiteceu no Bairro (1946), A Madona (1968), A Ilha de Circe (1983).
Teatro: O Progresso de Édipo (1957), O Homúnculo (1965), O Encoberto (1969), Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981), A Pécora (1983).
Ensaio: Poesia de arte e realismo poético (1958), Uma estátua para Herodes (1974).
Obras várias: Descobri que era Européia (1951 - viagens), Não Percas a Rosa (1978 - diário), A questão acadêmica de 1907 (1962), Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966), Cantares Galego-Portugueses (1970), Trovas de D. Dinis (1970), A Mulher (1973), O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), Antologia da Poesia Portuguesa no Período Barroco (1982), A Ilha de São Nunca (1982).
Poemas de Natália Correia
O Sol nas Noites e o Luar nos Dias
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular
Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
Ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.
E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.
Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.
E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.
Comunicação
Como um poente congestionado
De vaga-lumes irreais
É o sete-estrelo desenfreado
Rosa de chamas descomunais
Saltam-lhe os pulsos como foguetes
As mãos são Vestes embriagadas
Parando as cenas dos banquetes
Em saturnais carbonizadas
Incham-lhe o seios como mechas
De Salomé desintegrada
Por quem cem líricos lamechas
Ficam ardendo sem dar por nada
Uma manada de trovões
Leva a cidade nos seus cornos
Assam marquesas nos salões
Como perus dentro dos formos
Os rechonchudos anjos das casas
Expiam crimes ancestrais
Mamando restos de leite em brasa
Nos esqueletos maternais
As salamandras uterinas
Queimam devassos nas suas camas
Com que celebram fesceninas
E derradeiras núpcias de chamas
Os acedémicos no espeto
Fazem um esforço de memória
Para manterem o esqueleto
Em ademanes de oratória
Em catedrais de mil archotes
Numa luxúria de extrema-unção
Um frenesi de sacerdotes
Tem um orgasmo de Inquisição
As labaredas quais proxenetas
Dos cidadãos mais importantes
Levam incêndios de meias pretas
A mercadores de diamantes
Logo que estoura algum ministro
E a sua alma estruma os campos
Rebenta um trigo mais sinistro
Nesta seara de pirilampos
Nos semicúpios incandescentes
Dos seus tesouros derretidos
Os milionários têm repentes
Têm remorsos de homens falidos
E um Desejado de lua nova
Noiva da Pátria vem finalmente
Buscar a noiva para a sua cova
E dá-lhe a Morte como presente
Num Relâmpago De Jovem Fêmea Louva-A-Deus
Na manhã do meu corpo juvenil
colhes frutos de sonho.
E a minha carne de Abril
cresce em teu abandono.
Nocturnamente contrária
às tuas horas jubilosas,
em cerimónia solitária
aos meus duendes ofereço rosas.
O Encontro
Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado
um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca
como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso
como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua
como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno
como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor
Crucificação
Vertical sou contra Deus
Horizontal a favor.
Nesta cruz me crucifico
Vertical com desespero
Horizontal com amor.
A Defesa do Poeta
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que puseste
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.
Sinais Que No Amor Se Adiantam
No teu olhar se esfuma e desvanece
A cidade onde o corpo por enquanto é preciso.
É quando a outra face do luar aparece
E o balir das ovelhas tem o som do meu riso.
Para tapar meu seio já nenhum astro tece
A roupa com que outrora saí do paraíso.
O pudor é da terra. Só por isso anoitece
E a nudez dos amantes é não darem por isso.
A semente do filho que em nós amadurece
Trouxe-a no bico a pomba que o seu reino prepara.
Por isso na cidade já ninguém nos conhece
Pois que ambos trazemos esse filho na cara.
Obs - Optamos por manter a ortografia portuguesa em todos os poemas.