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Cronicas-->Viagem em geral árdua -- 19/02/2003 - 07:57 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A VIAGEM :: Erlon Campos (erlon@comversos.com.br) São Paulo/SP

Viagem em geral árdua, horas de sono privadas, alguma frustração, os problemas outros: humor avariado. Se dia de chuva, humor mais provocado a partir do número de banhos tomados, aquela água suspeita, híbrida, espirrada por motoristas apressados (a respeito dos quais sempre duvidamos se penitenciam-se ou gargalham ao notar pelo retrovisor que nos enxugamos e verificamos os prejuízos gerais).
Depois a espera. Não é incomum podermos lamentar a saída do ónibus ou trem do ponto ou da estação na exata hora em que ali chegamos. É a hora de encararmos a dor nas pernas de tanto aguardar a próxima edição de embarque. Evidentemente, nestes dias estamos mais atrasados que o habitual (afinal, já que é dia da reunião em que serão expostos, ainda na primeira hora, os rumos emergenciais adotados pela empresa, a pilha do despertador acaba na madrugada).
Chega o coletivo. Obviamente, lotado (dedos dos pés: atenção!). É apenas manhã, mas os odores humanos já se manifestam em combinados horrípilos (não se esqueçam: dia chuvoso, verão, janelas fechadas, estas combinações). Torçamos para que essa garota que afirma estar passando mal segure a onda digestiva.
Hoje, o gordinho, quase albino, sentado no banco dos idosos, todas as mesmas manhãs, ronca de maneira ainda mais impressionante, para a delícia dos demais. Alguns fones de ouvido baratos extravasam sua chiada proveniente, preconcebo, de obra de gosto duvidoso. No quesito ruído, apresentam-se também os mais extrovertidos em turma, com voz e gargalhada que lembram aquelas pequenas cornetas de criança. Mas, hoje, em especial, somos brindados com um som mais irritante que os costumeiros: um adolescente em aversiva relação com suas unhas investe ávida e violentamente contra elas (já quase inexistentes), como se num ataque anómalo de gafanhotos ocasionado por algum desiquilíbrio ambiental. Depois, em complemento, suga a ponta dos dedos com aquele som de quem chupa osso de galinha: repugnante!
Chuva, sinónimo de congestionamento, sinónimo de dia de reunião emergencial (na tarde anterior o diretor torce a boca ao dar aquela indireta em relação aos atrasados de sempre - ninguém vai acreditar nessa história de despertador). O motorista, por sua vez, não acordou atrasado, ainda dorme, pois nas raras oportunidades que tem para desenvolver velocidade parece apiedar-se de algum jabuti que sinaliza eloquente para que ande a seu passo.
A menina que passa mal tem os lábios meio brancos e neste momento engole saliva em quantidade razoavelmente acima do normal (ai, ai, ai!). O gordinho de vez em quando acorda com o estremecer do próprio ronco. Bem no pé de meu ouvido esquerdo, o garoto devora os dedos com estalinhos; e, quando troca de mão, eventualmente besunta de baba os cabelos de uma garota que esta sentada no banco em que segura.
Janelas fechadas, ar mórbido, ónibus no chacoalho: o cochilo diário dos passageiros a caminho do trabalho. Se o dia fosse do bom humor, o torneio de pesca seria entretenimento garantido. Por certo você o conhece, e nas suas variadas modalidades. Primeiramente temos o estilo "equilibrista" em que o protagonista cochila tenso, quase vigilante, e seus cabeceios são curtos e rápidos, sem ceder em demasia para os lados ou para frente. Temos também a pesca na modalidade "solidária", aquela em que o pescador aproxima-se vagarosamente de um ombro amigo, mesmo que desconhecido, e ali encontra seu apoio eventual, entre um meio-sorriso constrangido e outro. Temos ainda o "bate-bate", aquele que, por temor de incomodar o viajante ao lado, o pescador, já um especialista na modalidade, concentra-se de tal forma a pender apenas para o lado da janela, indo sistematicamente de encontro a ela e se acordando com as sucessivas pancadas que toma na cabeça. Já a forma "contorcionista" é aquela em que o sono é tanto que o pescador pende para onde encontrar espaço de tal maneira que parece praticar alongamentos e ali permanece por algum tempo imóvel para retornar à posição inicial e recomeçar então todo o processo.
Depois de alguns instantes de distração com o torneio de pesca, volto-me para a menina que, agora com os lábios totalmente brancos, começa a mais engolir e engolir, quase como um cão engasgado. Acho melhor passar a roleta, encarar a hora das cotoveladas. A conhecida lei da Física em que define-se dois corpos não poderem ocupar o mesmo espaço manifesta-se nesta iniciativa de forma esmagadora (desculpem a redundància!).
Empurrões, vãs tentativas de progresso e impropérios: entalo no mesmo lugar. Diante da possibilidade iminente da coisa azedar (refiro-me às bochechas da garota que estão inchadas, como as do Dizzy Gillespie ao trompete), sacrifico toda e qualquer tentativa de demonstrar educação e insisto para cima do adversário no ímpeto de conquistar alguns palmos que sejam. Avanço e na obtenção do êxito, só sobram para as barras de minhas calças os respingos do regurgitar da garota, ainda branca, a passar os lábios lambuzados na manga da blusa.
Diante do cobrador, bato a mão no bolso e a surpresa: cadê minha carteira? Procuro e repito em vão a busca nos vários bolsos, inclusos os que onde nunca a guardara. Penso em um escàndalo calculado, em exigir uma delegacia. E na reunião. Opto pelo escàndalo, inclusa a ameaça da delegacia. A coisa se estende, o motorista pára. Nesse interim, anunciam o aparecimento de uma carteira jogada debaixo de um banco próximo:
- É aquela, aquela preta ali?
- Deixa ver...
O motorista anda; resolve correr agora. Confiro tudo. Procuro o dinheiro. Salvo ao menos os documentos.
Agora sem dinheiro, tomo caminho inverso para descer pela porta de entrada, autorização concedida. Talvez pelo tom de ameaça utilizado momentos atrás, angario espécie de respeito, passagem facilitada, e despendo menor energia para galgar a volta. Cruzo com a garota, menos pálida, constrangida, mas aliviada; os demais enjoados. Avisto o gordinho, agora acordado pelo tumulto. De relance, o adolescente concentrado em interesse único, os olhos arregalados para a ponta dos dedos brilhantes de saliva.
Passo do ponto onde deveria descer. Volto a distància em passos ofegantes. Chove forte. Chego na empresa ensopado, com resto de cheiro azedo. E escuto:
- Atrasado de novo?
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