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cronicas-->Minha Análise -- 06/08/2000 - 21:57 (Mastrô Figueyra de Athayde) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Minha análise

Felizberto Torquato, o novo porteiro da noite me foi apresentado numa situação embaraçosa: houve um pequeno início de incêndio em meu quarto de dormir e ele, que estava no banho, teve de descer até o hall enrolado apenas em uma toalha. Tinha cabelos escorridos como lesmas e os olhos esbugalhados de pavor barato, mas mesmo assim eu simpatizei com ele.
Algumas semanas depois, ao chegar do trabalho, encontrei a porta de meu apartamento aberta. Antes de entrar, desci até a portaria e pedi ajuda a Torquato. O invasor tinha fugido. Meus livros cobriam o tapete da sala e minhas roupas estavam amarfanhadas pelo chão. A geladeira estava aberta. Um CD de Tom Zé tocava a todo volume.
Vasculhamos o apartamento. Para o meu espanto, o ladrão - mas não sei se posso chamá-lo assim - nada levara. Procurava alguma coisa, que não achou, e se foi. "Dei muita sorte", eu disse e Torquato me olhou desconfiado. Eu estava quase feliz. Passei um café bem forte e, com a ajuda de meu porteiro, comecei a pór ordem na casa. Uma paz imprevista tomou conta de mim, mas eu olhava para Torquato e seus ombros estavam caídos, o olhar amuado, a boca torcida de desànimo. "Por que você está assim?", perguntei. "Está com pena do ladrão?"
"Não diga uma coisa dessas", ele pediu, ofendido. E achei que ia chorar, mas começou a cantar baixinho uma música sertaneja. A aliança de ouro que pertencera ao meu pai continuava dentro da jarra de cristal. As telas que mais amo, em especial um velho Fábio Jota e um Arnaldo Putragné em fundo vermelho, estavam intactas na parede. Por que eu não estaria aliviado?
O telefone tocou, era uma amiga que me convidava para sair. "Venha jantar aqui em casa", eu disse. "Tenho algo para comemorar". Torquato me olhou com pavor. "O senhor me permite dizer uma coisa?", perguntou assim que desliguei o telefone. "O senhor é mesmo muito esquisito".
Depois que tudo voltou ao lugar, dei a Torquato uma boa gorjeta, uma garrafa de vinho português e ele se foi. Tranquei a porta e, enquanto minha amiga não chegava, me estirei no sofá da sala para admirar o meu apartamento intacto, sem nenhum vestígio da invasão.
Só então, embrulhado naquela felicidade esquisita, começou a vir um vazio. Um sentimento vago, que surgiu primeiro na altura do estómago como um veneno que eu devesse vomitar, e depois me subiu pelo pescoço, desceu pelas mãos geladas, foi ao coração. Liguei a ducha e deixei que a água quente escorresse sobre mim. Precisava me aliviar de algo e não sabia o que era.
Depois, voltei para a sala e ainda enrolado na toalha, comecei a chorar. Não sabia bem porque estava chorando, mas as lágrimas eram grossas e me arranhavam o rosto. "Por que estou assim?", eu não parava de perguntar.
A campainha tocou, era Torquato que esquecera um martelo. Agora era eu que estava seminu, exposto em meu pavor. Ele ficou parado me olhando. "Você pode me dar um abraço?", eu pedi, sem nenhuma vergonha. Debrucei-me no ombro de Torquato e esperei que as lágrimas acabassem.
No dia seguinte, ao chegar do trabalho, convidei meu porteiro para um chope. "Quero te agradecer", eu disse. Ele me olhou intrigado e respondeu: "O senhor deve agradecer ao senhor mesmo. Quando a gente chora, é porque a gente se sente bem".
Olhei para Torquato, com o seu rosto quadrado, suas calças velhas, seu cabelo grisalho lambuzado de brilhantina, as horríveis orelhas de abano. E só então me dei conta de que ele tinha mesmo nome de velho sábio ceciliense. Ele era aquele sábio enfiado num uniforme de porteiro.
Torquato ainda me perguntou: "O senhor não percebeu o que lhe foi roubado?". As palavras não foram essas, pois o meu porteiro falava um português medroso, cheio de hiatos. Mas foi o que ele quis dizer, e logo depois se despediu.

Mastró Figueira de Athayde é cronista e beque central do Madureira
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