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Infanto_Juvenil-->O DIA DA RAZÃO::: -- 18/02/2003 - 08:50 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O DIA DA RAZÃO:::
Marco Aurélio Brasil Lima (marcao@comversos.com.br) São Paulo/SP


É verdade, o ônibus estava meio vazio, mas o detalhe não serve para deslustrar o insólito do ocorrido ou fazer dele menos extraordinário, de forma alguma.
Aconteceu que ia o coletivo bem tranqüilo por umas quebradas ensolaradas, todos os passageiros olhando pelas janelas os seus diferentes mundos lá fora, a maioria semi-adormecida. O cobrador, um homem magrinho e pequeno, de cabelos negros penteados para trás formando um quase topete na frente, o rosto sulcado de compridas rugas, mexia na gaveta de cenho franzido. De repente, sem mais nem mais, começou a falar baixo, olhando para ninguém.
- É o fim do mundo, mesmo. Dá vontade matar esses cretino, é ou não é? “Como não tem troco?” fez uma careta engraçada retorcendo os cantos dos lábios para baixo, imitando um passageiro chato, decerto. As pessoas ao redor olharam discretamente para ele, com um ar de “será que é comigo?” Como ficasse evidente que era o ar e todo mundo os seus interlocutores, desviaram a vista de volta para o espetáculo monótono da tarde que se desenvolvia. Com a exceção de um officeboy negrinho, sentado rigorosamente à frente do cobrador; este não tirou os olhos curiosos do homenzinho, que continuou a falar aumentando o volume e começando mesmo a se exaltar – Passa quatorze hora sentado aqui que quando você chegá em casa não vai saber se entrou pela porta, janela, o diabo! Aí você ganha cento e cinqüenta mil no fim do mês, leva cento e trinta, que o resto é da Previdência, e vai pagá o aluguel e o show do Michael Jackson pras duas filha, é o fim do mundo. Vai lá falá de Deus na televisão – fez uma outra careta, querendo representar assim um sujeito engomadinho – “que Deus te abençoe patati patatá”. Vai cata coquinho, belzebu – disse com um ímpeto que despertou algumas risadas tímidas. Eu acredito em Deus – e pela primeira vez virou-se diretamente para alguém, o officeboy que o ouvia divertido – eu sou crente, mas Deus é espírito, é santo, é Pai, Filho e Espírito Santo. Lá na televisão parece todo certinho, ser todo santinho, não é? Vinte cruzeiro! Que é que você faz com vinte cruzeiro? - tirou um vale-transporte de vinte da gaveta e deu-lhe um tapa com as costas da mão, mostrando-o para a mulher que estava sentada no primeiro banco ao seu lado – não compra nem uma bala!
O motorista olhava pelo retrovisor com olhos sorridentes e uma pequena ruga de estranheza na testa. Os passageiros davam olhadelas rápidas para o homem que discursava sem entenderem patavina também. Uma moça gorda, que estava sentada atrás da mulher ao lado do cobrador, dava umas risadinhas curtas e estridentes que queriam dizer: “esse cara é louco!” de vez em quando, entre um e outro salgadinho que comia lambuzadamente. O cobrador não parava:
- Mas ao invés de botar logo trezentos, o cidadão vai e coloca duzentos e oitenta e eu que me vire pra ter troco! Aí chega esse efeminado todo cheiroso: como não tem troco? - ele ia alternado as caretas sem qualquer cerimônia ou método, mexendo muito os braços e fazendo gestos sem o menor sentido, muxoxos, tapas no ar - Vê se pode uma coisa dessas! Eu sou crente e ganho cento e cinqüenta, você acha que eu vou ficá indo ver Michael Jackson? o officeboy agora ria, e olhava para trás para certificar-se que os demais partilhavam do seu divertimento. - Cristão que é cristão não vai no carnaval, sem vergonha! Homem que é homem, mulher que é mulher não vai no carnaval, que é tudo vagabunda! Cristão não tem televisão, pergunta pra ele. Deus é espírito, não é que nem nós que é tudo carne. Vê lá se eu vô ficar indo ver Michael Jackson e Madonna, belzebú! Vai catá coquinho! Moro no mato mesmo, lá no Parque Independência, perto do Valo Velho, e acordo quatro da manhã e volto pra lá às dez da noite, não sei se entrei pela porta, portão ou o raio que o parta! – como essa frase despertara risos mais evidentes, repetiu: fica aqui quatorze horas que quando você chegar não vai saber se entrou pela porta, portão ou o raio que o parta! Aí como “não tem troco”? Boto minha mãe no meio, me chamou de filho da outra! Como é que ele conhece minha mãe, coitada – deu uma risadinha – morreu em Minas vai fazê dez ano!
O cobrador estava visivelmente satisfeito com a própria eloqüência e com a assistência da platéia que, analisando friamente, limitava-se ao officeboy risonho, o único ouvinte fiel e declarado que ele tinha ali. Tanto que continuou falando e falando e falando, e o ônibus ia andando, dobrando esquinas, fazendo voltas, parando nos semáforos.
Num dado momento, então, o homem gorducho que estava sentado atrás do officeboy, de camisa e gravata, pasta a tiracolo, e que não havia tirado os olhos da janela o tempo todo, anunciou inusitadamente, com voz retumbante:
- Se ele pode falar, então eu posso cantar.
E começou a entoar Strangers in the night com potência lírica. A estranheza geral chegou ao ápice, nem precisa dizer. As pessoas olhavam e riam porque não sabiam como reagir. Mas quando o cobrador, que havia parado para ouvir o inesperado cantor, deu de ombros e continuou seu palavrório desconexo, o officeboy, que havia estado olhando de um para outro e de outro para um, sempre com aquele arco de marfim reluzente no rosto, começou a batucar um ritmo afro-norte-americano sobre o banco de plástico.
Ora, eis que um homem jorrava palavras tortas sem parar, outro cantava como se no Carneggie Hall, e um rapaz batucava rindo no coletivo urbano. O motorista continuava a olhar pelo espelho, agora sem o sorriso nos olhos, mas ainda com a ruga na testa.
A gordinha levantou-se e com gritinhos agudos começou a esfarelar o seu salgadinho alaranjado pela janela afora, polvilhando a atmosfera tediosa da tarde ensolarada de pó dourado. Uma negra gordona começou a fazer barulhos esquisitos com a boca lá no fundão, parecia uma cuíca. Um rapaz levantou-se lá na frente e começou a dançar break (dança absolutamente fora de moda, esclareça-se) e logo um velhinho de semblante respeitável deitou-se no banco colocando as pernas para cima, os pés apoiados nos vidros da janela e as mãos entrelaçadas sobre o ventre, rindo baixinho.
Assim, breve todos estavam fazendo coisas sem razão aparente dentro do ônibus e todos tinham nos olhos o mesmo brilho de satisfação exótica, a mesma euforia primitiva, infantil.
O motorista olhava estupefato, era o único que se mantinha dentro dos padrões estabelecidos de comportamento. Perguntava-se o que poderia ter acontecido para ocasionar aquela curiosa manifestação de insanidade coletiva, perguntava-se se deveria fazer alguma coisa, como para o ônibus, chamar a polícia... Sobretudo o que o incomodava era aquela alegria estranha, numa tarde daquelas...
A sua janela era a maior de todas, era por ela que o mundo aparecia mais, e de frente, com a desvantagem de não ter farelos alaranjados dançando no ar.
Resolveu agir. A sua primeira providência foi tirar da testa aquela ruga de estranheza, a segunda foi sorrir e a terceira foi começar a ziguezaguear com o ônibus pelo paralelepípedo ensolarado.
E lá foi o ônibus, rumo ao horizonte.
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