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cronicas-->Diário de Bordo de um Naufrago que Nunca foi ao Mar -- 05/03/2003 - 00:56 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Diário de Bordo de um Naufrago que Nunca foi ao Mar

Carlos Canhameiro

Nasci e vivi na mesma cidade. Nunca coloquei os pés para fora dos limites do pequeno vilarejo no interior de Minas Gerais que chamo, carinhosamente, de "Terra do Nunca". Coça-me a língua para dizer que conheço essas terras como a palma da minha mão, mas não falo, sempre me pego a ver que minhas mãos tem mais linhas do que posso memorizar. Não sou homem para achar que sei tudo de alguma coisa, mas sei pelo menos como chegar na casa da dona Leda, que fica para lá do rio das Onças. Não conheci meus pais, não aqueles que me geraram. Chamo-os de pai pelo costume que me foi ensinado, mas nunca nutri por eles qualquer sentimento que possa assimilar-se ao de pai e filho. Quando frequentava a igreja, aprendi que esse tipo de amor, o de pai para filho, chama-se storge, mas nunca entendi direito essas questões, mas é estranho como guardamos algumas coisas na cabeça e nunca mais esquecemos. Contaram-me que minha mãe morreu de complicações após dar à luz e que meu pai fora vítima de um acerto de contas quando eu ainda não passava de um bebê. Nunca quis saber mais do que isso porque de nada me adiantaria ter lembranças e sentimentos por dois mortos desconhecidos. Os vizinhos da direita de quem entrava na casa em que vivia é que me criaram e são eles os meus pais. Deram-me de tudo o que uma criança pode desejar, pelo menos aquilo que eu queria, sabendo que estava dentro dos limites que eles podiam dar.
Tenho anos que se acomodam em minhas costas formando o fardo da idade, mas me lembro de pouca coisa de toda essa vivência. Alguns acontecimentos parecem tão distantes que chego a duvidar da existência deles. Não estão cravados dentro de mim, são apenas páginas de um livro que li sem prestar muita atenção. Parece incrível mas grande parte da minha vida eu passei sem me aperceber que estava vivo, sem me dar conta que os dias não regressam. Ao mesmo tempo, lembro-me de coisas sem a mínima utilidade, nem para mim nem para ninguém, mas que não desaparecem e retornam de tempos em tempos. O episódio da professora do ginásio que queria, de qualquer maneira, nos ensinar o conceito de paradoxo. Mostrou-nos um trecho de uma música, que não consigo gostar até hoje. "Tristeza não tem fim, felicidade sim". Discutimos em várias aulas os conceitos de felicidade e tristeza, se um era antónimo do outro e por fim, porque o trecho do poeta era paradoxal. Chegamos a alguma conclusão em conjunto que não me recordo com exatidão, mas desde então me intrigou a busca das pessoas por essas tal felicidade.
Muitos me chamavam de ingênuo. Mesmo depois de terminar os estudos, esse rótulo me perseguiu. Diziam que eu não tinha aspirações elevadas, vontades exacerbadas, convicções acentuadas... Guardo todas as expressões, não sei se as entendo ainda hoje, mas gosto da sonoridade das palavras. Trabalhava, namorava, não continuei os estudos e estava satisfeito com isso. Eu assistia televisão, via filmes, adorava os do Fred Astaire. Também li muito, todos os clássicos que a biblioteca da prefeitura tinha. Não os entendia muito bem, mas gostava de ver outros mundos dentro do mesmo planeta. Mal conseguia falar o nome dos autores e só parei de ler quando as vistas não ajudaram mais. Então, reli, bem devagar, os que mais gostava. Tinha desejos infantis de me tornar um grande ator, de aparecer na televisão, de jogar no Cruzeiro, de ser piloto... Mas nunca levei a sério essas bobagens porque faziam parte da minha imaginação. Gostava de me sentar no banco da praça, olhar para o coreto e me imaginar qualquer outra pessoa que eu não era. Ficava algum tempo assim e estava satisfeito com quem era e também com quem poderia ser. Não era ingênuo, apenas contente comigo mesmo. E ainda sou.
Acredito que me julgavam assim porque partiram em busca da felicidade, jamais entendi ao certo. Alguns voltaram, e agora estão piores do que antes. Há neles um olhar de extrema insatisfação. Não riem mais e morrem aos poucos. Outros nunca mais tive notícias ou aparecem quando os pais falecem mas não ficam mais que dois dias, falam pouco e não se prendem a nada. Perguntei um dia a um colega de escola, que voltou para o enterro da tia, se ele era feliz. Ele sorriu, ficou mudo e disse que às vezes se sentia feliz. Acho que pelo menos já é alguma coisa. Em seguida ele começou a resmungar que tudo era muito difícil e que o mundo era muito injusto. Não concordei nem discordei, não sabia do que ele estava dizendo, talvez estivesse abalado com a morte da tia querida.
Nasci e morrerei nessas terras onde nunca acontece nada de extraordinário. Não me casei, preferi me apaixonar de tempos em tempos. Sabia que não teria sentimentos amorosos suficientes para administrar um casamento. Mas, estar apaixonado sempre foi o lenha que manteve meu motor funcionando. Também não tive filhos, não quis me tornar pai, não fui picado pelo bichinho da procriação. Estou velho, tenho minhas economias, ainda sento no coreto para brincar com a minha imaginação. Tenho amigos sinceros e amigos que jamais saberei, almoço todos os dias uma comida diferente e quando posso, jogo dama com o meu sobrinho. Morrerei satisfeito comigo, mas não morrerei feliz. Não porque não encontrei a felicidade mas porque nunca fui atrás dela.
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