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Cronicas-->MEIOS DE PRAZER - UMA CRÓNICA NÃO ERÓTICA:: -- 18/02/2003 - 21:32 (BRUNO CALIL FONSECA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MEIOS DE PRAZER - UMA CRÓNICA NÃO ERÓTICA:: Luciana Dantas Teixeira (lux@comversos.com.br) Natal/RN

Deus criou Adão. Adão criou a roda. E viu Adão que a roda era boa. E fez o carrinho de rolimã. E viu Adão que o carrinho de rolimã era muito bom! Foi assim que desde o princípio descobriu-se que a roda, utilizada, entre outras funções, com uma tábua qualquer em cima, proporcionava um excelente meio de transporte, idéia que a Ferrari desenvolveu sem pagar royalties a Adão.
Mas aí é que está o detalhe. Entre a roda com uma tábua em cima e uma Ferrari, está o componente inefável do prazer. De modo que não se pode dizer que esta última seja exatamente um meio de transporte, embora se preste a levar-nos, bípedes implumes, de algum lugar a lugar nenhum - a duzentos quilómetros por hora. Apesar disso, uma Ferrari pode ficar muito bem paradinha em nossa garagem, não obstante sua aerodinàmica e rodas de liga leve; ali, deitada em berço esplêndido, ela cumpre seu papel primordial de meio de vaidade.
E eu, que estava lendo Casa Cláudia enquanto certo ex-namorado discorria sobre a elite automobilística, escolho me deter em objetos bem mais modestos para manter o tema. Veja os skates, patins, bicicletas, patinetes, bondinhos, teleféricos, carrosséis de aviõezinhos, por que não? Todos partem do mesmo princípio que governa os meios de transporte, e chegam mesmo a ser usados meramente como tal, por chineses, empregados de supermercados, guias turísticos, crianças enlouquecidas ou loucos fugidos do hospício. Mas servem mesmo ao deleite humano, e ninguém questiona a primazia desse serviço. O prazer é condição sine qua non para tornar os citados meios de transporte, um sucesso da sociedade capitalista ocidental. A exceção é a bicicleta, que deformada nos moldes dos instrumentos de tortura medievais e utilizada em academias de ginástica, tem servido também ao nosso padrão anoréxico de beleza.
Vez em quando um desses meios de prazer entra na moda, aí é um abuso. Alguns nunca saem da moda, como é o caso da bicicleta, sonho de consumo número um das crianças até a década de oitenta. Aliás, qualquer infeliz de classe média baixa que passou a infància nos anos oitenta, teve o desprazer de assistir às terríveis chamadas que intimavam as crianças a pendurarem papéis nos lugares mais inimagináveis da casa com o recado: "Eu quero a minha caloi!". Eu lembro bem que minha mãe, longe de atender ao pedido, passou semanas arrancando os papéis das panelas, gavetas e tampas de vaso sanitário, disparando contra mim todos os xingamentos que seu pudor materno permitia. Um terrorismo essas chamadas!
Já outros são esquecidos por um tempo... e retornam com força total. Veja o caso do jumento. Durante muito tempo, foi utilizado como meio de transporte pelo sertanejo em sua lida diária na roça, nos ambientes mais inóspitos, para os trabalhos mais pesados, e somente nas horas vagas, nas brincadeiras das crianças. Acontece que tem havido um surto de jumentos no Nordeste, e todo mundo sabe que tudo demais enjoa: "entonce", pegue vender jumento a um real. O resultado disso foi uma migração anti-natural do jumento para o litoral, que agora volta com força total no verão (e enfeitado à caráter, com as cores da moda), servindo ao deleite de turistas branquelos que pagam uma nota preta pra desfilar - e tirar fotos - em seu lombo. Melhor pro jumento que além de ser valorizado, ganhou roupagem moderna e vida fácil!
Comerciantes e publicitários, esses santos milagreiros hodiernos, conseguem peripécias inimagináveis para ressuscitar o frenesi por um meio de transporte e transformá-lo em ganha-pão. Com alguma sorte, em ganha-mansão-em-Miame. É o que espera o criador do segway, patinete com frescurites, que foi anunciado como a maior revolução depois da internet. Mas quem já acreditou em comercial de shampoo feminino ("seus cabelos vão ficar assim!", diz a loira sorridente após quinze horas de chapinha), espera cauteloso até o próximo Natal.
O fato é que, em se tratando de comerciantes, a ciência ainda não póde explicar como esse magos do capitalismo conseguem transformar seres pacatos e sensatos em turistas desvairados pendurados num cordão a quatro mil metros de altura, ou adolescentes esquisitos pulando de rampas de dois metros. Só sei que conseguem! E podem mais: conseguem fazer mesmo alguém que não gosta do tal meio de prazer, experimentar uma vezinha só, ah, vai lá, só pra tirar uma foto e mostrar pra tia Veneranda, só pra sentir que maneeeeiro, pai, mó da hora. E lá vai o tal sujeito, há dois minutos completamente sóbrio, deslizar montanha abaixo num esqui, pular de uma ponte amarrado pelo pé (meio de transporte utilizado antigamente apenas pelo Homem Aranha), levar um tombo ridículo na frente de dezenas de pessoas que se amontoam ao redor da pista de gelo.
Se serve de consolo, sei como se sentem estes pobres coitados que, por um desvario qualquer do destino (tornar-se influenciável no lugar errado, na hora errada), confiam na propaganda e acreditam que aquilo é "um brinquedo divertido e seguro", até ganhar os minutos mais aterrorizantes da sua vida. Sei, e é aqui que faço uma observação importante a respeito dos meios de transporte cuja maior finalidade passou a ser proporcionar prazer ao ser humano: o prazer é algo extremamente relativo, pessoal e discutível. Sou daquelas que se contenta em ir no parque comer algodão-doce. Sinto-me extremamente satisfeita com um carro um-ponto-zero, feliz de manter meus pés - eles mesmos, sem artifícios além dos calçados convencionais - em qualquer coisa bem próxima do chão, e supinamente civilizada de não ter que descer de elevador em queda livre.
Por esses dias, passeando na praia de Genipabu, aqui no Rio Grande do Norte, deparo-me com um dromedário. Bichinho antipático, mas bastante festejado pelos veranistas do local, que já andam cansando dos jumentos e de descer as dunas em tábuas de madeira, singelamente apelidadas de "Skybunda". Eu ainda reparava a dificuldade de um aventureiro para se equilibrar na cadeira nada confortável adaptada às costas do animal (o dromedário, explique-se), e acompanhava o movimento de vai-vem nauseante produzido pelo seu caminhar trópego, quando ouço o convite suspeitíssimo: "Vai arriscar? Só pra tirar uma foto!". E nesse momento concluí que nossos pés são desde sempre até a eternidade o meio de transporte por excelência: quando isentos de influência etílica, conduzem-nos seguramente pelos vales e caminhos desta vida, e ainda proporcionam o prazer celestial de fugir para bem longe de qualquer aberração que negue a nossa condição de bípedes implumes. Porque Adão viu que o carrinho de rolimã era muito bom, até que levou um tombo, quebrou a costela e Deus interveio lhe dando algo bem mais emocionante com o que se ocupar.
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