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Poesias-->Da janela de Antonio -- 12/06/2004 - 07:44 (Luciene Lima) |
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Da janela de Antonio
Antonio saia de manhã para comprar pão.
Tomava seu café preto com o alimento ainda quente
e sentava-se em sua cadeira de tiras coloridas
ao lado da janela.
E a manhã desfilava garbosa
muitas horas rotineiras
diante de seus olhos acostumados
com a claridade refletiva dos dias.
Passava por ela, a janela
toda a vida,
de fora para dentro
da janela dos olhos
de Antonio.
Ela ia espreguiçando-se,
a manhã,
junto com ela, a janela
trazendo os trabalhadores dos armazéns de fumo
das lavadeiras com suas rodilhas numa das mãos
e noutra, a lata com sede
e num dos braços a trouxa de roupa suja
enquanto, noutro, os meninos de olhos magros e contentes
de quê não sei, nunca atinei.
Bocejava a manhã
para a janela
mostrando um passeio onde passavam
moleques e molecas indo para a escola
e mulheres que iam à feira
umas grávidas
umas jovens
umas velhas
umas que iam acompanhadas
falando de tudo
até da vida alheia
e outras que iam sozinhas
matutando sobre as taipas de suas paredes.
Abria suas asas
a manhã
como se a janela nem tivesse mais tanta importância
e o sol ia virando-se de um lugar para outro
mudando o lugar das sombras
fazendo possível o adivinhar das horas só por isso
e muita gente que tinha ido, voltava
para ir-se novamente
e somente nesse instante Antonio saia da cadeira
deixando as tiras marcadas
para almoçar seu feijão grosso com farinha de mandioca.
Eram mais insossos os olhos de Antonio
mas não diziam se eram alegres ou tristes
apenas não davam notícia de nada
quedavam-se absortos nos grãos da comida
e tornavam, suas pernas magras de pés ossudos,
para a janela
sua vida.
O cortejo da fantasia conhecida
guardado como segredo
no silencio da língua muda de Antonio
continuava na viração da tarde em cair da noite
e todo o dia o abraçava
vendo as gentes que voltavam
tendo sobre a cabeça a rodilha sob a lata satisfeita
com pingos d água que fugiam, enquanto suas ancas balançavam
Águas satisfeitas, sede matada,
pronta a matar a sede de toda a gente da casa.
O sol pintava coloridos no céu que as vezes chovia
e as nuvens mormaças dobravam-se umas noutras
provocando uma massa de sobreposições leitosas
como se encenassem um espetáculo para a alma de Antonio
e o gado que havia, também, passado quando a manhã abrira seus braços
voltava guiado ainda pelo conduzir dos moços
que traziam sob os pés o cheiro do mato que crescia
como se tivesse intentando,
o mato,
cobrir de si mesmo todo o mundo que gozava naquelas bandas
as possibilidades misturadas com as impossibilitudes
Esterco, estrume, adubo de boa monta que preço não paga o riso da planta.
Então o sol caia
vencido e vencedor
dando vazão à noite de estrelas
no campo azul marinho daquele céu distante
como se tudo tivesse bailado para dar boas vindas
ao sono nos olhos de Antonio
e ele levantava-se novamente, da cadeira de tiras,
para tomar mais café com farinha e carne seca
fumar do fumo de corda
e deitar-se em sua cama branca de lona
ao lado de Paula
a que eu falo que corria durante todo aquele dia.
E eu, menina, de quando em vez observava a vida
pelos olhos que eu julgava sentirem
o que Antonio estivesse sentindo
mas eu nunca perguntei o que ele via.
Agora
dessa outra janela
vendo uma outra costela da vida
nesse vácuo cujo espaço
tem olhos taciturnos
vejo coisas que ele via
vejo coisas que ele não via
vejo as mesmas coisas
que ele nem dizia
e não ainda sei o que elas dizem
ou se dizem tudo o que ali havia
ou tudo que agora há.
E vejo Antonio
só Antonio
reverberando
soando como eco
para minhas outras janelas abertas
para essas que trago fechadas
e no meio de seus caminhos
ficam o que vejo e o que não vejo
das passagens em que nos fundimos
e percebo coisas
muitas que me escapam
outras que não me contêm
entre a alva e a noa
das noites de Antonio
derramando-se em meus dias.
L.Lima |
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