Quando olhei, já sumias na distância indefinida Ainda te vi contornando o balão dentro do carro preto que virou sombra
Ficou-me a fulguração de teu vulto filtrado pelo fosco vidro
que distorce a geometria dos rostos ausentes
Quis reproduzir em mim imagens tuas mas fracassei pelo sombrio vulto dos fortes mognos verdes que se sobrepunham à pista
Logo-logo uma franzina e anônima pastora arrastou sua figura pela mesma estrada onde havias deixado as últimas cores de teu rosto no ponto em que fiquei
A imagem da pastora atravessou a tua
De olhos postos no movimento me impressionava o compassado e jovem ritmo dos passos da figurinha que parecia uma encarnação cabocla
das margens do Tocantins - o grande rio de praias esplêndidas
onde as tartarugas desovam em clandestinidade lunar
sob os olhares policiais de emissários da tribo tartarugal
Prestei toda a atenção ao desenho ondulado das curvas da pastorinha
e observei que eram mais perfeitas do que as da estrada
Fui tomado de imediato pelos efeitos de uma sensação-percepção-visão-intersecção de imagens como se estivesse caindo em mim
a chuva oblíqua do telhado da casa
de Fernando Pessoa
Ainda sob os efeitos da sombra dos mognos devo dizer-te que já não há carros na pista que deixaste
Mas persiste em grande estilo e é muito difícil de apagar a imagem da pastorinha que retenho no mastro da emoção
Teu narizinho ainda tem alguma vida na realidade de meu sonho mas só me apareces solitária e sempre sentada em teu carro preto
No meu album há algum fôlego mas todo ele encrustado no vidro fosco carro preto
Perturba-me a teoria do instante defendida por André Gide
e sinto dificuldades inesperadas em distinguir imagem de imagem
nas minhas janelas oculares que filmam o rosto do mundo
Talvez pela dificuldade real de conciliar a imagem da pastorinha
com a tua imagem
nas mesmas paredes vivas da recordação
Os tratados de doutrina existentes em minha estante
tentam explicar muitas coisas
mas a interpretação não coincide com as realidades
que encontrei hoje na pista por onde passou teu carro preto
e na pós-pista percorrida por meus olhos
Uma pluralidade de vias e de emoções me assombra
Nota que são comuns as imagens sobrepostas
tanto aqui quanto na China, no Tibet ou no Tocantins
Para mim, isso é um incrível ponto de partida para se debaterem os fundamentos
da teoria da emoção
Para terminar meu relato, queria ainda dizer-te que na pista das sombras de mogno,
um bando alegre de dançarinas do teatro Amazônia deixou novas imagens para serem recolhidas
por meus olhos e minha emoção
Imagens que tive de processar juntamente com as outras no laboratório da alma
Imagina agora quantas figuras e imagens estão pecorrendo a pista desde que partiste
São rostos, sorrisos, maquiagens, cabelos, passos, cores,
roupas, movimentos, flashs
No ar soam o eco dos passos, comuns ou dançarinos,
os passos alegres, atléticos e desafiadores
Já pensaste na dinâmica do que te estou narrando?Trata-se de uma riqueza de fulminantes imagens que brotam magicamente da alegria jovem da poesia
que as pessoas emprestam ao ato de viver
Imagina se cabe agora alguém se preocupar com uma teoria poética de rigor
O que é teoria poética senão a sobreposição de imagens que te estou narrando?
Eu prefiro dizer que meus olhos se regozijam
com a aparição deste jardim de almas jovens
onde há rosas de todo o tipo
cujo perfume me estonteia
Enquanto arrumo minhas impressões múltiplas, pelas escadas do prédio onde moro,
a minha vizinha desce atabalhoada com um cachorrinho poodle
preso pela corda
Olhando a moça, meus neurônios tumultuados pensaram não sei a troco de quê
que sua calcinha deve ser de cor bem diferente da calça laranja que veste agora
Eu sei que amanhã na hora do Cooper
subindo as encostas que definem a linha do horizonte
vou ponderar todas estas sensações e planos
que deixarei para se arrumarem sozinhos
no meu platô cerebral e sensitivo
Tenho algum receio de que me digas que passei a tarde sem te telefonar
e que que ao me despedir
queiras gravar o meu ciao bem altinho
Puxa!
Como exageramos nas relações e nas exigências, Princesa
E se a pastorinha exigir de mim que a cumprimente também?
E se as dançarinas abrirem o sorriso para minha emoção
e cada uma delas quiser pegar a minha mão para me arrastar
até à nascente do parque selvagem?
Está pintando por aí uma dinâmica de discurso para equilibrar os relacionamentos
na caminhada que eles percorrem entre beijos, carícias, distâncias, sombras,
ciúmes, zelâncias e neuroses, notaste?
Parece que desta vez tenho pela frente
um processamento difícil de imagens e sensações Peço-te que me dispenses agora
um nadinha de tempo... Depois
não me esquecerei de te fazer chegar aos lábios um pouquinho do coktail
que preparei nesta tarde, ok?
Os céus ficarão mais carregados com estes minutos de espera, eu sei.
Mas é hora de eu e meus leitores desocultarmos alguns segredos de vida
Vale a pena esperar
Isto é para não ficarmos malucos...
No momento
quero ficar sozinho
para curtir o que tenho cá dentro no coração
Para arrumar tantas imagens emoções e sensações Para outra vez
deixa teu carro preto correr sozinho na estrada, e tenta fazer tua corrida s