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Textos_Religiosos-->A Igreja Russa foi salva pelas mulheres -- 23/11/2006 - 10:30 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Igreja Russa foi salva pelas mulheres

(Texto extraído do livro “Romarias da Paixão”, de Rubem César Fernandes, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1994, pg. 66 a 79).

“A violência revolucionária contra a religião na Rússia foge ao padrão, significativamente, em sua cronologia. Foi mais brutal e massiva com Lênin e com Kruschov, ‘moderando-se’ com Stálin. O fato surpreende, mas faz sentido. O confronto foi maior nos períodos de entusiasmo socialista, enquanto uma certa acomodação serviu à defesa da pátria no esforço da Segunda Guerra.

‘O marxismo é um materialismo. Enquanto tal, não tem misericórdia para com a religião’, escreveu Lênin.

Em 11 de novembro de 1954, o Pravda publicava resolução do Comitê Central assinada pelo novo secretário geral, Nikita Kruschov, onde se lia:

‘O Partido Comunista, apoiando-se à única concepção realmente científica do mundo, o marxismo-leninismo, e ao fundamento teórico deste último, o materialismo dialético, não pode adotar uma atitude indiferente e neutra em relação à religião, que é uma ideologia totalmente estrangeira à ciência’.

É dever, portanto, do partido ‘ajudar os crentes a se desembaraçar finalmente dos erros religiosos’. O documento assevera ainda que:

‘(...) após a vitória do socialismo e a liquidação das classes exploradoras na URSS, as raízes sociais da religião foram cortadas e as bases que serviam de apoio à Igreja já não existem’.

As variações na política frente à Igreja não modificaram substancialmente, contudo, o esforço de educação materialista que caracterizou contínua e sistematicamente o regime. Mesmo às vésperas da invasão alemã, que traria a URSS para a guerra, a revista Antireligioznik de maio de 1941 dava conta da produção editorial anti-religiosa daquele ano: 67 título de livros e de brochuras, num total de 3.505 mil exemplares; duas revistas e um jornal, totalizando 5.880 mil exemplares.

A racionalização igualitária que padronizou a ferro, fogo e muita retórica relações sociais de toda ordem, nos campos e nas cidades, nas instituições de trabalho, de educação, de arte e de lazer gerou com sucesso a figura do homo sovieticus. Entre as suas características, a ignorância religiosa.

Resultou, pois, na Rússia, uma Igreja institucionalmente frágil. Poucos templos abertos, poucos monastérios, pouco clero. Nenhum livro de teologia, nenhum catecismo publicado desde 1918 até a Perestroika. Educação religiosa das crianças e dos fiéis em geral estritamente proibida, ritos de passagem sob suspeição, o padre excluído de toda atividade secular, até mesmo da administração paroquial.

Mais ainda, uma Igreja formalmente conformada ao estatuto que lhe fora imposto pelo Estado revolucionário. O Patriarca, Tykhon, é libertado em 1923 após assinar um reconhecimento de ‘suas faltas passadas’, e definir-se como ‘apolítico’. Morre em 1925, deixando três locum-tenens em substituição. Dois deles encontrando-se nos trabalhos forçados quando da morte de Tykhon, o terceiro, metropolita Pierre de Krutica, assume interinamente a direção da Igreja, mas também é preso e exilado na Sibéria poucos meses mais tarde. Coube então a Serge de Nizhnij Novgorod, depois de um breve período em prisão, encontrar o modus vivendi que lhe permitiria conduzir a Igreja de 1927 a 1943. Preço: declaração de lealdade, e sua guarda:

‘Queremos ser ortodoxos, proclamou em 1927, reconhecendo a União Soviética como nossa pátria civil; queremos que suas alegrias e seus sucesso sejam nossas alegrias e nossos sucessos, e que os seus fracassos sejam nossos fracassos’.

Em 1943, em meio ao esforço de guerra, galvanizando as energias disponíveis para salvar a ‘Pátria do Socialismo’, Stálin autoriza eleições patriarcais (devidas desde Tykhon), liquida o cisma da Igreja ‘progressista’ (já decadente), permite a abertura de escolas teológicas, a publicação de um periódico, a posse de edifícios religiosos, a reorganização da Igreja. Desde então, recomposta, a hierarquia manteve a figura de uma Igreja leal ao poder soviético.

Esta difícil e paradoxal submissão da Igreja cristã russa ao Estado ateu tornou-se motivo de críticas acerbas da intelectualidade dissidente. Eis um fragmento de um texto de 1972 redigido por Aleksander Soljenitzin, intitulado ‘Carta de um grupo de crentes enviada da União Soviética por intermédio do Samizdat’ (*):

‘O baixo clero é conduzido com rédea curta pelo Patriarca e não pode ultrapassar os limites do Acordo. Por outro lado, a hierarquia não tem contato com a massa dos fiéis. Nossos bispos são verdadeiros príncipes da Igreja, na maioria tão afastados do povo quanto os secretários provinciais do Partido Comunista. Que necessidade teriam eles de se aproximar do povo? O que poderiam lhe dizer, acorrentados como são pelo voto de lealdade ao reino do Anticristo? Recusando-se a tornar-se a ‘Igreja das Catacumbas’, a hierarquia soviética transformou-se numa ‘Igreja do Isolamento’. (...) Para trair o Cristo, não é necessário declarar-se seu inimigo, nem sequer caluniá-lo. Basta um beijo’...

(...)

Mas as igrejas não se esvaziaram de todo. Quem as freqüentava nos tempos do homo sovieticus? Quem manteve o calor humano ao redor das velas acesas? Quem tecia os tênues fios da continuidade nos templos quase vazios? A resposta é bem conhecida, embora nem sempre bem valorizada: foram as mulheres, as mães e sobretudo as mães das mães das novas gerações.

‘Ao lado do reavivamento religioso de uma parte da intelligentsia, existe um retorno à Igreja bem menos visível e bem mais amplo que vem das mulheres simples, as mulheres envelhecidas. Sua juventude ocorreu nos anos da grande exaltação do ateísmo. Pela sua fidelidade instintiva e sua total indiferença aos prognósticos científicos sobre a extinção da religião, as mães destas velhas mulheres de hoje salvaram, sem dúvida, a Igreja russa (ou o que dela resta). (...) Seu lugar foi tomado há tempos pelas suas filhas e netas. Seja por respeito aos ritos, seja por algum instinto profundo, no declínio da idade, elas voltam à fonte da vida.

(...) Mas todas estas mulheres! As que dançavam por desprezo ao redor de uma igreja, as que à sua maneira levavam Deus à morte, para depois enterra-lo em orações e lágrimas. Elas estão ligadas ao destino da Igreja. Suas apostasias e suas reconciliações secretas pertencem à experiência eclesial profunda’.

Quanto às conversões na intelectualidade jovem (gente entre os 25 e os 45 anos, ao que se diz), na década de 70, evoca-se uma razão de conjuntura histórica. O desgosto com, ou melhor, a repulsa pelo onipresente discurso ideológico. O casamento do marxismo-leninismo com o poder soviético, esta sinfonia perversa, tornara-se retórica enfadonha de Brejnev.

‘A ideologia! Ela penetra o coração do elétron, ela descobre as regiões longínquas da história, ela é senhora dos segredos do mundo e das profundezas do coração voltado para o Progresso. É científica e justa, verdadeira e uma com o movimento da história. É integral e total. (...) Quando se foi cevado desde criança com a irrealidade deste xarope ideológico, basta sentir o seu odor para que se fique nauseado’.

Veja-se, por exemplo, este corinho para consumo de pioneiros e konsomois (**):

‘Lênin! Ele tudo vê
As estrelas da noite polar
O trem que passa
Os cedros da taiga

Lênin viveu, vive e viverá
Lênin vive sempre
Lênin está sempre comigo
Lênin está em ti e em mim’.

(...)

Um texto de Siergiej Miedviediev, apresentado num simpósio no Vaticano em outubro de 1991, discute o tema do pecado no contexto dos debates políticos pós-socialistas:

‘De quem é a culpa? – é uma pergunta russa por excelência. (...) Na sociedade atual, pós-comunista, numa atmosfera de descrença e intolerância, a pergunta ‘de quem é a culpa?’ parece a mais natural. Respostas não faltam. Culpados são os bolcheviques e marxistas, os terroristas, os populistas, os ateístas, os judeus, os maçons, a nomenklatura, os comitês da KGB, a máfia... Raramente se ouve: culpados somos nós’.

E no entanto, argumenta Miedviediev, o comunismo não foi um mal qualquer. A revolta contra Deus, a promessa de domínio sobre a natureza e sobre a humanidade, a pretensão ao conhecimento sem limites, o poder sobre a vida e a morte, tudo isto remete às dimensões místicas da idéia bíblica de pecado.

‘O comunismo foi como o pecado original na história da nação. O reconhecimento deste fato permite-nos fazer uma verdadeira avaliação moral de nosso passado. O comunismo foi, antes de tudo, um crime de toda a nação, de cada um de nós diante de Deus’.

Idéia semelhante foi expressa por Soljenitzin:

‘Nos países mais totalitários, nos Estados mais desprovidos de direitos humanos, todos são responsáveis – pelo nosso governo, pelas campanhas dos nossos chefes militares, pelos serviços dos nossos soldados, pelos disparos dos guardas das nossas fronteiras, pelas canções da nossa juventude’.

O patriarca Alksij II, em homilia pronunciada depois do fracassado golpe de agosto de 1991, expressou o mesmo sentimento:

‘(...) Na verdade, por muitos anos, devemos todos rezar em conjunto, humildemente, a oração do publicano: Senhor, tende piedade de mim, pecador’...

O socialismo soviético terminou sem passar por um julgamento como o de Nuremberg. Será a Rússia capaz de assimilar a consciência da culpa coletiva como a experimentada pela Alemanha após o nazismo? Segundo Miedviediev, expressando uma idéia encontrada em vários textos, assimilar esta dimensão concreta do mal é o testemunho maior que se pode esperar dos cristãos na Rússia. Em suas palavras:

‘Amar a Rússia hoje significa orar pelos seus pecados’ ”.


(*) Samizdat - Sistema de contrabando de manuscritos de intelectuais soviéticos para o Ocidente. Às vezes, a própria KGB estava por trás desses contrabandos, recebendo elevadas somas de dinheiro por obras proibidas na União Soviética que eram publicadas no exterior. Nesses casos, os manuscritos eram confiscados das residências dos dissidentes e remetidos ao Ocidente à revelia do autor. Em 1967, 3 livros sobre expurgos e campos de concentração tinham sido contrabandeados para o Ocidente: “Tempestade de Areia”, de Galina Serbryakova, “A Casa Abandonada”, de Lydia Chikovskaya, e “Uma Jornada ao Furacão”, de Evgenia Ginzburg (in Usina de Letras, “Arquivos ‘i’ – uma história da intolerância”, de Félix Maier).

(**) Konsomol foi a organização comunista de juventude na antiga União Soviética, pela qual passavam praticamente todos os jovens do país (N. do A.).



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