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Contos-->Aprendendo a jogar -- 10/11/2003 - 10:11 (Darlan Zurc) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não pensou em outra coisa. Sabia que aqueles trejeitos do corpo e aquele olhar às vezes vago, às vezes oblíquo, às vezes impróprio, denunciavam um dos comportamentos mais freqüentes entre os adultos e que, mesmo quando adolescente, jamais suspeitou que existisse. Agora sabe.

Repugnância sentia, é verdade, mas aprendeu que somente ele, o jogo de máscaras, permitia aquela distinção tão bem delimitada por um certo Engels: uma, a civilização, e outra, a barbárie. E tia Nena, via de regra, falava um pouco para depois encher o quase monólogo de Fred com bolhas de silêncio. Não o silêncio saudável de namorados ou de velhos amigos. Os momentos de total falta de palavras entre ele e sua tia, num encontro casual dos dois e que dali nada de importante sai mesmo, pareciam reforçar o caráter artificial e falso da convivência que muito há no mundo e nos encontros dos dois.

Os olhos, ah!, os olhos... Ele aprendeu razoavelmente rápido que ocorria algo de estranho quando as pessoas evitam se olhar nos olhos. Criou até uma lei geral a fim avaliar a personalidade alheia: não merece confiança quem se esquiva de enfrentar os olhos do outro. Inclusive, sondar as intenções e o caráter das pessoas com quem conversa é a mais interessante de suas curiosidades.

Ter percebido que o tal jogo de máscaras, usado sem distinção de nacionalidade, origem, credo, cor e classe, criava um pacto de não-agressão, isso ele notou. Criava uma sensação de cordialidade e tolerância. Mas as aparências são o estofo de nossa sociedade. Qualquer relação que se limite à etiqueta não passa de propaganda de classificados. Entretanto, qual convívio se sustenta na base das palavras corrosivas? Fred pensou nisso tudo e calou. Calou-se por impotência de nada poder fazer, e não por desejo de consentir.

Ele não gostava do jeito de tia Nena — no fundo, era ela que não gostava dele —, porém compreendia seu pequeno drama. Observava o quanto ela amargava sua vida ordinária, chinfrim. Ela, sem perceber, construiu para si uma densa e indestrutível atmosfera de fingimento, falsos sorrisos e recorrente amargura. Tia Nena não é mais tia Nena; é aquilo que ela acha mais socialmente adequado à mediocridade da sua vida. Amizade, quase nenhuma. Felicidade, sim, só que ficou num passado distante. Sexo, comportado ou safado, nem pensando. Tia Nena, com cerca de quarenta e sete anos, se anulou quando resolveu brincar de ser o que a hipocrisia social é. Tia Nena pensou tanto em si, procurou envolver-se com os mais próximos da forma mais fugaz possível que imbecilizou sua própria natureza. Uma natureza de mulher-fêmea, mulher bonita e esculpida pela genética para gozar a vida, gozar com um macho enlouquecido toda vez que desse vontade. Tia Nena, ao contrário, virou um traste, perdeu a condição ancestral de ser humano (a agressividade, a passionalidade, o afeto...).

Por outro lado, pensou Fred, com etiquetas sociais dá para tocar a vida; sem elas, a vida é pé-de-guerra. Fred repensou isso tudo de novo, calou. Lembrou-se que usou artifícios desse tipo quando não deu um murro na ex-namorada que o traiu. Evitou mandar o pai ao inferno, certa vez, ao não lhe dar grana para ir à festa com os amigos. Jamais falou a sua mãe sobre alguns pensamentos incestuosos.

Da repugnância, Fred achou que as máscaras podem ser úteis em determinadas ocasiões. Elas por si, sozinhas, não são nocivas. Não podem ser. Exigem um manuseio adequado e diferente daquele de tia Nena. Se bem que a raiva dele sobe à garganta toda vez que falsos amigos o procuram. Tapinhas nas costas e cinismo são o que lhe oferecem. Em troca de tão pouco, querem favores e facilidades mil.

Logo deu meia-noite e Fred ali, pensando sobre tudo isso e calado. E falar com quem àquela hora? Sozinho estava, sozinho ficou. Pegou um livro de Auguste Comte e começou a ler. Texto complicado é companhia agradabilíssima que ajuda a chamar o sono. Vieram os sonhos, um pesadelo bobo, e, cedo, a mão insistente do pai chamando-o para trabalhar logo, em pleno domingo. Era a arrumação do escritório que estava marcada para o dia anterior. Ele ficava no almoxarifado do prédio num turno de seis horas por dia.

Banho, café rápido, beijo na mãe, saudação a Menino, o seu gato inescrupuloso de oito anos (embora todo gato seja um mau-caráter profissional), manhã rotineira, almoço no restaurante de segunda categoria, com o pai pela bilionésima vez, tarde calma. 16h30min. Fred saiu antes, foi para casa andando. Precisava estudar para a prova de amanhã. Estudava à noite num curso supletivo. Tinha tempo escasso.

“Ó Frederik!”. Era Paloma gritando. Uma vizinha de seios pontiagudos e coxas suculentas. Queria, também pela bilionésima vez, que ele fizesse um trabalho escolar. Só lembrava o nome dele e o cumprimentava nessas horas. Ela exigiu que fosse entregue hoje à noite e deu adeus. Fred pensou em descarregar nela todas as amargas conclusões de ontem. Ficou com elas, calou-se. Não tinha forças para tanto. Nunca teve. No quarto, sentiu-se um pouco tia Nena, pensou em chorar. Engoliu.

Fez o trabalho em cinqüenta minutos e entregou ao irmão da menina. Deitou-se na cama, sem sono, pensou em tia Nena de novo, viu o quanto é difícil alterar uma arquitetura de equívocos tão sedimentados em pessoas fracas como a tia e, agora, ele. Nada jantou. A fome sumiu. Cochilou um pouco e acordou assustado. Lembrou novamente e novamente da tia e, sob algum sonífero, dormiu mais. A prova fora esquecida. Na verdade, as provas e provações do cotidiano costumam ser mais importantes.

Acordou com os berros do pai e com uma certeza dos pensamentos de ontem: um novo tormento, um novo fantasma, entrou em sua vida e vai persegui-lo até não se sabe quando. Um dia pode expulsá-lo ao aprender como jogar.


Texto enviado ao jornal “Folha Metropolitana” e à revista “Guarulhos S/A”, ambos de Guarulhos (SP), em novembro de 2003, e publicado na revista “Guarulhos Mudafala”, também de Guarulhos, no. 3, março-abril/2004, e no jornal "Tribuna Feirense", 14-12-2003, de Feira de Santana (BA).

Nota de D.Z.: Bem ou mal, começo minha vida literária com esse conto. Exitei durante anos, não via sentido para entrar em tal meio — pensava que sufocaria outras pretensões — e nem me achava com vocação para escritor. Espero não parecer (e ser) mais um aventureiro e, principalmente, desagradar os leitores, a língua e comprometer a tradição dos monstros da Literatura nacional. A sorte está lançada e torço febrilmente para que um anjo torto (de preferência aquele de Carlos Drummond de Andrade) venha a mim e diga: “Vai, Darlan, ser ‘gauche’ na vida”.





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