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Cronicas-->Aqui em Fortaleza -- 11/03/2003 - 15:41 (Fábio Sousa Queiroz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aqui em Fortaleza, há um bairro chamado São João do Tauape e nesse bairro há um quarteirão que pertence à paróquia local. No quarteirão, foram construídas duas escolas e a igreja (conhecida como igreja do São João). O que restou do terreno foi cercado por um muro bem alto, muro este que até bem pouco tempo estava prestes a cair, mas não caiu. Foi escorado com algumas vigas de concreto, a mando do padre, para felicidade geral do bairro, que há tempos evitava transitar pelas calçadas do quarteirão, pois temia ser esmagado pelos muros que tentavam cair.
Às seis horas, por todo o bairro ressoam os sinos, chamando os fiéis para a missa do fim da tarde. O som dos sinos são produzidos por quatro alto-falantes enormes que se equilibram nos quatro cantos da torre.
Durante os primeiros sete anos da minha vida eu ficava observando, sempre que passava perto da igreja, a torre. Queria ver onde se escondiam os sinos, nada havia. Mas os alto-falantes estavam sempre lá, rindo da minha tolice. "Que objetos estranhos serão esses?" - pensava eu. Nunca havia visto nada parecido nos livros e revistas que lia, muito menos assim, pendurados na torre de uma igreja.
Este mistério foi finalmente revelado quando, numa tarde de domingo, eu passava por perto, na companhia do meu melhor tio, mas mesmo que este fosse também meu melhor amigo, eu, com o muito orgulho que sempre tive, hesitava em indagá-lo sobre os objetos irritantes que pendiam dos quatro cantos da torre. Além de orgulho, também tinha muita curiosidade e esta, naquela tardinha, venceu o primeiro sentimento, que algumas vezes também sabia vencer, mas não o fez nesse dia. Até que ele deu uma boa explicação...
Aos montes, iam surgindo os fiéis. Cabelos brancos eram os mais vistos, vindo de todas as direções. Eu costumava pensar se aquelas expressões de desgosto da vida, talhadas na dureza dos rostos daqueles velhos, eram causadas pelo mesmo sentimento que me tomava quando ia à igreja forçado pelo remorso que sempre despertava depois de uma sessão de sermões sobre o valor da religião e do bom comportamento, de como deveríamos ser bons meninos e ir sempre ao catecismo e à missa pelo menos aos domingos, recitados solenemente pela minha avó. Dez anos depois a dúvida ainda me persegue, mas não com tanta força como antes.
Há bancos organizados em oito fileiras, mais ou menos, fileiras bem compridas, quatro de um lado e quatro do outro, no meio, um glorioso corredor. Quando eu ia lá, só me sentava perto desse corredor para me divertir observando o comportamento das velhotas. Quase todas repetiam o mesmo movimento. Entravam pela porta principal, ajoelhavam-se em um ponto do corredor onde havia maior concentração de pessoas nos bancos em volta, faziam o sinal da cruz, levantavam-se e iam a um ponto perto do altar, de onde podiam ser vistos todos os bancos bem de frente. Fingiam estar procurando alguém. Equilibravam-se nas pontas dos pés em um movimento totalmente desnecessário e olhavam rapidamente em volta, esquerda, depois direita, duas vezes. Como, logicamente, nunca encontravam ninguém, baixavam o rosto e, com um forte movimento de cabeça, lamentavam não ter visto quem queriam.
"Vejam a minha roupa!" Era assim que eu pensava que elas pensavam ao fazer tal bobagem.
Seis e quinze, seis e vinte, começava a missa. Eu, como sempre, não entendia nada do que o padre falava e me perguntava se alguém mais poderia entender o que o santo homem dizia. Para mim, a simples presença na igreja era o bastante pra me livrar da "ira de Deus no Dia do Juízo", como dizia minha avó.
Para passar o tempo eu brincava de descolar os chicletes presos embaixo dos bancos e tentar adivinhar qual era o mais antigo e há quanto tempo estava ali. Claro que eu não punha aquilo na boca! Ora! Eu tinha muitos, novinhos, no bolso. E, para não perder o costume, sempre deixava o meu grudado e memorizava exatamente o local para, da próxima vez que fosse à igreja, sentasse no mesmo lugar e olhar se ele ainda estava lá. Isso era bom porque assim fui pegando prática em saber avaliar, pelo nível de rigidez da goma, há quanto tempo as outras estavam grudadas embaixo do banco.
Mais ou menos às sete horas, aquela tortura sagrada terminava (que Deus me perdoe!). Todos apressavam-se em ir embora, pois o bairro já estava perigoso àquela hora, em grupos grandes, para assim poderem se proteger da bandidagem.
Passei a observar uma senhora arqueada, andando vagarosamente carregando uma bolsinha que pendia-lhe do braço enrugado. Estava ficando para trás por ser muito lenta. Confesso que fiquei com vontade de ir embora e deixá-la sozinha, mas me lembrei do filme que assisti no dia anterior que mostrava o cotidiano de meninos escoteiros. Muita frescura! Mas eu queria saber como era sentir o tal orgulho de fazer a "boa ação do dia."
Fui me aproximando da velha com cuidado para não assustá-la. Estava decidido: "se ela se assustar e esconder a bolsa com aquele medo besta, eu vou embora e deixo ela aí." Esse comportamento instintivo da maioria das mulheres, deixava qualquer garoto da nossa idade ofendido e principalmente irritado. Os meus amigos também eram da mesma opinião. Algumas vezes, quando conversávamos sobre banalidades nas reuniões que fazíamos após a aula, esse assunto era o que mais agitava a turma. "Quem essas `catrevagens´ pensam que são?" "Aposto que dentro dessas bolsas velhas só tem um centavo e um vale-transporte!!!" "rá rá rá rá" A indignação logo se transformava em zombaria quando Itamar fazia esses tipos de comentário.
Zás! Gritos da velha e dois olhos arregalados.
Não tive tempo nem de chegar perto da pobre mulher. Um ladrãozinho puxou-lhe a bolsa e desatou a correr com um profissionalismo impressionante. Desceu a rua escura, correndo como um maratonista pela calçada que antes era evitada por todos que tinham medo de morrer esmagados pelo muro.
"Rápido! Chamem a polícia."
"Pega ladrão!" "Ih-ri-ri."
Não foi preciso ligar pra ninguém, porque ali perto havia um conhecido sargento da polícia militar. Este correu atrás do rapazote com fogo nos olhos e asas nos pés.
Os dois correram avidamente. Eram como Tom & Jerry, naquele momento. Os que assistiam a tudo, esperavam pelo desfecho do espetáculo. O meliante virou à esquerda, como se quisesse dar uma volta no quarteirão. Ninguém acreditava que ele faria isso pois, se fizesse, encontraria uma turma de justiceiros, do tipo que sempre há em todos os lugares, esperando ansiosos para testar os novos golpes de karatê em um ladrãozinho medíocre como aquele.
Pois foi dito e feito. Lá vem o ladrão! Sai do meio!
Logo atrás o sargento. Pega! Pega! Este sacou o revólver calibre trinta e oito, fazendo os espectadores prenderem a respiração.
Pá! Um tiro. Muitos se abaixaram num comportamento instintivo. O ladrão continuou a carreira e sumiu para nunca mais. O sargento também parou bruscamente e desviou-se dali, sumindo por uma rua próxima. Ninguém, de imediato, entendeu o comportamento dele.
Todos já se amontoavam perto de quem estava no chão, sangrando. Um barulho gorgolejante saía da boca ensanguentada. Leves espasmos eram produzidos pelos braços e pernas e assustavam os espectadores atónitos. Tosses sangrentas salpicavam as roupas dos que estavam mais perto.
O último suspiro foi testemunhado por quase todos. Lamentos e protestos ecoaram em todas as direções. Ninguém conseguia acreditar em tamanha tragédia. O corpo ficou um tempo lá, sob os olhares curiosos das pessoas (algumas até conseguiam rir da situação). O sangue descia rua abaixo e os olhos cinzentos, entreabertos, olhavam para os céus como que pedindo piedade a Deus por todos os homens desse mundo.
Fiquei durante muito tempo a pensar na falta de sorte daquela pessoa. Como morrer daquele jeito, meu Deus? Ir à missa e nunca mais voltar.
E foi assim mesmo, o triste fim da velha senhora dona daquela bolsa.

Fábio S. Queiroz
01/03/2003
15:40
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