Fragrância Feminina na Poesia
Estamos dando continuidade a publicação destes pequenos artigos que visam mostrar um pouco da escrita poética feminina no cenário nacional e mundial.
Pretendemos, tão somente, falar da emoção de nossas descobertas literárias ao nos depararmos com a vasta produção feminina na construção de uma identidade poética.
É antes de tudo, uma gota de perfume que permitirá ao leitor curioso, buscar outras essências, a partir da publicação destes textos.
Cora Coralina
Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas nasceu no ano de 1889 em Goiás Velho, antiga capital do Estado de Goiás. Era filha de Jacinta Luíza do Couto Brandão Peixoto e do Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães.
Em 25 de novembro de 1911 deixa Goiás, indo morar no interior de São Paulo.
Iniciou-se na escrita aos 14 anos, depois de concluir seus dois anos na escola primária. Passa então a adotar o pseudônimo de Cora Coralina.
Casou-se com Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas. Teve quatro filhos: Paraguassu, Cantídio Filho, Facinta e Vicência, 15 netos e 29 bisnetos.
No ano de 1954, retorna para Goiás, depois de 45 anos. Era conhecida também por Aninha da Ponte da Lapa, em função de ser doceira na cozinha da Casa da Ponte, onde já produzia seus versos ao pé do fogão.
Cora teve uma carreira literária singular. Seu primeiro livro somente foi editado em 1965, aos 75 anos de idade: Estórias dos Becos de Góias e Estórias Mais, pela Editora José Olímpio – São Paulo. Ganhou notoriedade quase ao 90 anos, quando suas obras chegaram até as mãos de Carlos Drummond de Andrade. Naquela ocasião, Drummond a definiu como “a pessoa mais importante de Goiás”. São traços marcantes em sua escrita: a espontaneidade, o cotidiano e as imagens que retrata o povo do seu Estado, costumes e sentimentos. Sua obra possui profundidade e uma beleza singular, sendo considerada por vários autores um registro histórico-social do século XX. Como ela mesma gostava de dizer, era uma “mulher atual inserida no seu tempo”.
Cora Coralina faleceu em 10 abril de 1985 em Goiânia.
Recebeu inúmeras homenagens, troféus, diplomas, prêmios, certificados, medalhas, placas, comendas. Muitas Bibliotecas, ruas e escolas têm seu nome.
Publicou: Estórias da Casa Velha da Ponte, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, Os Meninos Verdes, Meu Livro de Cordel, O Tesouro da Velha Casa, Becos de Goiás (1977); e Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (1983). Troféu Juca Pato (1983), da União Brasileira de Escritores, que a elegeu a Intelectual do Ano.
Poesias
O Poeta e a Poesia
Não é o poeta que cria a poesia.
E sim, a poesia que condiciona o poeta.
Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
Poeta é o operário, o artífice da palavra.
E com ela compõe a ourivesaria de um verso.
Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,
procurando no jogo das palavras,
no imprevisto texto, atingir a perfeição
inalcançável.
O autêntico sabe que jamais
chegará ao prêmio Nobel.
O medíocre se acredita sempre perto dele.
Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, a apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de
lançar um livro...
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.
Falam exaltados de fome e saudades, tão degastadas
de tantos já passados.
Primário nos rudimentos de sua escrita
e aquela pressa moça de subir.
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro.
Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.
A escola não os ajudou, inculpados, eles.
Todos nós temos a dupla personalidade.
O id e o ego.
Um representa a sua vida física, material
completa.
Pode ser brilhante, enriquecida de valores que
ajudam a ser felizes,
pode ser angustiada e vacilante, incerta,
insatisfeita.
Mesmo possuindo o que deseja, nada satisfazendo.
O id representa sua vida interior paralela,
ambivalente,
exercendo seu comando em descargas nervosas,
no eterno conflito entre a razão e o impulso
incontrolado.
Dupla vida inter e extra, personalidade se
contrapondo.
Pode ser trivial e dependente, podemos fazê-la
rica e cheia de nobreza,
nos valendo da força incomensurável do pensamento
positivo
emanado da vida interior que é o nosso mundo,
invisível a todos, sensível ao nosso ego.
Há sempre uma hora maldita na vida de um homem.
Pode levá-lo ao crime e às paredes sombrias de uma
cela escura.
Um curto circuito nas suas baterias carregadas,
uma descarga nas linhas de transmissão potencial.
Daí, fatos aberrantes que surpreendem.
Conclusões demolidoras de um passado brilhante.
Eu Creio
Creio nos valores humanos
e sou a mulher da terra.
...
Creio na força do trabalho
como elos e trança do progresso.
Acredito numa energia imanente
que virá um dia ligar a família humana
numa corrente de fraternidade universal.
Creio na salvação dos abandonados
e na regeneração dos encarcerados,
pela exaltação e dignidade do trabalho.
...
Acredito nos jovens
à procura de caminhos novos
abrindo espaços largos na vida.
Creio na superação das incertezas
deste fim de século.
Considerações de Aninha
Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos.
Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São Caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca grossa,
de chinelinha
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada
tão murmurada...
Fingindo alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro d mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras.
Mulher da Vida
Mulher da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
“Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra”.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
“Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno”.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.
Fonte de Pesquisa:
- Sites:
http://www.releituras.com/coracoralina_menu.asp
http://www.geocities.com/Athens/Troy/7812/cora/cora.html
http://www.geocities.com/lcamorim/coralina.htm
Fernanda Guimarães
|