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Contos-->O homem bom. -- 06/10/2003 - 15:26 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Numa tarde de domingo de início de mês, no estacionamento de um grande shopping, um enorme carro prateado procurava desesperademente uma vaga para estacionar. Luxuoso, vidros escuros e fechados, rodas brilhantes, ágil, o veículo assemelhava-se a um tubarão à caça de uma presa. No volante um homem de meia idade controlava a máquina com perigo e descaso, enquanto conversava despreocupadamente no celular.

De repente, alguém desocupa uma vaga à sua frente, mas um outro carro tem a preferência. É preciso ser rápido! O homem acelera, imbica desengoçadamente sua máquina no lugar e bate com violência no carro estacionado vizinho. Marcha a ré e fuga, o condutor nem se dá o trabalho de verificar os danos. Várias pessoas presenciaram a cena e tomaram providências.

No dia seguinte, em algum lugar da parte mais nobre da cidade, doutor Venâncio atendia normalmente em seu consultório quando sua secretária interfona:

-Doutor, tem um homem na linha querendo falar com o senhor sobre uma batida no carro dele no estacionamento do shopping ontem a tarde.

Venâncio pensa dois segundos, suspira e berra:

-Diga a esse homem que eu não sei do que se trata, diga-lhe que eu passei o dia de ontem na minha chácara, que não sou o a pessoa que ele está procurando e que não é para ele me ligar novamente pois estou muito ocupado!

Duas horas mais tarde a secretária contata novamente o médico:

-Doutor, o homem da batida tá me ligando de vinte em vinte minutos desde aquela hora e ele me disse que não vai parar de ligar até o senhor falar com ele.

-Merda! Passa logo esse vagabundo, vou resolver isso!

A secretária transfere a ligação e os dois iniciam o diálogo:

-Pois não meu senhor, minha secretária disse que o senhor queria falar comigo sobre o pequeno incidente que ocorreu ontem no shopping, não é mesmo? Bem, serei breve, pois estou com um paciente na sala de cirurgia, mentiu o médico e continuou. Eu ainda não tive tempo de levar meu carro numa oficina para ver em quanto vai ficar o conserto, mas se o senhor me der seu telefone eu lhe informo o valor assim que for possível. Sei que foi uma fatalidade, sou um homem justo e o senhor só precisará pagar a metade do conserto.

Breve silêncio entre ambos.

-Mas doutor, o senhor bateu no meu carro que estava estacionado...

-...estacionado no estacionamento coberto, interrompeu o médico, reservado às pessoas vips. O seu carro é velho, está todo amassado e sujo, provavelmente está cheio de irregularidades na sinalização e de segurança. Além disso ele estava mal estacionado. Olha rapaz, sou médico conceituado, semana que vem lanço minha candidatura à câmara federal e não tenho tempo pra ficar discutindo banalidades com pessoas sem bom senso como o senhor. Façamos o seguinte, sabemos que o que aconteceu foi uma fatalidade e como sou um homem público e bom não cobrarei do senhor metade do conserto do meu carro. Passar bem.

-Doutor!! Pessoas o viram dirigindo como um louco pelo estacionamento enquanto falava ao celular e muita gente viu o senhor enfiar seu carro na frente de outro para lhe tomar a vaga! Foi aí que seu carro bateu no meu que estava rigorosamente bem estacionado, tenho testemunhas!

Aos berros o médico respondeu:
-Meu amigo, sou um homem ocupado, já lhe disse e meu celular é um de meus instrumentos de trabalho. Tenho negócios e bens para administrar, além de família e amigos para dar atenção. Não posso me dar o luxo de ficar sem usar o telefone quando estou no trânsito! Coloque-se no seu lugar, seu pobre! Vaga coberta de shopping é para quem tem dinheiro para gastar! Você, com sua carroça fora do lugar estragou meu carro e você ainda me procura para me encher? Eu devia te processar, suma senão eu faço isso! E quer saber de uma coisa seu idiota? Gritou encolerizado o médico, coloque-se no seu lugar! Pobre!

Depois de desligar o telefone bruscamente, doutor Venâncio, que estava vermelho de raiva, pôs-se a pensar enquanto contemplava um sem-número de diplomas e certificados que enfeitavam todas as paredes do enorme consultório.

"Com tantas honrarias, diplomas e certificados - muitos deles conferidos em outros países - não posso me dar ao luxo de ficar pagando consertos de carros para essa ralé. Quem mandou aquele babaca colocar o carro dele lá? Sou um homem de bem, as provas estão em todas as paredes desse lugar, até diplomas de bom pai e bom marido eu tenho", pensou o médico. Levantou-se e passou a observar de perto o conteúdo de cada moldura pendurada na parede. Cada um tinha uma estória, uma razão para estar ali. A maioria desses diplomas celebravam suas boas relações com o poder, com a política, com a alta sociedade. A decoração do lugar era toda feita com presentes dados por amigos. Uma estátua em cada canto do ambiente, quadros na parede, ótimas bebidas no bar. "Tudo de muito bom gosto, sempre escolhi meus amigos a dedo", concluiu.

Ficou Venâncio ali por um bom tempo, não almoçou, não teve fome. Um inexplicável vazio o tomou naquele dia. O homem investigou a pequena biblioteca dividida em duas partes, uma com os livros de medicina (bem visível, para impressionar os pacientes) e outra com os demais (que ficava numa parte tampada por duas portas de correr de vidro). Na divisão escondida da estante, haviam muitos livros de religião, esoterismo, best sellers e até uma bíblia. Folheou alguns desses livros, leu algumas dedicatórias e tomou uma dose de whisky doze anos que lhe fora presenteado há anos por um amigo, que na época do presente era secretário de governo.

"Porque aquele idiota deixou o carro naquele lugar?" O médico estava encucado, a estória da batida não lhe saíra da cabeça. Porém, em seu íntimo, um resquício de culpa tomava corpo e começava a incomodá-lo. Venâncio de súbito lembrou-se de um amigo que tivera na universidade, que ia de ônibus para o campus e saía cinco horas da manhã de casa para não chegar atrasado nas aulas. "Se Carlos tivesse um carro, mesmo que fosse velho como o do imbecil do shopping, ele poderia sair mais tarde de casa e poderia ter se dedicado mais ao curso. Agora estou me lembrando que Carlos foi obrigado a abandonar a universidade para cuidar da família depois que o pai largou sua mãe para viver com outra mulher. Eu gostava do Carlos, ele era muito engraçado. Pobre, e bobo, mas tinha um ótimo senso de humor. Até hoje não entendo como ele tinha coragem de sair de casa no domingo e se voluntariar num hospital psiquiátrico. Fiquei sabendo que hoje ele é vendedor de plano de saúde, está no lugar certo". Venâncio prosseguiu pensando por algum tempo até que aquilo tudo lhe incomodou muito e num ímpeto interfonou para a secretária:

-Quero que você dobre a quantidade de brinquedos que doarei às crianças da creche da dona Eduarda e diga-lhe que entregarei as doações pessoalmente amanhã as dez. Fez uma pequena pausa e continuou: avise para minha mulher que não dormirei em casa hoje porque tenho uma cirurgia muito delicada marcada para as oito da noite e peça para dona Eduarda dar banho nos meninos antes de eu chegar, não quero que aqueles catarrentos me sugem como da última vez. Se o homem do shopping ligar outra vez, diga-lhe que eu o colocarei na cadeia em menos de um mês se ele não parar de me ameaçar. Outra coisa, no mês passado você me pediu para sair quinze minutos mais cedo todos os dias para chegar no horário na escola. Pois bem, você pode sair dez minutos mais cedo nesta semana se você quiser. É só isso, entendeu tudo?

-Sim doutor, entendi e providenciarei tudo. Quanto a eu sair mais cedo, não precisa mais. Perdi muitas provas por chegar sempre atrasada e fui obrigada a desistir de estudar.

-Bem minha filha, estou fazendo a minha parte - disse o médico num tom misto de dó e sarcasmo - nem tudo na vida da gente acontece do jeito que a gente quer no momento que a gente quer.

A secretária saiu cabisbaixa e deixou sozinho o homem que imediatamente ligou do celular para a sua amante e marcou uma noitada com a promessa de ser inesquecível.

"Vou dormir muito bem hoje. Sou um homem justo e bom, mereço", refletiu Venâncio. Assim, o homem bom terminou alegremente o dia, sentindo a consiciência leve como uma pena.
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