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Contos-->Estranhos. -- 06/10/2003 - 15:27 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O homem tinha por volta de sessenta e cinco anos, era alto e magro, branco e cego do olho esquerdo. Tinha as orelhas e o nariz já bastante deformadas pelo tempo, os ombros caídos e a respiração cansada. O desgaste nas obrigações rurais fora-lhe mordaz, rugas cobriam-lhe toda a face. As mãos eram grossas nas palmas e amarrotadas nos dorsos, cicatrizes decorrentes da labuta de uma vida inteira no campo marcaram-lhe o corpo decadente. Por conta da altura, era um pouco corcunda. Arrastava levemente a perna direita. "Passei a arrastar a perna depois que fui ofendido de cobra no inverno de trinta e oito", começava sempre assim a explicação e esquecia do tempo para fornecer detalhes do fato a quem perguntasse. O olho perdera quando um tiro de espingarda saíra pela culatra durante uma espera, três anos antes. Vestia sempre camisas de mangas compridas, marrom ou cinza, com calça de tergal azul-marinho ou preta e sapatos pretos, da mesma marca, há mais de quarenta anos, gabava-se. Usava óculos de lentes espessas e armação de massa preta que o deixava com o aspecto de militar da reserva. Falava alto, quase gritando, andava a passos desajeitados e rápidos, gesticulava quando conversava e apesar de ter passado a vida inteira no campo, tinha opinião sobre quase tudo. Na roça ouvia rádio, as pilhas nunca faltavam. Adorava contar causos e estar no centro das rodas de conversa. Para ele, tudo era motivo de graça, o tempo não lhe roubara o prazer de compartilhar sorrisos com outras pessoas. Seu aspecto físico contrastava fortemente com a vida que lhe saía por todos os poros.

O menino beirava os oito anos, era esquelético, desengonçado e grande para a idade. Tinha os olhos fundos e o aspecto triste, quase não ria e conversava pouco. Era taciturno, melancólico, um tanto sombrio, solitário, sonhador. Curioso e inteligente também. Fazia-se de bobo e levava vantagem em tudo. Era mestre na arte de manipular pessoas. Não era mau, mas usava suas artimanhas para convencer, mesmo que indiretamente, quem fosse necessário para que seus caprichos fossem atendidos. Caprichos parcos, diga-se de passagem. Um pirulito por dia, daqueles que vinham acompanhados com uma hélice para colecionar, um presente de escolha própria uma vez por ano no aniversário e sempre alguma coisa nova para ler. Mesmo com pouca idade o garoto já lia bastante, gostava de ler revistas, jornais, gibis e as fotonovelas que as tias compravam. Na verdade lia de tudo, nessa época a velha televisão vivia no conserto. Conseguia ler e entender as coisas, inferindo significados de palavras e perguntando muito aos que lhe davam abertura e inspiravam confiança. Tinha pai e mãe, porém, morava com três tias na cidade para estudar. Via os pais nos fins de semana quando ia para a casa na periferia. Era comum o garoto passar dias trocando frases curtas com as poucas pessoas com que tinha contato. Às vezes deitava no colo de um das tias, sem avisar, como um gato, e alí chorava calado. Sem explicação.

As tias do menino moravam num bairro antigo da cidade, com poucas crianças. Assim, o garoto aprendera a lidar com a solidão e acabara por tomar gosto por estar sempre só.

Nesse tempo encontraram-se pela primeira vez, os dois estranhos, o homem e o menino. O avô e o neto. O velho e o novo.

Estranharam-se ao primeiro contato e dali em diante, sempre.

O velho, com os filhos criados na roça há tempos, perdera o jeito com crianças. E o neto fora criado na cidade, diferente dos meninos com que o avô tivera contato em décadas passadas.

A ida do homem para a cidade se dera por motivo de enfermidade, não por vontade própria e a cidade, era vista pelo homem como sendo um lugar que não fazia sentido. Um monte de gente fazendo questão de morar perto umas das outras, comprar verduras no mercado, carne no açougue, trancar as portas das casas e pagar para ir ao trabalho de ônibus. Se todos morassem na roça não teriam esses e muitos outros problemas. Sempre tentava convencer sua platéia, o velho.

O avô do garoto, encontrava-se ali a contragosto e o que era pior, sem ocupação. Não havia o que fazer na casa das filhas, não havia uma horta para cuidar, rio para pescar, lavoura para tocar, aceiro pra fazer, cavalo para montar ou gado para apartar. Só havia o neto para brincar e conversar. Ele não fumava mais, porém, bebia uma pinga de vez enquando antes do almoço. Não sempre, só quando a saudade de sua casinha mateira apertava. Explicava, quando inquirido pelo neto. Gastava pouco, na rotina regrada de gente simples que faz conta de cada centavo. Poderia fazer falta no futuro, dizia. Assim, nunca fazia graça para o neto ou qualquer um que fosse. Ao neto dava balas, poucas, e não o deixava escolher. São todas iguais, doces, dizia, pra que escolher?

Os dois contrastavam o tempo todo. Ora pareciam dois velhos, ora eram como duas crianças. Nunca se entendiam. Pareciam dois extraterrestres dividindo a mesma cela, no barraco de dois quartos que compartilhavam com as três mulheres da casa.

Os dias eram enormes e o tempo separava as horas uma da outra sem piedade.
Brigavam muito e por qualquer coisa, mas sobretudo por futilidades. Toleravam-se. Porém, intimamente, ambos eram ligados por uma profunda admiração mútua.

Perante o avô, o garoto sentia-se onipotente. O velho não sabia usar orelhão, não sabia usar a vitrola e a televisão. Era difícil aceitar que na roça, de onde o avô vinha, não houvesse essas coisas e era mais difícil para o garoto aceitar a resistência que ele tinha por aprender a usar tais recursos tão comuns na cidade.

E foi sempre assim, até que o velho sarou e voltou para a sua terra carregando um pouco da juventude do primeiro neto no peito.

Quanto à criança, ela viu no avô o retrato da decadência. Só mais tarde ele percebeu o quanto o avô era nobre, o quanto sua alegria de viver era algo singular. Mas já era tarde.

A idade separava-os. Muito.
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