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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->TEO E ROSINHA (romance mediúnico) -- 03/03/2005 - 05:20 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER













TEO E ROSINHA
(ROMANCE MEDIÚNICO)
































ÍNDICE


Uma tarde proveitosa ........................
1. A primeira separação ........................
2. O sargento faz revelações ...................
3. Teotônio medita nas alturas .................
4. Rosinha ameaçada ............................
5. Momentos de aflição .........................
6. Confusão ....................................
7. Prossegue a viagem ..........................
8. Providências necessárias ....................
9. Contatos públicos e particulares ............
10. Teotônio monta o quebra-cabeça ..............
11. Durante a excursão ..........................
12. Em casa .....................................
13. Traçando diretrizes .........................
14. O homem põe e Deus dispõe ...................
15. A convocação ................................
16. Sobressaltos ................................
17. Carreira interrompida .......................
18. Preparativos para a reunião .................
19. Tempos difíceis mas felizes .................
20. Frutos do sucesso ...........................
21. Jandira .....................................
22. Pondo pingos em alguns iis ..................
23. O primeiro projeto ..........................
24. O segundo projeto ...........................
Epílogo .....................................



UMA TARDE PROVEITOSA

Mesmo que esta turma realize um ditado curto, só o fato de termos conseguido manter esta comunicação constitui estímulo suficiente para nos encorajar a prosseguir neste trabalho psicográfico.
Nosso querido Professor Epaminondas orientou-nos no sentido de se revezarem os alunos do grupo que ditou a obra Jovens Espíritas, de sorte que estamos comparecendo pela primeira vez para o exercício desta função.
Está claro que daremos seqüência à obra acima citada, levando as personagens do drama a novos desafios, porém, sem avançar o tempo cronológico, mantendo as estruturas psicológicas no ponto em que foram deixadas, para insuflação das mudanças naturais de quem vê crescerem os problemas e aumentarem as responsabilidades.

Para efeito da apresentação do principal, vamos efetuar brevíssimo resumo.

Teotônio casou-se com Rosinha, ambos menores de idade, ele aos dezessete anos, ela aos dezesseis. Mercê da habilidade do rapaz no futebol, profissionalizou-se em clube de primeira divisão, deixando o emprego de office-boy, adquirindo um apartamento próximo à sede da entidade esportiva.
Naquele ano, haviam assassinado o irmão da noiva, Renato, peripécia que gerou o interesse em se conhecer o autor do crime, o que levou o jovem a inquirir das pessoas informações a respeito. Foi ameaçado por misteriosos bandidos mascarados, tendo, mais tarde, pensado ter reconhecido a voz noturna como sendo do Cabo Farias, subalterno do Sargento Arnaldo, seu pai.
No dia seguinte à cerimônia, recebeu um telefonema, através do qual, agora sim, reconheceu o indivíduo daquela noite:
“Quero agradecer por você ter reconhecido a voz do encapuzado como sendo a do defunto meganha. Também tenho de deixar clara a razão de seu pai não ter encontrado o mesmo destino do outro, naquela tarde do tiroteio: é que não quisemos fazer sofrer quem nos dá tanta alegria.”
Como vinha fazendo nos últimos tempos, Teotônio solicitou ajuda dos amigos protetores da espiritualidade. Queria desfazer o dilema de contar ou não à esposa que o assassino do irmão ainda existia.
Tal meditação foi interrompida pelo irmão Wilsinho, que lhe comunicou, com muita alegria, sua convocação para a seleção brasileira Sub-15.

Para constar, eis as outras personagens importantes para o enredo: Vilma, mãe de Teotônio; Flávia, viúva, mãe de Rosinha; Fulgêncio, padre católico, amigo das duas famílias, responsável pelo encaminhamento delas para o Centro Espírita dirigido por Vieira, onde também trabalhava como voluntário o Professor Ernesto, mentor espiritual de Teotônio. Importante também são o Doutor Rosalvo, advogado, ex-patrão do rapaz e assistente nas questões legais, e Renildo, o prestativo empresário de esportes, agente do futebolista.

Vamos surpreender os nubentes três meses depois do enlace.



1. A PRIMEIRA SEPARAÇÃO

Teotônio e Rosinha passavam quase todas as horas do dia juntos. Às vezes, faltava ele às aulas para ir treinar ou jogar, ficando concentrado com a turma por dois ou três dias. Quando regressava, porém, punha-se ao corrente das matérias, através das anotações da esposa. Eram tertúlias desenvolvidas a partir dos temas, acrescidas pela leitura de alguns textos espíritas sugeridos pelo Professor Ernesto.
Haviam adentrado no último ano do curso médio, buscando preparação para a prova de habilitação para o ensino superior, ele direcionado para as Ciências Jurídicas, ela, para algum ramo de caráter científico ainda não completamente definido. Tendo recentemente completado dezessete anos, Rosinha, por alguns meses ainda, iria provocar o marido em relação ao fato de estarem com a mesma idade. No início do segundo semestre, já não poderia continuar dizendo o mesmo.
Não fossem os convites das esposas dos outros jogadores, para almoços, para jantares ou festas, não sairiam de casa. Um belo dia, precisaram retribuir a gentileza das recepções e ofereceram um jantar em sala reservada de bom restaurante. Compareceu a equipe toda, mais as esposas ou namoradas, além do técnico e três membros da diretoria do clube. Foi o meio que encontraram de não criarem laços de amizade muito íntimos, o que ocorreria certamente se recebessem os casais separadamente no apartamento.
Mas as nuvens negras da separação cedo surgiram ameaçadoras na linha do horizonte: os jornais, antes mesmo de a diretoria anunciar a participação em evento internacional, já anunciaram a viagem do time para torneio na Espanha. Ficariam pela Europa para várias partidas amistosas, havendo programação para mais de mês.
Vamos encontrá-los pensando nos preparativos.

— Teo, querido, você arruma as malas ou prefere que eu escolha suas roupas, conforme a necessidade?
— Rosi, o pessoal acha que o clube irá fornecer roupas sociais uniformizadas. Então, vou levar só roupa branca e algum agasalho para usar por baixo da camisa, porque está fazendo muito frio por lá.
— Quanta bagagem você vai poder levar?
— No máximo duas malas. Poderia levar quatro, mas é preferível adquirir outras duas por lá, para encher de compras, se os preços não estiverem piores do que aqui.
Rosinha perguntava por perguntar. Sabia que Teotônio acabaria, como sempre, deixando tudo perfeitamente organizado.
— E quanto ao dinheiro?
— Prometeram que nos darão alguns dólares a mais, se vencermos o torneio e se forem acertados outros jogos contra clubes que conseguem encher os estádios. De qualquer modo, vou levar um pouco de pesetas e os dois cartões internacionais.

Uma semana depois.

— Quer dizer que amanhã cedo você deverá estar no aeroporto?
— Vamos reunir-nos lá. Os jogadores recusaram a idéia de ir no ônibus do clube. Eles disseram que precisariam acordar umas duas horas mais cedo. Sendo assim, os roupeiros vão poder providenciar o material com mais tempo. Não se esqueça de que vão precisar despachar toda a tralha bem antes e a liberação dela é demorada, por problemas de segurança, por causa do terrorismo internacional.
A jovem hesitava quanto a revelar algumas íntimas preocupações, até que se abriu:
— Teo, você me promete que vai ficar nos hotéis e não vai freqüentar as boates com os outros?
— Que idéia maluca é essa?
— Foram as esposas de alguns que me disseram que eles aproveitam a liberdade para se esbaldarem.
— Eu vou ver como é que a coisa anda. Se tiver tempo livre, vou conhecer os pontos turísticos de dia. O que posso prometer-lhe é não desgrudar do técnico, que é pessoa séria e sempre recomenda que o pessoal tenha bastante juízo, com relação às mulheres, bebidas, fumo e outras coisinhas mais.
— Não se esqueça de ligar pra mim todo dia.
— Se não conseguir, mando recado por e-mail. Não deixe de ligar o computador.
— Espero que você beije a aliança muitas vezes.
— Não vai adiantar muito, porque a transmissão não vem para o Brasil.
— E os vídeos que você vai trazer, como da outra vez, quando nós éramos solteiros?
— Você sempre tem razão.

O embarque, apesar de bem cedo, foi tumultuado. O salão do aeroporto estava tomado por torcedores, especialmente por garotas ávidas por conseguir uma lembrança do craque mais novo. Portavam faixas com dizeres apaixonados e esticavam os braços com todo tipo de lugar para o autógrafo desejado.
Teotônio foi levado de roldão, mal defendido por alguns policiais e seguranças do aeroporto e da companhia aérea. Não fora toda a experiência do sargento, Rosinha e Vilma teriam sido arrastadas no meio da multidão. Até os dirigentes e pessoal de apoio da equipe entraram a fazer cordão de isolamento.
Prevenidos quanto ao possível tumulto, os jogadores deixaram as malas e objetos pessoais com o roupeiro, que conseguiu licença para entrar por outro portão de acesso à área de embarque, demorando para passar todo o material pela vistoria eletrônica.
Assim mesmo, Teotônio daria pela falta do relógio e das abotoaduras, furtados quando se sentiu puxado pela roupa, tendo sido arrebatado pelas jovens por alguns segundos.
Alguns fotógrafos e cinegrafistas conseguiram as imagens, saindo muito satisfeitos do meio do povo. Um dos jornalistas juraria ao editor que tinha visto um dos diretores do clube estimular a torcida, no sentido de propiciar instantâneos do tumulto:
— Eu digo que estão usando a mídia para promoção da excursão. Ninguém me tira isso da cabeça. É pena que não tenhamos nenhum flagrante. Aposto que ele até deve ter pago a condução para muita menina, induzindo que suspirassem, se descabelassem, chorassem e desmaiassem, para o espetáculo perante as câmaras.
— Se você não tiver nenhuma prova, não denuncie ao público. Afinal de contas, nós também nos aproveitamos desses acontecimentos para faturar. Aliás, parece que está abrindo-se uma vaga para o necrológio e outra para os horóscopos...

Por esse tempo, Teotônio já viajava há algum tempo, enquanto Arnaldo levava de volta a mulher e a nora.



2. O SARGENTO FAZ REVELAÇÕES

Dona Vilma se interessou pela situação da nora, depois que ela se acalmou do nervosismo do tumulto:
— Sua mãe vai ficar com você?
— Minha prima se ofereceu. Ela disse que é por causa da idade. Depois, estamos com saudades, tantos anos vivemos juntas.
— Ela não é quatro ou cinco anos mais velha?
— Entre mim e Laura existe uma diferença de quase seis anos. Ela está com vinte e dois.
— Tem namorado fixo? Pretende casar?
Rosinha não teve oportunidade de responder. O sogro interferiu na conversa:
— Ela não trabalha mais?
— Está com férias vencidas.
— Assim mesmo, a sua mãe seria mais útil, já que vocês não têm empregada. Dona Flávia poderia preparar o almoço, fazer compras, o que eu acho que a Laura não vai fazer.
— Isso é verdade. Ela sempre fugiu da cozinha. Também pudera, com a mãe e a tia fazendo tudo em casa. Inclusive, as compras quem faz é meu tio.
— Então, a sua prima vai dar mais trabalho que outra coisa.
Dona Vilma interveio:
— Você hoje está bancando o ranzinza. Deixe as moças à vontade. Talvez elas tenham assuntos para colocar em dia. Com a faxineira indo duas vezes por semana, o apartamento não vai criar poeira.
O resultado da repreensão foram alguns momentos de silêncio. Estando perto do edifício do filho, Arnaldo entrou no estacionamento de um supermercado, encontrou uma sombra debaixo de uma árvore e desligou o motor.
— Eu quero conversar um pouco a respeito de sua prima. Você está sabendo qual foi o trato que ela fez com seu falecido irmão?
— Não sei de trato nenhum.
— Pois era ela quem lavava o dinheiro que ele conseguia vendendo drogas. Se ela não lhe disse nada, eu acho que você precisa pôr a pulga atrás da orelha.
Dona Vilma interpelou o marido:
— Você sabe o que está fazendo? Está jogando uma prima contra a outra. A amizade entre elas desse jeito vai por água abaixo. Como é que você está sabendo de todas essas coisas?
— É simples. Nós implantamos um informante no colégio do Wilsinho. Logo ficamos sabendo que era o Renato quem estava traficando na escola, o melhor amigo dele. Eu fiquei preocupado. Fui conversar com ele. Queria saber se estava...
Rosinha não se agüentou:
— Meu irmão não era um viciado.
Arnaldo prosseguiu calmamente, como quem está a par de tudo:
— Agora eu sei. Naquela ocasião, eu não sabia. Então ele me disse que todo o dinheiro que conseguia, passava para a Laura, que fingia ter recebido de gorjeta no emprego de garçonete, dando para o pai ajudar nas despesas da casa. Isso durou muito pouco, porque logo se deu a chacina. Eu lamento até hoje não ter sido mais enérgico com o rapazelho. Deixei para agir com maior segurança, mas não podia esperar que houvesse um acerto de contas entre as quadrilhas. O que consegui evitar foi que o meu pessoal achasse papelotes de cocaína em sua casa. Lembra-se de que, naquela noite, você foi nos avisar e me passou as chaves da casa? Pois eu fui até lá, revirei os móveis e achei, no meio das roupas de sua prima, algum dinheiro e alguma droga.
— Como é que o senhor ficou sabendo que as roupas não eram minhas?
— O seu irmão não me contou o trato com a prima?!... Só podia concluir que as roupas eram dela.
— Ela vai ter de me dizer por que não impediu que o Renato caísse nessa.
— Eu não lhe contei para você ter um atrito com ela. Contei para que você tomasse cuidado, que a moça pode estar escondendo outras coisas. Foi só um conselho de sogro, porque estou também preocupado com o Teo.
Dona Vilma interveio:
— Você bem poderia ter mantido isso com você. Agora Rosinha não vai ter como deixar de falar com a prima. Depois, ela bem poderia ter ficado sem ação ou achado que o dinheiro estava sendo bem aplicado.
— Não acredito na inocência da moça. Penso que até deva ter incentivado o comércio ilegal.
— Você não tem prova disso.
— O fato de ela estar escondendo a droga e o dinheiro me parece forte evidência de que estava protegendo o primo. Se é que ela mesma não estivesse consumindo, por conta de estar recebendo a droga a preço de custo...
— Isso já é maldade pura. Eu não aceito que meu marido, que sempre agiu com muito discernimento e inteligência, esteja colocando tanta caraminhola na cabeça da mocinha, que, mais do que nora, é uma verdadeira filha para nós.
— Então, vou sugerir que ela não fale nada e espere para ver. Afinal de contas, é minha palavra contra a dela, porque eu também escondi tudo da polícia, cometendo um crime ainda maior, por ser agente da lei.
Rosinha refletiu que jamais ouvira o sogro falar mais do que três ou quatro palavras seguidas. Resolveu concordar com ele, muito embora mantivesse a intenção de tirar o assunto a limpo com Laura.
— O senhor tem toda razão. Eu agradeço que tenha falado sobre isso, porque, assim, me pôs prevenida quanto aos fingimentos e mentiras. Por outro lado, de que servirá revirar o passado, já que ela não deve estar traficando mais?!... Quanto a consumir, não notei nunca qualquer desvio de conduta por influência da droga.
Fez menção de se retirar do carro, mas a sogra ainda tinha algo a acrescentar:
— Peça à sua mãe para vir ficar com vocês. Diga que vocês poderão ficar mais à vontade para ir às compras, para passear, para trocar segredinhos de mulher.
Voltou-se de repente para o marido:
— Arnaldo, você tem conhecimento de que Dona Flávia saiba alguma coisa a respeito da sobrinha?
— Deduzo que, se ela soubesse do fato, não teria ficado calada. Rosinha, sua mãe brigou com sua prima alguma vez?
— Não brigaram nem se beijaram. Elas mal se cumprimentam. Mas sempre foi assim, desde que eles vieram morar conosco, depois que meu pai morreu.
Dona Vilma voltou à carga:
— É bom que sua mãe esteja presente, caso você queira tirar satisfação. Ela também terá direito de saber a verdade a respeito do filho. Afinal de contas, tudo indica que seu irmão agiu para dar conforto à família. Você mesma não está mais confortada em saber que ele estava tentando levar para casa o dinheiro que faltou depois da morte do pai?
Disse e abraçou desajeitadamente a nora, sentada no banco de trás. Ambas seguraram as lágrimas.
Dez minutos depois, Rosinha encontrou a prima entretida com as panelas, preparando habilidosamente um rico café da manhã.



3. TEOTÔNIO MEDITA NAS ALTURAS

Para não provocar exagerada ciumeira nos companheiros, Teotônio, assim que pôde, foi arrumar a roupa no reservado do aeroporto.
Além de ter sido furtado, também viu os bolsos do paletó rasgados e a camisa suja de sangue. Retirou a camisa para avaliar o ferimento, somente então notando que não se tratava de sangue mas de batom e outros cosméticos.
No rosto também havia marcas de batom, de sorte que precisou de uma boa esfregada com sabonete para fazer desaparecer as manchas. Como estava com uma blusa por baixo, pôde aproximar-se do roupeiro, solicitando que lhe desse outra camisa e outro paletó. A troca foi possível porque na bagagem de mão, por prevenção, sempre havia várias camisas e dois ou três paletós.
Colocadas as novas peças, pôde Teotônio misturar-se com os outros, no saguão, do outro lado do portão de embarque.
Se estivesse esperando que os colegas lembrassem o pandemônio, teria ficado decepcionado, uma vez que todos demonstravam carinhosa recepção ao ovacionado jovem, calando a manifestação violenta das fãs.
Teotônio sentiu-se muito bem, como se estivesse vivendo um dos momentos de maior felicidade como atleta profissional: o bem-querer dos parceiros.
Como de hábito, tratou a todos com deferência e respeito, fazendo bem o papel de mais novo. Logo, porém, foram chamados a ingressar na aeronave, onde escolheu um lugar perto da cauda do avião, para fugir dos mais truculentos, justamente os que promoviam batucadas, munidos que estavam de violões, pandeiros e um ou outro instrumento de percussão improvisado.
Alçado vôo, livrou-se Teotônio do cinto de segurança, apanhou a valise no bagageiro, retirou seu laptop e pôs-se a percorrer os arquivos de estudo, munido que estava com programas fornecidos pela escola. No entanto, fosse pela hora matutina, fosse pela tropelia do aeroporto, não conseguiu concentrar-se em matéria alguma.
“Preciso aproveitar o melhor possível todo este tempo da viagem. Vamos ver se O Livro dos Espíritos, de Kardec, tem algo a oferecer-me.”
Realmente, havia recebido do Professor Ernesto uma cópia da obra em CD-ROM.
“Tenho de me lembrar de comprar algo bem culto para oferecer ao mestre. Talvez uma enciclopédia completa em língua inglesa ou francesa, versado que ele é em diversos idiomas. Isto me faz lembrar o problema da vontade de Deus, que deixamos um dia sem solução. Vejamos se Kardec tratou do tema nesta obra.”
Imediatamente redigiu a expressão e acionou o botão para localizar dentro do livro. Havia muitas passagens em que a expressão se utilizava. Leu-as todas e selecionou a que lhe pareceu que melhor correspondia ao seu desejo de compreensão. Tratava-se da pergunta complementar à questão de número duzentos e sessenta e dois:

— Quando o Espírito desfruta seu livre-arbítrio, depende sempre a escolha da existência corpórea exclusivamente de sua vontade, ou bem essa existência lhe pode ser imposta pela vontade de Deus como expiação?
“Deus sabe esperar: ele não apressa a expiação; não obstante, ele pode impor uma existência a um Espírito, quando este, por sua inferioridade ou sua má vontade, não está apto a compreender o que lhe poderia ser mais salutar, e quando vê que essa existência pode servir para sua purificação e para seu adiantamento, ao mesmo tempo que ele aí encontra uma expiação.”

Teotônio sentiu-se muito desconfortável com a explicação. Achava que Deus não se interessava especificamente pelas criaturas em si, senão que havia dado ao Universo as suas leis, de sorte que tudo resultaria do cumprimento delas. Raciocinou:
“Se Deus impõe qualquer tipo de existência a um espírito, estará interferindo em sua destinação imediata, porque a evolução exige que cada criatura vá paulatinamente aproximando-se do Pai. Quantos são os que não têm boa vontade ou não possuem capacidade para descortinar o que lhes mais convém? Se for dessa forma, poucos haverão de seguir o curso natural de sua criação. Tenho de pensar mais sobre o tema. Ainda bem que existem os espíritos superiores interessados em auxiliar os inferiores, cumprindo assim os desígnios de Deus. Eis que, finalmente, me encontro frente a frente com o caríssimo Professor Ernesto.”
Teotônio ficou satisfeito em fazer a ligação entre o tema e o amigo e orientador, o professor de filosofia na escola e de espiritismo no centro.
Recordou-se das antigas manhãs de sábado na faculdade, quando ouvia os mestres acadêmicos. Principalmente, saboreou as lembranças das conversas que mantinha com Ernesto, após as palestras, ainda no pátio, antes de voltarem para suas casas.
Sorriu interiormente, estendeu o braço e apanhou o jornal preso na bolsa da poltrona da frente. Buscou as notícias do esporte e logo deu com uma foto sua, ilustrando a reportagem a respeito da viagem.
“Esta evidência não me faz bem. Só me perturbam os jornalistas com sua insistência para exclusivas.”
Rememorou as entrevistas dos últimos meses, principalmente as participações nos programas televisionados. Era o que havia de melhor, porque suas palavras não se deturpavam, como nas matérias escritas. Passou-lhe pela memória a primeira vez em que deu uma coletiva à imprensa, para desfazer os mal-entendidos referentes ao tiroteio que envolveu o pai.
“O sargento, tendo sido baleado, tirou a sorte grande: três meses de licença remunerada e, depois, serviço burocrático, sem nenhum risco de vida. Até ganhou uns quilos, mas seu humor melhorou muito. O que ele gosta de fazer, mesmo, é de administrar o meu dinheiro. Mas está por pouco; com dezoito, vou dispor do meu salário de modo a saber exatamente como estão todas as aplicações.”
Esse tema constantemente lhe assediava a mente, porém, procurava escapar dele, porque, invariavelmente, surgia a figura do Cabo Farias e o som daquela voz misteriosa ao telefone. Desta feita não foi diferente:
“Quero agradecer por você ter reconhecido a voz do encapuzado como sendo a do defunto meganha. Também tenho de deixar clara a razão de seu pai não ter encontrado o mesmo destino do outro, naquela tarde do tiroteio: é que não quisemos fazer sofrer quem nos dá tanta alegria.”
Teotônio estranhava que todos os termos se mantinham integralmente. Para desfazer a má impressão, substituía as frases:
“Cara, por você ter atribuído ao falecido cabo a voz que ouviu na noite em que o ameacei por estar investigando a morte do Renato, estou muito grato. Saiba que seu pai não morreu porque não quis acertá-lo. As festas das vitórias do nosso time fizeram com que a gente achasse que você não merecia sofrer.”
Mudava e, de novo, verificava que o padrão de linguagem do marginal continha uma lógica de formulação de alguém escolado, se não culto e inteligente.
“Dá a impressão de que o bandido deve ser o líder de um bando bem grande, como de uma torcida organizada. Vou prestar atenção nas vozes que ouço na geral.”
Nisso foi despertado para a realidade pela comissária de bordo:
— Temos também jornais da Espanha. Quer que lhe traga?
— Por favor. Obrigado.
O craque achava que precisava conhecer outros idiomas, para não se apurar nas lojas e restaurantes.
Foi quando o passageiro que estava sentado junto ao corredor se levantou e avisou em alta voz:
— Estamos seqüestrando este avião. Fiquem nos seus lugares e ninguém vai sair machucado.



4. ROSINHA AMEAÇADA

Assim que entrou na cozinha, Rosinha percebeu que havia mais alguém no apartamento, porque a mesa estava arrumada para três.
— Laura, minha mãe está aqui?
Disse e se encaminhou para os quartos, não tendo dado oportunidade a que a prima respondesse.
No quarto do casal, deu com um estranho enrolado numa toalha. Voltou correndo, procurando sair pela porta da sala, mas foi interceptada por Laura, que mantinha na mão a faca com que cortava os frios do dejejum.
— Calma, querida! Eu trouxe o André para conhecer o apartamento.
— André? Que André?
— Meu namorado.
— Não era João?
— João já ficou p’ra trás. Agora é o André.
— Por que você não me avisou?
— Você saiu correndo.
— E minha mãe?
— Foi fazer umas compras. Já, já ela estará de volta.
— E que intimidade é essa de esse homem ficar usando o meu banheiro e a minha toalha?
— Ele precisava de um banho. Como eu não trouxe nada comigo, pensei que você não ia se importar...
— Vou esperar minha mãe lá embaixo.
— Daqui a pouco. Primeiro vou te apresentar o meu amigo.
Rosinha fez menção de sair, porém, a prima se pôs ostensivamente diante dela, impedindo-a de passar.
— Não tenha pressa, querida. O André não vai te morder.
Diante da atitude agressiva da moça, Rosinha resolveu não provocá-la e se dirigiu à cozinha, no que foi seguida de perto pela prima. Quando se precipitou na direção da área de serviço, onde havia uma porta para o exterior, sentiu-se agarrada com força.
— Que é isso, Laura? — gritou.
— Se você ficar boazinha, a gente explica tudo.
— E se eu não ficar?
— Não queira saber o que pode te acontecer.
Nisso o homem assomou à porta. Estava só de bermuda estampada, o torso nu, tatuado e colorido, e os cabelos cacheados, molhados e brilhantes.
Com uma voz grave e forte, manifestou-se:
— Laurinha, diga pra tua prima que vamos passar uma semana com ela, quer queira ou não.
O tom de voz era impositivo, como se o sujeito estivesse no comando.
— Ela vai colaborar, não vai?
Rosinha achou melhor dizer que sim, através de um gesto com a cabeça.
— Vamos todos tomar café.
Não houve como não se assentar diante de uma das xícaras. Entretanto, Laura a fez levantar-se, apontando para a pia:
— Você vai me ajudar a colocar as coisas na mesa.
Em três tempos, estava o café servido com fartura de itens, como se estivessem em hotel de luxo.
Comeram em silêncio, deliciando-se o casal com os salgadinhos e doces. Rosinha, alegando que já havia tomado café antes de sair, apenas molhou a boca no leite quente de que se serviu.
Ao final, André ordenou:
— Agora, Rosinha vai desfazer a mesa e lavar a louça. Eu vou ver televisão. Laurinha, se ela não quiser cooperar, é só me chamar.
Fora da vista do namorado, Laura fez questão de imprimir rapidez ao serviço, deixando tudo arrumado em menos de dez minutos. Rosinha apenas lavou os talheres e louças, guardando-os assim que foram enxutos pela prima.
Quando terminaram, sussurrando, Rosinha rogou à outra:
— Prenda-me no quarto menor. Eu não quero ficar junto ao seu homem.
— Era o que eu mesma ia propor a ele. Vá na frente.
Rosinha ia virar para o quarto mas viu-se forçada a ir em direção da sala.
— É bom que ele aprove a idéia.
Ao entrarem no cômodo em que estava André, viram-no refestelado na poltrona, com um copo de bebida na mão:
— Excelente este uísque que seu marido guardava no fundo do armário. Acho que ele não vai achar ruim que eu tenha aberto a garrafa.
Laura mal disfarçou um gesto de desaprovação:
— Se você começar a beber, vai ser difícil de controlar...
— Não queira mandar em mim, mulher. Tranque a sua prima no banheiro. Não deixe que ela leve a bolsa. Pode ter um celular escondido.
— Eu ia colocar no quarto de hóspedes.
— Lá não tem banheiro. Aí ela vai começar a chamar. Vai direto para o banheiro. A gente usa o da suíte.
Não havia como retrucar. Foi assim que Rosinha se viu presa, tendo recebido um cobertor e um travesseiro.
Ia em meio a segunda dose de bebida, quando a atenção de André foi atiçada para a tela: noticiava-se o desvio de rota do avião que levava o time em excursão.
— Laurinha, venha já pra cá. Corra.
A moça, entretanto não ouviu o namorado: estava debaixo do chuveiro da suíte.
— Você vem ou não vem?
Nenhuma resposta.
André hesitou entre deixar de ouvir a notícia até o fim e ir em busca de Laura. Resolveu que era melhor ir atrás dela.
— Você não me ouviu chamar?
— Não. Que aconteceu?
— Sujou a nossa barra. A televisão está dizendo que o avião do Teo está sendo seqüestrado.
— Sério?
— Vamos passar para outro canal.
Laura se enrolou numa toalha e seguiu atrás do rapaz. Não precisaram trocar de estação, porque o noticiário tinha sido priorizado. Naquele momento, inclusive, estavam reproduzindo a reportagem realizada no aeroporto, mostrando o alvoroço causado pela chegada do craque.
— Que vamos fazer?
— Não podemos mais ficar aqui. Vamos cair fora. Pegue umas roupas, ponha em algum saco plástico, recolha todo o dinheiro que achar e as jóias de sua prima. Daqui a pouco, vai começar a chegar gente.
— Não é melhor eu ficar para dar um jeito no problema que causei?
— Você é quem sabe. Eu vou pôr uma roupa lá do armário e me mando.
Enquanto André se vestia no dormitório do casal, inclusive colocando três camisas de uma vez, folgadas que eram para ele, Laura, já vestida com a própria roupa, procurava disfarçar o cabelo úmido com um lenço de seda. Feita a trouxa, correram para o elevador, não sem antes a moça chamar a prima, passando-lhe a chave do banheiro por baixo da porta:
— Espere cinco minutos e depois saia. Estamos indo embora.
Estavam abrindo a porta do elevador, quando ouviram soar o telefone do apartamento.



5. MOMENTOS DE AFLIÇÃO

Teotônio estava a examinar a figura do seqüestrador, quando este se voltou para ele, ordenando:
— Abaixe a cabeça e fique com ela entre as pernas. Se olhar de novo pra mim, vai levar chumbo.
Os passageiros não emitiam um sussurro sequer, quando receberam novas instruções:
— Os que estão na frente vão pra trás, um a um.
Foi quando se percebeu que havia três sujeitos no corredor, todos mantendo atitudes ameaçadoras. Com o bulício na parte da frente, Teotônio pôde verificar que nenhum deles ostentava qualquer arma.
Estavam ainda deslocando-se os passageiros, quando a aeronave sensivelmente se dirigiu para a esquerda, na direção do continente, já que sobrevoava o oceano.
Os primeiros que saíram das poltronas da frente vieram sentar-se ao lado de Teotônio, de sorte que o jovem se viu espremido contra a lateral, tendo plena visão do exterior.
Em breve, desaparecia a orla marítima, ficando para trás também a cadeia de montanhas. Não adiantou a Teotônio fazer os cálculos para descobrir a região em que se encontravam.
O único dos bandidos encapuzados passou recolhendo os aparelhos telefônicos celulares, prometendo executar quem fosse descoberto depois com um. Lá se foram os dois telefones de Teotônio.
Nessa situação, estando sendo atendidos, os seqüestradores não mais fizeram ameaças, indo os três para junto da cabina de comando, cuja porta permanecera sempre cerrada.
Depois de exatos quarenta e cinco minutos, ouviu-se um aviso do comandante:
— Senhores passageiros, queiram firmar-se nas poltronas. Estamos pousando em pista clandestina, sujeita a solavancos.
De fato, logo as pessoas se viram arremessadas umas contra as outras, estabelecendo-se uma gritaria incontrolável. Mas o pesadelo durou pouco: logo se percebeu que o avião estava estacionado.
Um dos bandidos alertou:
— Não estamos interessados em ferir ninguém. Se existir alguém passando mal, temos dois médicos a bordo. É só levantar o braço.
Três senhoras agitaram as mãos. Ouviu-se uma voz masculina bradar:
— Pelo amor de Deus, venha alguém socorrer minha esposa. Ela bateu a cabeça e está desmaiada.
Os que estavam próximos abriram passagem para o médico, que constatou que o ferimento não tinha maior gravidade. Caso mais sério era o de um homem cujos sintomas apontavam para enfarte. Para este foi preciso providenciar massagem cardíaca e respiração boca-a-boca.
Enquanto se dava assistência aos feridos, os seqüestradores saíram pela escada de emergência inflada, podendo Teotônio constatar que havia mais de vinte armados ao redor da aeronave. Não demorou e três caminhões grandes, de carroçaria fechada, encostaram junto à porta do depósito de carga.
Toda a manobra não demorou mais do que meia hora. Assim, a tripulação e os passageiros se viram deixados no meio da mata, aguardando por socorro.
O piloto tranqüilizou os ânimos:
— Graças a Deus, tudo não passou de um grande susto. Eles estavam atrás de alguns contêineres cuja carga não nos foi informada. A bagagem ficou intacta. Vamos esperar a polícia tocantinense, para podermos providenciar transporte para Palmas. Os dirigentes e jogadores presentes podem ajudar os demais passageiros a sair da aeronave. A tripulação está preparada para a emergência. Muito obrigado.
Teotônio pensou que iria ouvir formal pedido de desculpas, mas teve de limitar-se a aguardar pacientemente a vez de descer pelo escorregador.
O médico da delegação esportiva, após ressuscitar o paciente enfartado e ministrado os medicamentos que possuía à mão, reuniu os jogadores no vasto gramado, tendo o cuidado de examinar um a um. Afora um dos dirigentes que recebeu uma dose de calmante, os demais componentes do grupo se achavam relativamente bem, tanto que, por sugestão do técnico Santoro, reuniram-se em grande roda e, abraçados, agradeceram a Deus por se encontrarem sãos e salvos.
Teotônio repetiu a oração de bom grado, porém, no íntimo agradecia aos espíritos protetores a paz que lhe insuflaram no coração. Sua maior preocupação era com Rosinha, com quem não conseguiu conversar por seu celular estar fora de área.
Pelo céu luminoso, passaram, em alta velocidade, dois caças da Aeronáutica.



6. CONFUSÃO

Assim que conseguiu abrir a porta do banheiro, Rosinha correu para o interfone:
— Quem estiver aí embaixo, não deixe minha prima e o companheiro dela saírem. Eles estão levando coisas minhas embora.
Imediatamente, o rapaz que recebeu o chamado procurou numa das telas do circuito interno de televisão a que trazia as imagens dos dois. Estavam descendo pelo elevador social.
— Dona Rosinha, pode desligar, que eu ligo quando os seguranças pegarem os dois.
Enquanto Rosinha corria para fechar a porta e atender ao telefone, o porteiro avisava os encarregados da vigilância interna para deterem os suspeitos. Não deu tempo. Calmamente, carregando duas sacolas de supermercado cada, passaram pelo saguão e transpuseram a porta da frente, justamente no momento em que era aberta de dentro para um casal do prédio.
— Pronto.
— Rosinha, você está bem?
— Não estou nada bem, mãe. Venha pra cá já.
— Estou de saída.
— Como é que você ficou sabendo?
— Acabei de ver na televisão.
— Então, venha correndo.
Lá consigo, Rosinha admirava-se do fato de a prisão do malandro e da prima estar sendo transmitida ao vivo. Do alto, esticando o pescoço, conseguiu ver duas pessoas deitadas no chão diante do prédio.
“Será que atiraram neles? Pelo amor de Deus, eu não queria nada disso.”
Soou o interfone.
— Dona Rosinha, a polícia prendeu os dois. Eu acho que eles vão querer falar com a senhora.
— Atiraram neles?
— Não. Eles não reagiram.
— Mas estavam caídos no chão.
— Só estavam deitados, por ordem das autoridades. Espere aí que vou ter de abrir o portão pra eles.
Rosinha correu para a janela, tendo tempo de ver que os detidos estavam sendo colocados numa viatura, cercados de fotógrafos e cinegrafistas. O povo se mantinha contido por um cordão de isolamento.
De novo soou o interfone.
— Posso mandar subir dois policiais? Eles dizem que são amigos do pai do Teo.
— Por favor.
Nesse meio tempo, Rosinha foi ver o que acontecia na televisão. De fato, o alvoroço da rua estava no ar, enquanto a repórter descrevia:
— Foram presos dois suspeitos de estarem assaltando o prédio em que mora o Teo. Vamos ver se conseguimos filmá-los.
A câmara se aproximou dos vidros escuros do camburão, sem conseguir captar as imagens dos detidos.
Nesse momento, Rosinha precisou atender à porta, tendo reconhecido os dois soldados, que portavam os pacotes.
— A senhora reconhece estes objetos?
— São coisas minhas. Esta calça e esta blusa são de minha prima.
— Aquela moça é sua prima?
— Laura. É, sim.
— A senhora conhece o rapaz?
— Quando cheguei, ele estava aqui com ela.
— Sabe que se trata de um conhecido traficante?
— Não estou sabendo de nada. Sei que eles me disseram que iam ficar uma semana mas, de repente, resolveram ir embora.
— Estas jóias são suas?
— São. Pelo amor de Deus, eles estavam levando tudo.
— Quer dizer que eles estavam aqui sem permissão sua?
— Estavam me mantendo presa.
— Devido às circunstâncias, vamos ter de pedir ao delegado para decidir quando a senhora irá prestar queixa. De qualquer modo, está lavrado o flagrante. A senhora está sozinha em casa?
— Minha mãe vem vindo pra cá.
— Não se preocupe pelo Teo. Tudo vai dar certo. Quer que algum soldado fique até que chegue o sargento?
— Eu não gostaria que os jornalistas subissem.
— Lá embaixo, está tudo sob controle. Nós estávamos vigiando o prédio, sabendo que o André podia estar aqui. Ainda bem que nós o pegamos do lado de fora, onde ele não pôde usar a arma.
Ao mesmo tempo, o soldado exibia uma pistola prateada reluzente.
Rosinha estremeceu. Atinou que Teotônio iria ficar sabendo pelo noticiário que ela havia sido ameaçada. Era preciso avisá-lo, assim que chegasse à Espanha. Mas isso só iria acontecer dentro de algumas horas.
Assim que fechou a porta, ouviu chamar o telefone.
— Pronto.
— Alô, Rosi, estamos todos bem. Viemos de helicóptero para Palmas e ninguém se feriu. Não precisa ficar abalada. Agora preciso desligar, porque tenho de avisar meu pai e meu irmão. Eles devem estar aflitos. Um beijão, querida. Eu estou te amando mais ainda. Depois eu conto tudo através da Internet.
E desligou.
Rosinha estava sem entender nada. Nervosa, foi à cozinha tomar uma água com açúcar. Precisava refrescar a cabeça e esclarecer a confusão.
Foi quando chegou Dona Flávia:
— Filha, está um rebuliço lá fora. Estão dizendo que prenderam dois assaltantes e que eles estavam aqui no seu apartamento.
— Você não viu na televisão?
— Não vi nada na televisão, só o seqüestro do avião do Teo.
Girou a cabeça da mocinha, que desfaleceu. A pressão havia sido demais para ela.



7. PROSSEGUE A VIAGEM

As informações passadas por Teotônio ao pai e ao irmão foram breves: precisava acomodar-se no avião que seguiria para a Europa, avião de carreira deslocado para Palmas com o fito de apanhar os jogadores e demais componentes do clube. Assim, não soube dos acontecimentos que envolveram Rosinha.
“A polícia deveria investigar mais rigorosamente junto aos passageiros, inclusive providenciando retratos falados.”
Abriu o laptop e buscou um arquivo em que costumava desenhar as figuras de parentes e amigos. Havia vários recursos gráficos à disposição, tal qual um programa de reconstituições fisionômicas oficial da polícia, de sorte que, esforçando-se, pôde elaborar um retrato do seqüestrador que o mandara desviar os olhos. Gostou do resultado do trabalho, oferecendo o retrato à consideração do companheiro ao lado.
— Que você acha da minha obra de arte?
— Está bem parecido. Mas a minha é bastante mais realista.
— Como assim?
— Usei a máquina fotográfica. O filme ficou com os investigadores. Eu acho que outras pessoas fizeram o mesmo.
— E eu gastando os meus neurônios à toa!...
— Mas está bem parecido.
— Muito obrigado pelo estímulo.
A conversa morreria ali. Ambos estavam ainda sob a terrível impressão das ameaças durante o seqüestro e da possibilidade de acidente.
Como houvesse a distração de filme projetado individualmente, o fone de ouvidos se transformou na muralha para o ruído exterior. Mas Teotônio não se interessou por ouvir a trilha sonora, de forma que silenciou completamente o aparelho.
Naquelas próximas horas, recapitularia toda a sua vida, buscando as raízes de seu amor pela esposa.
“Nem bem parti e começam as saudades. Ainda bem que não cismei de trazê-la comigo. Evitamos o transtorno do medo. Aliás, os colegas mais velhos e os dirigentes estão viajando sozinhos. Duas ou três mulheres, tomaram outros vôos. Mas essa de fazer turismo de intervalos e sem roteiros definidos acaba sendo puro desperdício de tempo e de dinheiro. Não acredito que se consigam momentos de intimidade, o que, de resto, seria sandice, já que, no sossego do lar, as coisas acontecem com muito mais naturalidade.”
Percebeu que as lembranças estavam direcionando-se para os momentos de luxúria. Achou que não era o momento mais oportuno para as recordações lúbricas, conseguindo desviar o rumo dos pensamentos:
“Essas coisas acabam em gravidez. Ainda bem que recebemos orientação quanto a realizar de maneira segura o ato sexual. Rosinha pretende formar-se antes de ter filhos. É o melhor que temos a fazer. A advocacia espera por mim na próxima esquina da vida. Tudo indica que estaremos com grande soma de bens e de dinheiro nas contas bancárias, contudo, após os trinta e cinco anos, ficar sem objetivos profissionais deve ser um convite para o Umbral.”
Surpreendeu-se com a repentina inclusão do além-túmulo no rol das meditações.
“E, no entanto,” concluiu, antes de adormecer, “todos os seres vivos se encontraram e vão continuar encontrando-se consigo mesmos do outro lado do mistério.”
O sono foi bastante agitado, repleto de pesadelos. O único de que viria a recordar-se referia-se a um problema com pessoas desconhecidas que lhe exigiam respeito, enquanto corria com a bola, através de gramado todo azul, como se a partida se realizasse no céu. Afligia-se com o fato de não divisar nunca o gol para onde deveria chutar, sentindo-se cada vez mais ofegante, não recebendo falta e não achando companheiro para passar a bola. De repente, o estádio se encheu de sons e gritos e ele acordou assustado, com o fone de ouvido no último volume.
Assustou-se também o colega do lado, que pretendia suprimir o som, vendo Teo adormecido mas que, por engano, rodopiara o botão para o lado contrário.
— Que aconteceu?
— Desculpe-me. Pensei que você estivesse agitado por causa do som da batalha no filme e tentei desligar o aparelho. Vejo que o acordei.
— Foi um estrondo na minha cabeça. De qualquer modo, se eu não me assustasse acordando, continuaria penando dormindo, porque estava jogando uma partida contra adversários que se pareciam com os seqüestradores.
— Quem mandou ficar desenhando o rosto deles.
— Desenhei de um só. Mas você tem razão: parece que o medo se transformou em nervosismo que só agora veio à tona.
O amigo imaginou que também estava no mesmo caso e concordou com a cabeça.
Nisso, Santoro se aproximou da fileira em que se achavam os rapazes, perguntando:
— Teo, você ligou pra casa?
— Liguei.
— Conversou com a esposa?
— Sim.
— Achou-a tranqüila?
— Não notei nenhum excesso de nervosismo. Acho que ficou sabendo do resgate dos passageiros através da televisão.
— Ligou pra mais alguém?
— Para meu pai e para meu irmão. Por quê?
— É sempre bom saber como é que os parentes estão depois de acontecimentos tão terríveis.
— Não posso dizer que eles estivessem calmos, porque as conversas foram curtas. Quando desembarcarmos em Recife, para a baldeação, vou ligar de novo.
— Faça isso. Isso vale pra você também, Adalberto.
— Minha mãe estava chorando e passou o telefone pra minha irmã. Acho que os noticiários devem ter deixado todo o mundo nervoso.
— Com certeza. Eu mesmo tive problemas para informar minha mulher de que tudo estava bem conosco. Graças a Deus, não sofremos nenhum dano. Se vocês precisarem de calmante, o doutor está autorizado a dar. Mas não pode ser nenhuma droga proibida, para o caso dos exames antidoping. Dentro de quarenta minutos, estaremos aterrissando. Já conversei com todos. Vocês é que me pareceram os mais tranqüilos. Agora, vou cuidar de mim.
Teotônio ficou curioso em saber como é que o técnico iria cuidar de si, por isso esticou os olhos para o lugar que ocupou. Dali foi capaz de ver que o bom homem tomava um líqüido avermelhado, uma boa dose, talvez, de aperitivo.

Assim que Teotônio buscou a área reservada do aeroporto para telefonar, foi tomado de assalto por um bando de repórteres, o recinto iluminado pelos flashes dos fotógrafos e pelas lâmpadas dos cinegrafistas.
Um mais ousado estendeu o microfone para diante do rosto do rapaz, perguntando:
— Você vai pra Espanha, apesar do rapto de sua mulher? Que você está achando da prisão da prima dela e do traficante?



8. PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS

Assim que Rosinha se restabeleceu do desmaio, buscou saber o que havia ocorrido com o vôo do marido.
Dona Flávia, saindo do desespero, desejava pôr as coisas no lugar:
— Você não precisa preocupar-se com ele: ele deve estar...
A filha não atendeu. Correu para diante da televisão, deparando-se com as informações que procurava. De fato, de Palmas chegava a imagem de um avião levantando vôo e as explicações de que todos os jogadores estavam bem.
— Mãe, quanto tempo fiquei sem sentidos?
— Uns quarenta minutos.
— Por que a senhora não me acordou?
— Tentei de todo jeito. Depois achei que você estava precisando dormir e carreguei com você pra cama. Parecia um anjo. Não saí nem um pouco do teu lado.
— Quando você chegou, eu mal tinha acabado de receber um telefonema do Teo, dizendo que tinha ido a Palmas de helicóptero. Foi isso que me aturdiu. Como ele desligou, não pude perguntar nada.
— E essa história dos bandidos presos: é verdade que estavam aqui no apartamento? A Laura não devia estar com você?
— Mãe, foi a Laura quem trouxe o traficante pro apartamento.
Foi longa e demorada a explicação do episódio. O maior medo de Rosinha era de a mãe relacionar a sobrinha com a morte do filho. Ao referir a observação do pai de Teotônio quanto ao perigo que representava a prima, deixou a mãe completamente estupefacta.
Finalmente, Dona Flávia mencionou os pais da moça:
— Meu irmão e minha cunhada devem estar apavorados. Vou ligar pra eles.
— Nesta altura, já devem estar sabendo de tudo.
Realmente, voltava a reportagem a citar o caso do casal preso diante do prédio, revelando a identidade de ambos.
Mãe e filha ficaram presas na tela. A repórter demonstrava saber de quem se tratava, lembrando a matéria do ano anterior em que entrevistara a noiva do craque, levando-a a conversar com ele durante a transmissão a respeito do tiroteio entre policiais e traficantes.
De fato, em seguida, para ilustrar, repetiram as cenas gravadas na ocasião, fazendo questão de buscar a figura da prima passando ao fundo.
Foi Dona Flávia quem comentou:
— Olha a Laurinha saindo do quarto dela e desaparecendo pelos lados da cozinha.
— Eu não tinha notado na época, mas agora estou entendendo a razão de ela estar cobrindo o rosto.
— Desligue isso, filha. Não vai demorar pro povo ligar pra cá. Você estava certa, meu irmão deve estar a par dos acontecimentos. Mas vou ligar mesmo assim, pra saber o que está pretendendo fazer.
Ligou mas deu com o sinal de ocupado.
— Ele deve estar procurando advogado.
— Se Teo estivesse aqui, estaria indicando o Doutor Rosalvo.
— Se o teu marido estivesse aqui, nada disso teria acontecido: nem seqüestro, nem cativeiro.
Nisto batem à porta.
Rosinha correu para o olho mágico: viu o sogro e Wilsinho.
Aberta a porta, entraram os dois, além dos pais de Laura e um jovem de paletó e gravata, que o sargento foi logo apresentando:
— Rosinha, este é o Doutor Clóvis, do escritório do Doutor Rosalvo.
O tio e a tia entraram abraçados, ela com um lenço sobre os olhos, soluçando.
Dona Flávia aproximou-se do irmão:
— Que desgraça, Artur! O que foi que deu na Laurinha?
Dona Esmeralda desprendeu-se do marido e ajoelhou-se diante da cunhada:
— Perdão, Flávia. Perdoe minha filha, pelo amor de Deus!
Rosinha ajudou a levantar a tia:
— Que é isso, tia? Que desespero é esse?
Artur interveio:
— Sua tia acha que foi a Laurinha quem levou o Renato para o tráfico.
Foi a vez de Dona Flávia emocionar-se:
— Santo Deus! Eu estava com essa idéia na cabeça mas não queria acreditar.
Arnaldo se interpôs entre os parentes:
— Não vamos tirar conclusões precipitadas, por favor. Eu estava sabendo que a Laura já vendeu papelotes no restaurante, mas não posso dizer se isso foi antes ou depois de Renato ter começado no tráfico, o que agora não vem ao caso. O importante é que a moça não está com a ficha suja. Quando cheguei à delegacia, puxei a ficha, para ver o que se sabia sobre ela. Consta apenas que é a namorada do André, este, sim, meliante perigosíssimo. Ontem, matou um policial, o que fiquei sabendo só hoje. Foi quando pedi que vigiassem o prédio, desconfiando de que ele estivesse com a jovem.
Wilsinho, que mantinha a mão da cunhada nas suas, perguntou-lhe:
— Que aconteceu aqui com o traficante?
Foi o pai quem respondeu:
— Com certeza, queria transformar o apartamento do Teo em esconderijo. Aposto que Laurinha foi contra.
Rosinha entendeu que o sogro estava querendo livrar a prima da acusação de seqüestro, embora não soubesse o que se passara ali dentro. Olhando para o tio, perguntou-lhe:
— Posso contar tudo o que ela fez comigo?
Dona Esmeralda interveio:
— O que foi que ela aprontou?
Rosinha, prudentemente, não revelou diretamente a agressão de que foi vítima:
— Estão vendo aquelas roupas no chão? Pois, quando saíram, ela levou consigo; e mais as jóias e o dinheiro que eu tinha em casa. Foi o policial quem me devolveu tudo.
Os próximos vinte minutos foram de muita tristeza, pranto, desmaios e desculpas. Dona Flávia tratou da cunhada como pôde. Artur escondeu-se num canto da sala, enfiando a cabeça entre os braços apoiados num móvel. Soluçava. Arnaldo confabulava com o advogado e Wilsinho buscava consolar Rosinha, que desejava mais notícias do marido:
— Ele conversou comigo, dizendo que estava tudo bem. Estou esperando outra ligação a partir do Recife.
— Quanto falta pra ele chegar lá?
— Já deve estar chegando.
— Você contou o que aconteceu com a minha prima?
— Não contei e, pelo jeito, ele não estava sabendo de nada.
— Não estava sabendo, mas vai saber quando chegar a Recife, com certeza. Preciso pôr o fone no gancho, que tirei para não ser aborrecida pelos jornalistas.
Nisto Clóvis se aproximou:
— A senhora vai precisar registrar queixa na delegacia. É bom que eu vá junto. O importante é saber se vai envolver sua prima. Pense bem sobre isso. Converse com sua mãe e com seu sogro. Não há pressa: o boletim pode ser lavrado nos próximos dias.
— Doutor, preciso antes conversar com meu marido. Estou esperando uma ligação dele. Depois eu combino com meu sogro e nós vamos, numa hora em que a imprensa não esteja por perto.
— O meu cartão está com o Senhor Arnaldo. A senhora deve ter o telefone do escritório...
— Tenho.
— Eu vou andando, para deixar a família à vontade.
Enquanto saía o advogado, entravam Dona Vilma, Padre Fulgêncio e o velho Vieira.
A sogra logo procurou confortar a nora:
— Querida, que susto! Conte pra nós o que se passou.
Fulgêncio abraçou a jovem com muita ternura:
— Que bom que você está bem! Graças a Deus! Eu fiz questão de trazer o Vieira, que me ligou desejoso de vir confortar os amigos.
Vieira também abraçou a moça, enquanto a tranqüilizava:
— Pode ficar sossegada que o Teo está bem. Liguei para um amigo espírita em Palmas, que me forneceu dados que não foram transmitidos pela televisão. Parece que os bandidos estavam atrás de uma carga de pedras preciosas, produto de contrabando. Ladrão roubando ladrão. As pessoas não correram risco de vida, a não ser que houvesse algum acidente, o que não aconteceu.
Arnaldo ouviu tudo muito atentamente mas não disse nada. Estava com o telefone na mão, querendo receber primeiro a chamada do filho.
Dona Vilma havia trazido alguns chás calmantes, tendo chamado as mulheres para a cozinha.
Enquanto Flávia providenciava a água fervente, arrumou a mesa, deixando Margarida derreada numa das cadeiras.
Vilma insistiu com a nora para que contasse o que havia sucedido. Rosinha simplesmente disse que havia encontrado o estranho no quarto, enquanto a prima aprontava o café. Disse que, por ordem dele, ficou presa no banheiro, até que a prima lhe passou a chave por baixo da porta, avisando-a que estavam de partida. Calou tudo o mais, dando a entender, no entanto, que ouvira quando o homem mandara Laura pegar dinheiro e jóias. O mais foram lamentações por ter a prima envolvida com o traficante.
Passaria mais de meia hora, até que todos voltassem a se reunir na sala, onde Wilsinho monitorava a televisão.



9. CONTATOS PÚBLICOS E PARTICULARES

Quando Teotônio fez menção de ir em busca de telefone, um dos repórteres presentes lhe ofereceu um:
— Teo, use o meu celular. Você vai poder conversar com Dona Rosinha, enquanto transmitimos as imagens ao vivo.
— Eu gostaria de falar em particular com ela.
— Tudo bem. Depois da entrevista, eu cedo o telefone.
Rapidamente, Teotônio digitou os números e aguardou alguns instantes, perante o ar de expectativa dos jornalistas.
— Pronto.
— É o Teo.
— Aqui é o pai. Foi bom você ligar, porque precisamos muito conversar...
— Pai, a televisão está ligada? Estou no ar.
— Espere um pouco. Eu vou chamar a Rosinha.
De passagem, Arnaldo pediu a Wilsinho que procurasse o canal que estava transmitindo do Recife. Logo, Rosinha estava diante da imagem do marido, conversando com ele:
— Oi, Teo...
— Rosi, você está bem?
— Estou.
— Que aconteceu? Estão dizendo que você ficou presa no apartamento...
— Fiquei mas agora tudo já passou. O importante é que você está a salvo.
— Ninguém se machucou seriamente. Estamos de partida para a Espanha. Não posso demorar. Que história é essa de que a Laurinha...
— Está tudo bem, querido. Minha mãe está aqui, seus pais, Wilsinho, os meus tios, Padre Fulgêncio e o Seu Vieira. O Doutor Rosalvo mandou um advogado para orientar a gente. Só vou ter de registrar queixa na delegacia. E vocês, já fizeram o Boletim de Ocorrência?
— Graças a Deus, estou vendo que você está calma. Eu também. Daqui a pouco eu vou voltar a ligar, sem a televisão.
— Como sempre, você está um gato escondido atrás dos microfones...
— Tchau, querida. Um beijo.
— Outro.
Teotônio dirigiu-se aos repórteres:
— Eu disse tudo o que sabia. Vocês não podem exigir mais nada de mim. Sugiro que entrevistem os responsáveis pela excursão.
Fez um gesto largo, buscou refúgio junto aos guardas da segurança do aeroporto e desapareceu, indo em direção da sala em que estavam os companheiros.
Depois de respirar profundamente, apanhou o celular e acionou a tecla de repetição da última chamada. Um instante depois, estava conversando com o pai:
— Filho, eu quero que você recomende à Rosinha que faça de Laura outra vítima do traficante. Eu não sei bem o que aconteceu no apartamento enquanto eles estiveram aqui, contudo, qualquer denúncia de que a prima estava mancomunada com o criminoso vai custar-lhe um processo de que não sairá sem condenação.
— Eu acho que ela deve dizer tudo o que sabe, conforme o que aconteceu, nem mais nem menos.
— Não nesse caso, porque pode vir a ser muito perigoso para ela e para você, se a quadrilha resolver que deve eliminar as testemunhas. Lembre-se daquela voz na escuridão.
— Se o senhor pensa que é melhor para todos...
— Deixe que a polícia resolva apenas os crimes do rapaz, sem envolver a moça, entre outras razões, para não reavivar os casos do tiroteio em que morreu o cabo ou a chacina em que morreu o menino.
— Vou falar com ela. O senhor já lhe disse qualquer coisa nesse sentido?
— Não conversei com ela, ou melhor, quando voltamos do aeroporto e eu soube que a Laura era quem ia ficar com ela na sua ausência, eu disse que tomasse cuidado, porque ela estava implicada com o tráfico, uma vez que, pelas minhas investigações, houve uma época em que ela vendia droga para fregueses do restaurante em que trabalhava. Por outro lado, os meus colegas me haviam prevenido que ela estava namorando o traficante acusado de assassinar um policial.
— Não era o caso de eu voltar pra casa?
— Eu vou tomar conta dela, fique sossegado. Acho que ela não vai ser teimosa e acusar a prima. Quando você chegar à Espanha, ligue para mim. Até lá, terei uma idéia melhor a respeito. Vou passar o telefone pra ela.
— Oi, Rosi, você ouviu o que meu pai me disse?
— Boa parte. O que entendi é que ele não quer que eu conte que a Laurinha foi quem me segurou e me trancou no banheiro.
— Ela disse alguma coisa como quem está sendo ameaçada?
— Ela estava bem folgada. Parecia dona do apartamento, preparando o café, tomando banho, pegando minhas roupas, jóias e dinheiro. O cara saiu vestido com uma calça sua e camisa. A roupa dele está ainda no pacote que a polícia me devolveu com o produto do assalto.
— Ele estava armado?
— Não sei dizer. Com certeza os jornais vão trazer todas as informações, uma vez que eles foram presos na rua, na frente do prédio. Eu tive tempo de avisar o porteiro; por isso é que a polícia sabia onde é que eles tinham ficado.
— Estou sentindo que você está com muita raiva da Laurinha.
— Estou com raiva mas sinto muito mais decepção, como se ela, o tempo todo, estivesse traindo a família. Não me sai da idéia o pensamento de que meu irmão começou a traficar por influência dela.
— Talvez tenha sido isso mesmo. Mas eu gostaria que você relevasse a culpa dela na hora de prestar a queixa.
— Eu bem que escondi tudo dos meus tios.
— Faça o mesmo em relação à polícia. Vamos evitar que a quadrilha possa nos tornar alvo de queima de arquivo. Você chegou no apartamento e logo o bandido a prendeu no banheiro.
— Não se esqueça de que avisei o porteiro a respeito do roubo.
— Como é que você conseguiu sair, se estava presa?
— A Laura me passou a chave por baixo da porta.
— Ótimo. Aí você viu que estavam faltando as jóias e as roupas e correu para o interfone. Não foi assim que aconteceu?
— Mais ou menos. Eu ouvi quando ele mandou que ela pegasse as coisas.
— Melhor ainda. Explique para o meu pai tintim por tintim tudo o que decidimos. E siga as instruções dele. Se você achar conveniente, ou eu dou um jeito de voltar pra casa, ou você vai me encontrar na Europa. Depois a gente acerta isso. Estão me chamando pra embarcar. Um beijo, querida. Não se preocupe, que as coisas vão dar certo. Quem não deve, não teme. Ou melhor: vou orar pra que os nossos protetores espirituais continuem ajudando-nos. Não é verdade que, se o meu avião não fosse seqüestrado, você ainda estaria sob o poder dos delinqüentes? Pense nisso.
— Vou conversar com o Padre Fulgêncio e com o Seu Vieira sobre essa sua idéia. Vou fazer exatamente como o seu pai pedir. Fique tranqüilo. Vá com Deus!
Em breve, Teotônio estava acomodado na moderna aeronave, meio inquieto com todos os assustadores acontecimentos do dia. Exatamente como dissera à jovem esposa, rogou aos protetores que mantivessem a assistência à família, elegendo Laurinha como a mais necessitada de todos, sem esquecer os pais dela e Dona Flávia.
Rosinha é que precisou atender os familiares, mais os visitantes, narrando várias vezes, em versões mais ou menos extensas, tudo quanto passara nas mãos do casal. Finalmente, à tarde, após almoço bastante frugal preparado pela mãe e pela sogra, acompanhou os tios e o sogro à delegacia.
Naquele meio tempo, foi designado pelo Doutor Rosalvo, a pedido de Arnaldo, outro causídico para representar juridicamente a jovem detida. Com ele, compareceu o Doutor Clóvis, que insistiu na necessidade de estar presente durante o depoimento da vítima.
Não tendo havido acusação formal contra Laurinha, resolveu o delegado deixá-la solta, com o compromisso firmado pelo advogado de que estaria à disposição da autoridade para os procedimentos legais concernentes ao inquérito que se abria contra André.
De propósito, o delegado, desconfiando de que estavam minimizando a responsabilidade da moça, colocou ambas as jovens frente a frente, para ver a reação de ambas. Inesperadamente, Rosinha abraçou a prima, fazendo questão de sair na companhia dela, inclusive sem cobrir-lhe o rosto, para demonstrar aos fotógrafos e cinegrafistas que não havia desavença entre ambas.
Apesar de tudo, não se reuniram no apartamento, tendo Arnaldo levado Laura com os pais para a casa deles, enquanto Rosinha ficava no apartamento com a mãe e a sogra.
Sem a presença do padre, do espírita e do cunhado, Rosinha desandou a chorar nos braços da mãe, descarregando a tensão tremenda daquele dia infeliz. No alvoroço dos pensamentos desencontrados, acabou atinando com o fato de não ter consultado nem Fulgêncio nem Vieira a respeito da coincidência dos atentados.



10. TEOTÔNIO MONTA O QUEBRA-CABEÇA

Quando chegou à Espanha, Teotônio já havia realizado uma boa parte da união das peças para estabelecer o papel do pai no mundo dramático dos acontecimentos dos últimos tempos.
Lembrara-se do ano anterior quando foi o sargento baleado no confronto em que perdeu a vida o Cabo Farias:
“Por ocasião do assassinato de Renato, meu pai tinha o álibi perfeito, pois estava em casa rodeado pela família. Na noite em que os encapuzados me ameaçaram na rua, também. Só não estava quando houve a chacina dos bandidos acusados como autores da morte de Renato e demais traficantes. Ora, caso os encapuzados tenham sido do grupo de meu pai, é de todo compreensível que ele não estivesse junto. O que me disseram? Disseram para não me meter a investigar a morte do menino. Aí meu pai me tranqüilizou, pedindo-me para atender a ordem. De modo algum se viu incomodado com a ameaça. Traduziu-a para mim como passível de vir a ser cumprida, condicionando a reação dos marginais à minha. Não seria lógico que não houvesse existido ameaça e, sim, uma execução sumária?”
Estremeceu o moço com o tétrico pensamento. Em seguida, passou a outras considerações, revendo um a um os gols que assinalou desde que se profissionalizara. Inevitavelmente, comemorara beijando a aliança, oferecendo os tentos à noiva e depois à esposa.
Esta última lembrança levou-o a meditar a respeito das alterações que a mudança de estado civil lhe proporcionara:
“Se todo cidadão brasileiro se casasse antes dos dezoito anos, ninguém iria servir nas Forças Armadas. Estou garantido quanto à dispensa, do mesmo modo que poderia ter dispensado meu pai da guarda provisória dos meus bens.”
Perturbou-se mais uma vez, tendo em vista que lhe voltara à memória a desconfiança de que Arnaldo obtivesse uma renda extraordinária com o narcotráfico:
“Para que meu pai nos escondesse qualquer remuneração ilícita, teria de deixar de usufruir de todos os bens que adquirisse. Na verdade, a família sempre viveu de maneira bastante humilde, sem regalias de qualquer espécie, nem mesmo quanto a uma ou outra ida a restaurante. Cheguei ao absurdo de supor que ele mantivesse outra família. Precisarei pedir-lhe perdão por julgá-lo de forma tão cruel. Por outro lado, não dei por falta de nenhum centavo nas contas em que mantém depositado o meu dinheiro.”
A referência ao dinheiro deixou-o preocupado, porque não sabia direito como é que os ricos haveriam de passar pela porta estreita para adentrar no paraíso:
“Se Vieira estivesse comigo, iria dizer que somente a perfeição contém o equilíbrio das forças morais e espirituais, possibilitando ao lado bom submeter plenamente qualquer resquício de maldade. É engraçado que, até o último momento, precisa a criatura deter algo ruim, dado que apenas com a completa eliminação dele é que se pode ser admitido no reino de Deus, caso contrário, o ser perfeito ficaria vagando em meio ao turbilhão dos defeitos e vícios transformados em vibrações sutis, cuja influência iria perturbar a sublimidade do ser incorruptível.”
Considerou Teotônio que a riqueza espiritual haveria de suplantar os desejos de grandeza material de quem se apurou nas virtudes:
“Nem sei se Vieira me diria isso. Talvez o Professor Ernesto dissesse. Mas eu sei o porquê de me ter ocorrido a figura do ancião: foi ele quem me afiançou que meu pai era um homem honrado. No entanto, não tive tempo de esmiuçar-lhe a opinião positiva. Devo, porém, acreditar em quem nada iria ganhar mentindo, a menos que esta minha conclusão esteja equivocada.”
A acusação implícita de desonestidade doeu na consciência do jovem:
“Que eu acuse meu pai sem fundamento é crime que posso resgatar. Mas como dizer ao velho espírita que desconfiei dele? Vamos enveredar por essa trilha tortuosa. Quem sabe algo eu possa definir quanto ao problema de estar meu pai envolvido com o narcotráfico. Vou imaginar o pior: que ele receba algum por fora. Não tendo dado destino próprio ao dinheiro, pode acontecer de doá-lo ao centro espírita, ou melhor, pensando bem, quem poderia ter usufruído há muito mais tempo dessa regalia é o Padre Fulgêncio, já que meu pai freqüenta a paróquia dele desde que se casou. Pronto, envolvi mais uma pessoa a quem tanto devo, inclusive meu encaminhamento aos estudos da doutrina espírita. Acho melhor parar por aqui.”
Não demorou, contudo, a ser assaltado por outra inspiração:
“Por outro lado, conhecendo os que traficam, tendo contato com os informantes, é lógico que meu pai conhece muitos viciados. Quem sabe Vieira estivesse fazendo referência ao fato de receber jovens encaminhados por meu pai para tratamento espiritual e salvação física?... Também Fulgêncio costuma encaminhar os viciados para clínicas especializadas, muitas sob a direção de padres missionários. Neste caso, até que o dinheiro poderá estar sendo aplicado para fazer o bem. É como procede o próprio Governo, quando apreende as propriedades dos traficantes condenados e os põe à venda mediante leilão, vindo a aplicar o montante arrecadado no sistema de recuperação dos doentes das drogas.”
Sentiu Teotônio que o coração voltava a bater mais compassadamente. Havia, inclusive, imaginado uma desculpa, caso viessem a perguntar-lhe por que estava tão agitado. Seria pela lembrança da presença dos bandidos e da ordem que recebera para virar o rosto. De qualquer forma, antes de adormecer, ainda lhe passou pela cabeça que a mentira era salutar nos casos de proteção dos segredos íntimos.



11. DURANTE A EXCURSÃO

Naqueles quarenta e três dias em que esteve fora, pôde Teotônio refletir melhor a respeito das suposições que formulara. No entanto, a correria de cidade a cidade, o sucesso de suas participações nos jogos, o conseqüente assédio dos jornalistas, como ainda a necessidade de estar a par das matérias do curso médio e do exame vestibular, para o qual se preparava intensivamente, mantiveram-no ocupado, sem devaneios. Além do mais, sempre que possível, ia em busca de cyber-cafés, para estabelecer contato, via Internet, com Rosinha.
Conversavam muito a respeito da escola, dos jogos, da viagem, da saudade, e muito pouco a respeito dos acontecimentos que os envolveram naquele fatídico dia da partida.
Houve um diálogo que merece ser reproduzido:
Teo: Falou com Vieira a respeito da coincidência que libertou você?
Rosinha: Falei. Ele me afiançou que não houve influência dos nossos protetores espirituais no sentido de que as coisas se ajustassem de maneira tão propícia para a minha libertação.
Teo: Que razões ele deu?
Rosinha: Disse que houve muita gente envolvida, inclusive quem passasse muito mal, com risco da própria vida, para que se desse um complô na espiritualidade com a finalidade de ajudar-me.
Teo: Quer dizer que nenhum ato maléfico pode ser incentivado com o intuito de provocar o bem, como no caso do ditado de que há males que vêm para bem?
Rosinha: Eu penso que o seqüestro do avião foi independente do que aconteceu comigo. Mas é bem possível que o bandido aqui em casa tivesse sido levado a ligar a televisão por meu protetor.
Teo: Deve ter sido isso mesmo. Os amigos da espiritualidade não perderam a deixa. Resta saber se os espíritos obsessores do marginal também devem ter sofrido uma coerção, para permitirem a desistência do plano de permanência dele em casa.
Rosinha: Com certeza, a idéia era passar uns dois ou três dias, porque era impossível manter minha mãe afastada por mais tempo.
Teo: A menos que pretendessem prendê-la também.
Rosinha: Não acredito. Estão dizendo que Laura está definhando dia a dia e que parou de se alimentar.
Teo: Ela estava drogada, evidentemente. Agora, com a cabeça desanuviada, está vendo a bobagem que fez. Por falar nisso, os repórteres estão perturbando você ou ela?
Rosinha: Devem estar esperando outros desdobramentos. O que passou não interessa a eles. A matéria deve gotejar sangue. No máximo, quando descrevem os resultados dos jogos, recordam que o ânimo da equipe se recuperou muito bem daqueles momentos de aflição.

Também merece ser transcrito o diálogo que o craque manteve com o chefe da delegação, Doutor Elpídio:
— Teo, tome cuidado com a maneira de driblar os adversários. Você tem escapado do jogo bruto, todavia, eles não suportam ser visados pela torcida, quando sentem que estão sendo ridicularizados. No Brasil, você logo fica sabendo, porque recebe os xingos, as cusparadas e os palavrões. Aqui eles fazem de conta que tudo está bem e, quando menos você espera, descem o sarrafo, visando a canela, principalmente no jogo corpo a corpo.
— Doutor, eu tenho evitado fintar, preferindo passar de primeira em toques rápidos. Somente quando se trata do último homem da defesa é que sou obrigado a tentar o drible.
— Eu estou avisando de modo particular a você, mas acho que o Santoro já preveniu a turma.
— A preleção dele foi clara, nesse sentido.
— Estou apenas reforçando, porque queremos valorizá-lo ainda mais, para futura transferência para o futebol europeu.
— Pode acreditar, doutor, que não estou pensando em me mudar para cá, pelo menos por enquanto. O que aconteceu com a Rosinha, como o senhor sabe, me levou a pensar seriamente no assunto. Mas toda a nossa vida está lá: nossas famílias, nossos estudos, nossos bens.
— Tudo isso e mais ainda vocês teriam aqui; e bem melhor; menos a família, é claro.
— Os estudos também seriam prejudicados.
— Que carreira lhe daria maiores rendimentos em tão pouco tempo? Vir para o futebol europeu é o mesmo que ganhar na loteria, com a vantagem de que, dependendo da adaptação à vida social e esportiva, os contratos iriam ficar cada vez mais polpudos. Que grande craque brasileiro ficou por lá a vida toda, nos últimos tempos? Todos vieram receber em euros.
— Ainda não completei dezoito. Vou esperar, no mínimo, até o final do contrato.
— Se você fosse solteiro, nem poderia ser transferido. Mas o casamento fez com que se emancipasse do pátrio poder. Talvez...
— O senhor fala como se estivesse com a proposta no bolso.
— Propostas, no plural, contudo, nenhuma satisfatória. Quando alguém decidir trazê-lo para cá com uma oferta irrecusável, Renildo vai ser o primeiro a ficar sabendo. Aí você terá de conversar com o seu procurador. Ele lhe mostrará os benefícios da mudança de ares.
— Doutor, eu só quero ter uma certeza: o senhor não gostaria de contar comigo no Brasil, ajudando a vencer os campeonatos regionais, nacionais e internacionais?
— A certeza que posso oferecer-lhe é quanto ao nosso interesse em mantê-lo conosco. No entanto, às vezes, o destino dos jogadores não está em nossas mãos.
— Considere o próximo gol que eu marcar como seu.
— Obrigado!
De fato, na partida seguinte, depois de assinalar o primeiro tento dos três que marcou, o estádio viu que Teotônio corria com o braço estendido, apontando para a tribuna de honra. Era a primeira vez que não beijava a aliança. Mas Rosinha, que assistia a partida ao vivo, em casa, já estava ciente de que essa seria a comemoração.



12. EM CASA

Vamos poupar o amigo leitor das costumeiras correrias provocadas pelos torcedores no aeroporto. Desta feita não foi diferente, precisando a polícia compor forte cordão de isolamento para que os jogadores e demais membros do grupo pudessem chegar a salvo ao carro do corpo de bombeiros, sobre o qual desfilariam portando os troféus conquistados.
Cerca de cinco horas depois do desembarque, Teotônio conseguiu chegar ao apartamento, em cuja entrada se postou tremenda multidão a ovacioná-lo. Tinha sido o mais destacado do time, com treze gols em dez cotejos vitoriosos, afora o fato de haver servido os companheiros mais dezessete vezes em lances de gol. A televisão havia transmitido sete das dez partidas, enchendo os olhos do povo, agradando, inclusive, àqueles que torciam por outros clubes.
Arnaldo trouxe-o da sede do clube, indo até o segundo subsolo da garagem, ascendendo de elevador até o apartamento, onde foi recebido pela esposa, pela mãe, pelo irmão e pela sogra, pequena comitiva que viria a ser reforçada, na meia hora seguinte, pelo agente, pelo padre, pelo professor e pelo velho espírita, todos ansiosos por abraçá-lo. Não estavam os tios de Rosinha nem a prima, naturalmente.
Lá fora, o povo só se dispersou depois que o craque saiu à janela para acenar.
Ao voltar para o regaço da parentela e dos amigos, Teotônio deparou-se com os embrulhos dos presentes, já que suas malas haviam sido desfeitas.
— Pessoal, eu trouxe algumas lembrancinhas. Ainda bem que os fiscais do aeroporto não remexeram a bagagem, podendo cada um encontrar a sua através do nome.
Rosinha, porém, não permitiu que avançassem sobre os embrulhos:
— Nada disso. É muito melhor que você vá chamando um a um, para que a gente saiba o que todos ganharam.
E assim se deu.
O que o rapaz chamou de lembrancinhas, no entanto, eram regalos de bom gosto e de bom preço, comovendo as pessoas pela generosidade ou pelo desprendimento.
Wilsinho ostentava orgulhoso um casaco azul escuro de lã. Ao enfiar as mãos nos bolsos, encontrou uma carteira recheada com mil euros.
Arnaldo recebeu uma bengala de manopla de marfim trabalhado. Por meio de mola acionada por um botão disfarçado na empunhadura, transformava-se o aparato em arma branca, já que saltava uma fina lâmina de aço na ponta.
Vilma recebeu um leque de brocado, com desenhos em relevo realçados por fios de ouro e pequenos diamantes.
Rosinha teve de abrir três pacotes: um com uma estola de tecido imitando arminho; outro com um par de brincos, com duas magníficas esmeraldas; o terceiro com um vestido de alta moda, conforme atestava a etiqueta.
Os demais gozaram a satisfação de presentes típicos: vinhos especiais, queijos e salames de nobres procedências, uma guitarra andaluza para Ernesto, um livro francês raríssimo para o ex-patrão, Doutor Rosalvo, um conjunto de canetas inglesas do século dezoito para Renildo e assim por diante.
Os pacotes dos tios de Rosinha seriam levados por Flávia, que recebera duas pulseiras italianas e dois perfumes franceses. Para Laura, havia um embrulho pesado que chamou a atenção de todos. Entretanto, Teotônio não lhe revelou o conteúdo.
Estando todos acomodados na sala, após terem lanchado, Teotônio, natural centro das atenções, tomou a palavra, tendo pedido silêncio:
— Preciso conversar com vocês a respeito dos acontecimentos do dia em que viajei. Acho que todos estão interessados em saber o que ocorreu dentro do avião durante o seqüestro. Pois eu gostaria, primeiro, de discutir o que houve neste apartamento, principalmente porque não entendi direito o fato de meu pai estar prevenido quanto ao vício, ao tráfico e ao namoro da Laura.
Citado, Arnaldo esclareceu:
— Ainda bem que, quando voltávamos do aeroporto, revelei algumas coisas à sua mãe e à sua esposa. Fiz aquilo em virtude de Rosinha ter dito que seria a prima a sua companheira durante a sua ausência. Quer que eu repita o que disse?
Teotônio assentiu. Então Arnaldo acrescentou:
— Eu disse que ela lavava o dinheiro conseguido pelo Renato. Dizia que eram propinas dos fregueses e passava aos pais ou à tia diretamente, para contribuir para as despesas da casa. O mais eu guardei comigo.
Teotônio não se satisfez:
— Como é que o senhor ficou sabendo de tudo?
— Mero trabalho de investigação. Não foi difícil de rastrear alguns usuários de drogas, já que os informantes estavam a par da atividade do rapazola. O levantamento do montante vendido foi feito por aproximação. Laura também foi apontada como vendedora. Isso tudo aconteceu no ano passado. Acontece que André, o narcotraficante que assassinou um policial, estava sendo vigiado há algum tempo. Ora, como foi visto com a Laura, ao saber que ela iria ficar aqui, concluí que era bem possível que houvessem achado que este seria um esconderijo temporário. O que se passou aqui dentro, cabe a Rosinha contar.
Teotônio fez um gesto negativo com a cabeça, como se estivessem faltando informações no relato do pai. Mas concordou com ele:
— Rosi, se você estiver disposta, relate aqueles momentos de angústia em que ficou presa no banheiro.
— Vocês querem a versão completa ou a que consta no meu depoimento?
Fulgêncio, após trocar um olhar expressivo com Vieira, interveio:
— Vou resumir o que sei e depois a menina acrescenta o que julgar necessário. Todos de acordo?
Apesar de nem todos compreenderem o ato do sacerdote, ninguém se opôs.
— André obrigou Laura a se oferecer, no lugar de Dona Flávia, para ficar com a prima. Entraram quando Teo estava sendo conduzido ao aeroporto. Logo o rapaz planejou a estratégia: iriam forçar Rosinha a permanecer incomunicável, mesmo que Dona Flávia viesse para saber a razão de ela não atender o telefone. Pretendia prendê-la também. Seriam quarenta dias de desfrute, porque estavam com bastante cocaína. Depois, o supermercado faria as entregas das encomendas, recebendo por meio dos cheques assinados por Rosinha.
A moça esclareceu:
— Havia uma conta em aberto que seria coberta por meu sogro, o que eles ignoravam.
O padre continuou:
— Mas esse nó não chegou ao pente. Quando Rosinha chegou, foi posta a par das intenções do traficante, tendo sido presa no banheiro principal, reservando-se o da suíte para os intrusos. A televisão, ao transmitir o seqüestro do avião, espantou o marginal, que reuniu alguns valores e se fez acompanhar da namorada, tentando escapar, já que sabia que o apartamento logo estaria recebendo muitos parentes, amigos, policiais e advogados. Não sei se ele previu que viriam também espíritas e sacerdotes. É importante ressaltar que Laura conseguiu passar a chave do banheiro por baixo da porta, para que a prima se soltasse. Se faltou algo, querida, esteja à vontade.
Rosinha fez menção de responder mas Teotônio, que tinha na sua a mão da esposa, deu-lhe um sinal para que nada acrescentasse, ao mesmo tempo que reassumiu o papel de condutor da reunião:
— Falo por ela, para dizer que Laurinha agiu de maneira a demonstrar que se achava apaixonada pelo meliante. Se não fosse assim, era fácil fazer com que Rosinha saísse pela porta de trás, já que, quando chegou, encontrou a prima na cozinha, estando André debaixo do chuveiro. A participação dela foi muito mais espontânea e ativa. Mas isso não vai levar-nos a nada. O importante é que ela está sendo vigiada de perto pelos pais, se não estiver sob os olhos atentos da polícia. Não é verdade, pai?
Arnaldo, de pronto, respondeu:
— Eu mesmo fiz questão de solicitar o apoio de meu antigo esquadrão, com a permissão do major, de modo que estão revezando-se na campana à casa dela, mesmo porque deixou o emprego e não foi readmitida.
Todo o relato foi ouvido pelos demais em silêncio. Ninguém ousou exclamar um ai-meu-deus! oportuno. Mesmo Wilsinho, que tinha o hábito de solicitar apartes, ficou quieto, tendo-se voltado todo para as revelações, que acabaram não vindo. Foi ele quem interveio, afinal:
— Pai, o senhor interrogou Laurinha?
— Não quis interrogar. Achei que isso poderia parecer estranho, já que existe um vínculo de afinidade entre as nossas famílias.
— Nem conversou com ela?
— Conversei ao tempo da chacina em que pereceu Renato. Ela me escondeu tudo. Precisei investigar para ficar sabendo qual tinha sido o papel dela.
— Depois disso, não voltou a encontrá-la?
— Ela ficou sob suspeita dos meus superiores. Foi assim que acabou sendo flagrada com o bandido. Mas eu quero ouvir agora o relato do que aconteceu no vôo que foi desviado. Teo, conte o sofrimento dos passageiros e como você fez para permanecer calmo.
Vieira aproveitou que Teotônio hesitara para atender ao pai e introduziu um tema que havia preparado para a ocasião:
— Se vocês me permitirem, antes que o nosso querido craque fale, preciso dizer que muito me admirei por terem acontecido essas coisas no seio da família. Desde que vocês me procuraram lá no centro, por sugestão do nosso amigo Fulgêncio, aqui presente, aprendi a respeitar o coração bondoso de cada um, mesmo da moça Laurinha, a que mais freqüentou as nossas aulas noturnas. Não sei se vocês estavam a par disso, mas a verdade é que ela não faltava quase nunca.
Fulgêncio solicitou a palavra:
— Pois eu respeito as duas famílias há bem mais tempo, podendo dizer que Laurinha também freqüentava as nossas atividades religiosas noturnas, principalmente a reza do terço.
Wilsinho ousou uma observação:
— Os senhores nunca desconfiaram que era para se acostumarem os pais com as saídas da filha? Aposto que ela, nas noites em que não aparecia em um ou em outro lugar, tinha encontros...
Dona Flávia se dispôs a falar:
— Isso é verdade. A marota não aparecia antes da meia-noite e, quando não dizia que estivera no centro ou na igreja, afirmava que tinha estado trabalhando no restaurante.
Dona Vilma desejou pôr um ponto final no assunto, temerosa de que a chegada do filho acabasse ficando ofuscada:
— Pessoal, vamos ouvir o Teo. Eu estou muito curiosa. Afinal de contas, ele ficou nas mãos de terroristas.
— Vou ser breve, ou melhor, brevíssimo, e não vou repetir nada que os jornais e as televisões tenham divulgado. No momento em que o seqüestro foi anunciado, pude perceber que não eram suicidas. Essa idéia se confirmou quando um deles me mandou baixar a cabeça, para não encará-lo. Se quisesse jogar o avião sobre algum alvo, não se importaria com isso. Tive dó de algumas pessoas que ficaram nervosas, havendo quem passasse mal. Felizmente, havia médicos a bordo, com valises de emergência para casos cardiológicos. O momento em que todos ficamos mais apreensivos foi o da aterrissagem, já que a pista era bastante precária, tanto que terminou por arruinar o trem de pouso, impedindo que o comandante alçasse vôo de lá. Entre os jogadores e dirigentes, poucos precisaram tomar calmantes. Eu mesmo fiquei mais preocupado em mandar notícias para vocês, achando que o noticiário poderia assustar, já que o acontecimento era absolutamente inusitado no Brasil. Parece que tudo ficou bem esclarecido, já que os seqüestradores foram presos a poucos quilômetros da pista. Bem que dois caças da Força Aérea passaram em vôo rasante. Devem ter surpreendido a caravana dos caminhões embrenhando-se na mata.
Renildo, que prestara muita atenção em Teotônio, desejou fazer uma ponderação:
— Gente, eu fiquei muito impressionado com o sangue-frio do time, porque era de se esperar que a qualidade do jogo ficasse altamente prejudicada. Ao contrário, todos se apresentaram muito bem, tanto que venceram o torneio na Espanha, tendo sido convidados para as diversas partidas amistosas, em todas demonstrando que o episódio tinha ficado no esquecimento.
Teotônio, sorrindo, observou:
— O que o meu empresário está querendo dizer é que recebemos muitos euros a mais do previsto. Veja a alegria incontida dele. Não sei, não, mas imagino que, se ele estivesse naquele vôo, estaria contando outra história.
— A história podia ser outra, mas os euros seriam os mesmos...
O momento de descontração aliviou as tensões e se deu uma avalanche de perguntas a que tiveram de responder Teotônio e Rosinha, nenhuma que afetasse a ambos quanto ao prazer de estarem com os parentes e amigos.
No meio da tarde, todos já haviam partido, para deixarem o casal de pombinhos arrulhando a sua felicidade.



13. TRAÇANDO DIRETRIZES

Antes de jantar, Teotônio e Rosinha puseram em dia os assuntos, cada qual jurando ao outro que não se separariam mais, fosse lá por que motivo fosse.
Rosinha, entretanto, ponderava:
— A gente está tomando uma decisão que não podemos sustentar. Você tem estado concentrado para as partidas, deixando-me sozinha.
— É verdade. Dificilmente, iriam compreender que eu me recuse a passar uma ou duas noites ausente de casa. Consta do contrato e este eu não tenho como alterar. Já pensou a bagunça que se estabeleceria no meio futebolístico, caso me dessem esse direito?
— Quando nós nos reunimos, as mulheres dos jogadores, muitas vezes, se queixam do isolamento. Todas ou quase todas trazem as mães para ficarem com elas, se é que já não moram juntas.
— Você se sentiu segura com sua mãe?
— Tomamos muitas precauções, mas eu acho que ela não iria gostar de morar definitivamente conosco. Toda vez que ela queria sair para qualquer coisa, ficava aflita, resmungava, se punha na cozinha a descascar os legumes, invariavelmente fazendo algum refogado bem picadinho.
— Vocês não estavam presas.
— Não estávamos, mas minha mãe não tinha como ir à igreja sem me levar junto. Por isso, muitas vezes, aparecia a sua mãe, para dar folga à minha. Aí, ela ia às reuniões com as beatas e, quando voltava, vinha de ânimo novo, mais alegre, trazendo novidades.
— Minha mãe não levou você a lugar algum?
— Claro que levou, mas sempre com seu pai conduzindo a gente. Acabei conhecendo todos os restaurantes chiques da região.
— Então você se esbaldou...
— As primeiras vezes serviram para me distrair. Depois nós não entravávamos em nenhum lugar público sem que me reconhecessem. Passou a ser um inferno. Quando você está comigo, tudo bem: o assédio recai sobre você. Com os velhos, parecia que só eu existia. Até autógrafo vieram pedir-me.
— O que diziam, em geral?
— Você está querendo badalação? É claro que elogiavam você.
— Ninguém jamais lembrou o seu seqüestro?
— Só alguns repórteres, que seu pai delicadamente fazia que fossem embora. Sem ele, eu não saberia o que fazer.
— E o segurança do clube?
— Eu sei que havia mais de um rondando por perto, mas nunca impediram ninguém de falar comigo; só o seu pai.
— Por falar no meu pai, ele bem pode mandar algum soldado ficar vigiando o prédio.
— Durante todo o tempo, uma viatura policial esteve estacionada junto ao edifício.
— Excesso de zelo. Não sei que perigo você corria. Será que os comparsas daquele bandido estariam preocupados com o que você poderia contar? Não acredito: ele foi indiciado por crimes muito mais graves do que simples invasão domiciliar e roubo de alguns objetos. De verdade, com ele foram encontradas três camisas minhas e as calças. O mais estava em poder de sua prima. Pelo menos, foi isso que disseram os policiais que efetuaram a prisão.
— O que foi que você trouxe pra ela?
— Pode parecer estranho que eu tenha pensado em dar um presente pra quem desejou fazer tanto mal a você.
— Estranhíssimo, principalmente porque você estava a par de tudo o que ocorreu de verdade.
— Você vai entender o meu raciocínio. Além do fato de que, pra subirmos a outro patamar evolutivo, temos de nos reconciliar com os inimigos, como nos ensinou Jesus, também existe um ser humano que precisa ser resgatado das mãos do mal.
— E o presente vai servir pra...
— Queria abrir uma passagem para o coração de sua prima. Talvez ela já esteja arrependida. Com a lembrança que vai receber, irá refletir sobre a injustiça que cometeu em relação a você.
— Eu nunca imaginei que ela estivesse com raiva de mim. Seria inveja?
— Eu não gostaria de fazer suposições. Se eu trouxe alguma coisa pra ela foi com o intuito de criar um motivo pra gente se encontrar.
— Você irá sozinho.
— Talvez vá, talvez, não. Depois a gente vê.
— E o que era que continha aquele embrulho pesado?
— Uma escultura em aço inoxidável, representando uma âncora com longa corrente.
— Não entendi.
— É um objeto um tanto misterioso, porque, no lugar das pontas que servem pra prender o navio ao solo, existem duas bolas que não segurariam a embarcação. O artista é um tanto hermético...
— Como assim?
— É difícil de decifrar a intenção dele. Fica mais ou menos para a imaginação das pessoas a interpretação da obra. Eu mesmo não entendi direito, a não ser que paguei quase dois mil euros pela peça.
— A minha prima vai passá-la nos cobres pra fabricar sonhos e devaneios.
— Pensei nisso. Mas ela não tem noção do preço que paguei. Vender a peso é bobagem. Espero que ela coloque em cima da cômoda do quarto, para ver todo santo dia e lembrar-se do que fez. Entender ou não o que significa não tem muita importância.
— E você quer conversar com ela pra quê?
— Quero esclarecer as relações dela com meu pai. Não fiquei satisfeito com as explicações que ele deu. Como ele escondeu por muito tempo o que sabia a respeito da moça, talvez não tenha dito tudo. E isso me preocupa, principalmente porque aquela voz misteriosa no telefone disse que poupou a vida dele por minha causa. Suspeito de que, se eu for jogar em algum time estrangeiro, como tudo indica que farei, aí o assassino não terá mais motivo de me aliviar os sentimentos.
— Santo Deus! Você está indo longe demais. O que você está sugerindo é que o seu pai pertencia à mesma quadrilha do falecido Cabo Farias.
— Nem mais, nem menos.
— Você citou palavras de Jesus. Não disse ele também que devemos respeito ao nosso pai?
— Será que disse ou foram os evangelistas que inventaram isso?
— Se você pensa realmente assim, querido, que outras coisas pra você teriam sido inventadas por eles?
— É porque não quero inventar nada que estou buscando a verdade.
— A crer-se no que os espíritos disseram a Kardec, toda verdade, um dia, será revelada.
— Foi Jesus quem disse que era o caminho, a verdade e a vida. E que ninguém vem ao Pai a não ser por ele.
— O que você tem a ganhar com a descoberta do envolvimento maior ou menor de seu pai...
— Vou ganhar sossego espiritual, porque não creio que ele tenha culpa no cartório.
— Não dá na mesma saber ou não saber? Você não irá deixar de amá-lo. Vai?
— Não vou, mas, se ele estiver envolvido, terei de esforçar-me por cativá-lo para o bem, usando de todos os meus recursos. O que me tem sustentado é o pensamento de que ele é uma boa pessoa, conforme me assegurou Vieira.
— Desde quando a opinião do velho espírita é mais valiosa do que a do filho?
— Não é mais valiosa, tanto que até dele suspeitei.
— Sabe o que eu penso que você está fazendo?
— O quê?
— Está tentando driblar os fantasmas que criou, como os adversários que enfrenta no campo.
— Você não se esqueça de que não foi só você quem ficou presa no banheiro. Esqueceu-se do caso dos travestis que me perseguiram no hotel? Pois foi de dentro do banheiro que liguei pro meu pai.
— Com a diferença de que você se fechou pra escapar dos agressores e eu fiquei trancada por eles.
— Eis uma boa maneira de interpretar a escultura da âncora com as bolas nas extremidades.



14. O HOMEM PÕE E DEUS DISPÕE

Quando Rosinha expôs à mãe que o marido queria encontrar-se com Laura, Dona Flávia se surpreendeu:
— Não sei se ela vai querer. Aquele presente que ele trouxe da Europa pra ela só não foi pro lixo porque sua tia desconfiou que Laura não gostou dele e ficou atenta. Quando foi colocar os sacos de lixo fora, notou o peso e não deu outra: lá estava a âncora. Se ele aparecer por lá, não vai ser bem recebido. Por que ele não escolheu qualquer objeto de uso, uma sombrinha, um casaco, uma jóia?...
— A senhora sabe quanto custou a escultura?
— Não deve ter sido barato mas eu mesma não vi nenhuma utilidade nela.
— Quase dois mil euros. É uma obra de arte. Aposto que ela sequer suspeitou o trabalho que deu para trazê-la, por causa do peso.
— Pois agora sua tia colocou-a no fundo do guarda-roupa, bem escondida.
— Não diga o preço pra ninguém. Talvez essa revelação possa fazer com que queiram vender a peça.
— E quem vai querer comprar?
— Sei lá. Uma loja de antigüidades, talvez. Alguém que possa revender para algum ricaço.
Ao tomar conhecimento do destino do presente, Teotônio não se abalou:
— Rosi, eu acho que posso tirar proveito da situação, quando for falar com ela.
— Eu já estou querendo ir junto, porque o que ela fez foi uma desfeita, um desrespeito...
— Não tire conclusões apressadas. Ela bem pode ter percebido a minha intenção de colocar à vista uma recordação do ato sujo que praticou.
— Mandasse devolver o presente. Jogar fora é que não está certo.
— É verdade que é algo bastante agressivo. Mas a minha atitude também foi, segundo o parecer dela. O que sua mãe falou a respeito do humor dela?
— Pela Laura, ela não estaria mais morando lá. A presença de minha mãe parece que a afeta muito. Os meus tios não têm voz pra nada. Estão ainda atordoados com o passado da filha. Ela só não foi embora porque sabe que a polícia está de olho.
— Se não forem os membros da quadrilha, porque ela é um arquivo ambulante e pode dar com a língua nos dentes a qualquer momento. É muito mais provável que a vigilância parta deles. E, se houver policiais metidos com os marginais, aí tudo se une de uma vez. Cada vez mais estou convencido de que preciso falar com ela a respeito do meu pai.
Naquele mesmo dia, Renildo solicitou-lhe uma entrevista em caráter de urgência: havia oferta imperdível para trabalhos de propaganda.
Já ao telefone, Teotônio impôs uma condição:
— Bebidas e cigarros, nem pensar.
— Material esportivo.
— Encontre-me depois do treino. A gente conversa a caminho de casa.
— Tudo bem, mas eu vou prevenindo que a conversa pode ser longa.
— Você almoça comigo e depois seguimos juntos para a escola. Assim, a Rosinha vai poder opinar.
— Ótimo! Ela é muito ajuizada.
De fato, o assunto iria demandar o parecer da mocinha.
No carro, Renildo demonstrou as vantagens primeiro:
— Trata-se de um contrato com exclusividade. Você não vai poder envergar nenhum material esportivo que não seja daquela marca. Não se assuste, porque se trata do mesmo patrocinador do clube.
— Neste caso, os outros jogadores vão querer parte do bolo.
— Os advogados da empresa me disseram que não é difícil de contornar o problema. Não se esqueça de que eles já possuem o chamado Direito à Imagem.
— E se eu for convocado para uma seleção qualquer. Existe a possibilidade.
— Haverá uma cláusula no contrato quanto a isso.
— Mas se houver conflito de marcas?
— A cláusula irá prever a situação, de modo que você poderá pleitear uma suspensão do contrato. O Doutor Rosalvo vai dar-lhe assistência jurídica, com certeza. Não se preocupe. O importante é saber que, no primeiro ano, você irá receber por volta de quatro milhões de dólares.
— Livres? Quer dizer: sem interferência da Receita Federal?
— Está claro que haverá os meus honorários e outras despesas forçadas. Se for preciso, eles cobrirão uma parte dos impostos e você poderá declarar o total do que receber. Não se esqueça de que a campanha terá caráter mundial, o que implica em que você deverá ser conhecido por toda a parte.
— Viagens?
— Sempre que possível, ressalvados os direitos do clube.
— Tudo pago?
— Está implícito.
— Rosinha?
— Acompanha o marido.
— Meus estudos?
— Esta é a parte mais frágil. Como lhe disse antes relativamente ao contrato futebolístico, o contrato comercial será tão rentável, tão rico, tão...
— Já entendi: poucos advogados poderão sequer aproximar-se do meu ganho.
— E você poderá contratar uma equipe completa para repetir-lhe as lições perdidas...
— Realmente, precisa que Rosinha opine a respeito.
Durante o rápido almoço, frugal como sempre, Rosinha fez algumas ponderações preciosas:
— Teo, se você acha que vai valer o que lhe disser, então eu digo.
— Diga, querida.
— Você está tendo uma oportunidade única. Sem ser pessimista, vamos supor que você sofra um acidente, como poderia ter sofrido no avião. Vamos construir a nossa vida bem solidamente. Assentada a condição financeira, o resto vai encaixar-se às maravilhas. Somos muito jovens. Nem completamos os dezoito anos. Isto é um privilégio para muito poucos. Se não aproveitarmos agora, poderemos arrepender-nos mais tarde. Depois, podemos esclarecer todas as nossas dúvidas através da contratação de pessoal especializado.
Teotônio entendeu que ela falava do problema com o sargento e a balconista. Renildo pensou no diploma acadêmico.
— Renildo, você não vai precisar acompanhar-nos ao colégio. Está liberado para tomar todas as providências que julgar necessárias. Se for possível, livre-me umas dez ou quinze tardes por mês para assistir às aulas.
— Teo, não posso prometer-lhe nada mas vou empenhar-me. Caso isso possa tornar-se um obstáculo ao negócio, vou deixar essa hipótese de lado.
— Faça o que julgar melhor.
Depois que ele se retirou, Rosinha acrescentou, falando baixinho para a copeira não ouvir:
— Vamos poder comprar uma casa bem grande, com várias dependências externas separadas por muros, para abrigar a sua e a minha família, com todo o conforto. Todos nós vamos esquecer os tempos que vivemos sob a ameaça dos marginais da pobre Favela do Corisco, de tão tristes lembranças. E poderemos ajudar as obras assistenciais do Padre Fulgêncio e do velho Vieira.
Depois de alguns momentos de reflexão, enquanto se aprontava para sair, Teotônio se manifestou a respeito:
— Eu sei que seu pobre irmão foi vítima daquela conjunção de circunstâncias adversas. Mas é preciso que a gente cuide para não perdermos as nossas raízes culturais. Se estou desejoso de praticar a advocacia, é para prestar serviço aos fracos e oprimidos, ainda mais agora que o dinheiro vai jorrar.
Rosinha ficou com vontade de beijar o esposo, no entanto, apenas mostrou-lhe o relógio, para que visse que estavam atrasados.



15. A CONVOCAÇÃO

Com a figura estampada em quanta revista no mundo ocidental constitui fator de promoção dos produtos esportivos, Teotônio foi brindado com sua convocação para o selecionado nacional dos atletas profissionais.
Foi de ver-se a reação de Wilsinho:
— Querido, agora você vai saber como é aborrecido ficar no banco de reservas.
— Sai dessa, mano. Só porque isso aconteceu com você...
— Se aconteceu comigo na Sub-15, na de adultos vai ser pior ainda.
— Eu sei que muitos que foram levados pelos técnicos pra lá nem estrearam, antes de várias convocações. Mas existem também os que brilharam desde a primeira vez.
— Você deve saber mais do que eu, no entanto, quase sempre, a estréia dos mais jovens se deu por contusão dos titulares. Ou você se considera titular?
— Quer saber de uma coisa: você está com uma tremenda inveja.
— Só estou provocando, para tirar você das nuvens. Não se esqueça de que eu tenho mais experiência.
— Pode deixar que não vou querer o lugar de ninguém. O que está me forçando a ter esperança é a imprensa.
— Simpatia não lhe falta, ainda mais que as fotos da propaganda estão caprichadas.
— Falando sério, Wilsinho, você me ajudaria a formular uma prece de agradecimento ao Senhor?
Ambos se concentraram e, de mãos dadas, oraram contritamente, fazendo questão Teotônio de solicitar ao Pai que lhe permitisse ajudar os torcedores a compreender que a vida dos predestinados ao sucesso lhes acarreta sacrifícios de caráter moral.
Estavam ambos enternecidos ainda com as vibrações que haviam emitido em solidariedade às pessoas em geral, quando foram abruptamente sacudidos por gritaria que empolgava o estádio lotado.
Da frente do vestiário, partiu um aviso:
— Pessoal, vamos sair daqui, que aconteceu uma tragédia lá fora.
Calmamente, Teotônio pegou suas roupas do armário e colocou-as nas mãos do irmão, recomendando-lhe:
— Não se assuste. O pânico é o pior inimigo nas horas difíceis. Venha comigo.
Enquanto os companheiros corriam na direção da saída para a rua, entupindo o corredor, os irmãos seguiram para o campo, encontrando a escada desobstruída. Subiram rapidamente os degraus e se depararam diante da multidão que tinha invadido o gramado.
Não havia policiais nem seguranças do clube por perto. Teotônio quis avaliar a extensão do desastre, logo percebendo uma falha nas arquibancadas, de onde partiam os gritos mais desesperados.
Wilsinho puxou o irmão pela camisa, tentando impedi-lo de ir ao local de maior concentração de pessoas.
— Não vá até lá. Deixe que o povo cuide dos feridos. Vamos reunir os jogadores lá embaixo: não existe nenhum perigo para eles.
— Bem pensado. Você desce e avisa. Eu vou prestar socorro aos que caíram.
Não houve como segurar Teotônio, que empurrou o irmão, mostrando-lhe o caminho da volta:
— Vá logo. Anda.
Ato contínuo, deu-lhe as costas e avançou para o meio dos torcedores alvoroçados, perdendo-se no meio deles.
Wilsinho resolveu que não deveria mover-se de onde estava. Sabia que os que se descontrolaram não ouviriam explicações. Acreditava que, do lado de fora, teriam como saber a verdade, já em segurança.
Foi quando percebeu que poderia acompanhar os acontecimentos através da transmissão dos canais de televisão. Lembrou-se de que havia um aparelho destinado aos técnicos e dirigentes e desceu de volta, desta vez dando de frente com os responsáveis pelo clube que se dirigiam para o campo.
Foi o próprio presidente da agremiação quem lhe deu a ordem:
— Wilsinho, na rua está uma loucura. Venha conosco. Estamos indo ver se conseguimos controlar o tumulto.
De fato, atrás deles vinha um contingente de soldados, dentre os quais reconheceu dois ou três colegas de farda do pai.
Nesse meio tempo, Teotônio já estava próximo à parte do alambrado derrubado pela multidão imprensada nele. Instintivamente, pegou o primeiro ferido que não podia caminhar e carregou-o para o centro do campo.
Logo as pessoas ao redor estavam fazendo o mesmo com outros machucados, impedindo que os desesperados os pisoteassem.
Não demorou para chegarem as primeiras ambulâncias, com médicos, paramédicos e enfermeiros. Também a polícia conseguiu estabelecer cordão de isolamento, enquanto os dirigentes do clube se dirigiam ao público através do serviço de alto-falantes, solicitando que permanecessem em seus devidos lugares, porque o desastre tinha atingido pequena parte das arquibancadas.
Teotônio sentiu que as pessoas passaram a socorrer os feridos, esquecidos da possibilidade de sofrerem outros acidentes. Foi quando resolveu examinar os que estavam em piores condições, largados em meio ao entulho do desmoronamento.
Alguns estavam mortos, entretanto, havia outros apenas inconscientes, muitos esvaindo-se em sangue. Conseguiu estancar a hemorragia de cinco torcedores, improvisando torniquetes nos braços ou nas pernas. Aos que se contorciam em dores, dizia palavras de esperança, ao mesmo tempo que despachava, em busca de ajuda médica, os que se puseram a auxiliá-lo.
De repente, em estado lastimável, encontrou o Professor Ernesto, que apontou para uma viga próxima, pedindo-lhe quase sem voz:
— Cuide dos meus filhos. Eles estão presos ali.
De fato, havia os corpos de duas crianças. Teotônio verificou que estavam sem pulso. Enquanto deixava escorrer um pranto surdo e pesado, tentou, como último recurso, enquanto orava mentalmente solicitando um milagre de Jesus, a massagem cardíaca, alternada com respiração boca a boca.
Estava há quase cinco minutos executando o ressuscitamento do mais novo, quando chegaram alguns bombeiros, que ocuparam o seu lugar, trazendo equipamento próprio.
Voltou-se Teotônio para o professor, fazendo questão de acompanhá-lo junto à maca em que o conduziram para uma ambulância. Estava desfalecido. Ainda pôde o rapaz observar que os meninos tinham sido colocados em balões de oxigênio, o que indicava que estavam respirando.
Criou ânimo, então, para voltar ao local em que se achavam os mais aflitos. Percebeu que eram membros da torcida uniformizada do clube. Um deles chorava, com o braço enfaixado por um pano cheio de sangue.
Teotônio aproximou-se dele, ajoelhou-se ao seu lado, perguntando-lhe:
— Você acredita em Deus?
Não esperou pela resposta.
— Pois eu vou pedir a ele para mandar um protetor, que irá conduzi-lo ao seu reino de amor.
Enquanto orava, Teotônio descobriu o ferimento, observando que havia necessidade de torniquete. Ao levantar-lhe o braço, sentiu resistência: ele estava pressionando o abdômen, como a sofrear algum sangramento interno. Imediatamente, Teotônio determinou a remoção do rapaz, tendo sido atendido pelas pessoas que vinham acompanhando-o.
Caminhando na frente, Teotônio foi abrindo caminho, avisando o primeiro médico do que se tratava.
— Pode deixar comigo, Teo. Vou levá-lo para o helicóptero.
Só então é que o moço viu que haviam chegado três helicópteros com o símbolo da cruz vermelha pintado nas laterais.
Nesse vaivém ficou por mais de hora e meia, até que não havia mais nada que pudesse fazer.
Quando o próprio presidente da agremiação veio buscá-lo, o estádio todo passou a ovacioná-lo como a um herói.
— Doutor, o que está acontecendo?
— O povo está aplaudindo você.
— Eu não fiz nada de especial.
— Talvez não, mas a verdade é que todos os seus passos foram acompanhados pela televisão e projetados no telão do estádio. Vamos dar uma volta olímpica, para que você possa agradecer a todos.
Quando se aproximou do irmão, lavados ambos em lágrimas, abraçaram-se emocionados, tendo-lhe Teotônio sussurrado ao ouvido:
— Wilsinho, acabo de receber uma convocação para jogar na seleção de Deus.



16. SOBRESSALTOS

Na noite da terrível tragédia, em casa, depois que todos os parentes e amigos se retiraram, Teotônio e Rosinha refletiram sobre os acontecimentos.
Haviam visto a gravação de vídeo realizada pela jovem desde a abertura da transmissão dos eventos no estádio até o momento em que Teotônio foi substituído, aos dez minutos do primeiro tempo, conforme havia combinado com Santoro.
— Rosi, você observou como me mantive apático nos minutos em que participei do jogo?
— Achei muito natural, depois de tudo que você enfrentou. Eu nem sei como é que você concordou em entrar em campo.
— A turma toda considerou que seria muito justo pra torcida que me homenageou. Ninguém me pediu pra fazer nada, tanto que não me passaram a bola nenhuma vez. Só me permitiram bater a falta que resultou no único gol da partida.
— Foi um belo chute.
— Foi um acaso. Queria colocar a bola na cabeça de algum companheiro e ela desviou para o fundo das redes. Foi sem querer.
— No entanto, você foi consagrado, tendo o estádio todo aplaudido a jogada de pé, inclusive os torcedores do time adversário.
— Pura sorte.
Nisto, o celular do rapaz recebe uma chamada.
Teotônio examinou a procedência da ligação mas não reconheceu o número apontado.
— Pronto!
— Caro amigo, desculpe-me por chamá-lo em hora tão imprópria.
Teotônio estremeceu ao reconhecer a voz, mas não perdeu a compostura:
— Estou falando com o mesmo que me ameaçou um dia?
— Está. Ouça bem. Eu e meu grupo decidimos que você irá ficar sob os nossos cuidados especiais.
— Não se preocupem comigo.
— Eu disse pra me ouvir. Você manteve vivo um dos nossos, por isso estamos muito agradecidos.
— Como você conseguiu este número?
— Isso não importa. No que depender da gente, nunca mais vamos ligar. Adeus.
Não houve tempo para mais nada. Teotônio ainda tentou retornar a ligação, porém, a chamada não obteve resposta. Uma pesquisa simples e a companhia telefônica informou que se tratava de aparelho público, em determinado shopping.
Rosinha, que havia acompanhado as reações do marido, logo percebeu que algo não estava bem:
— Você acaba de receber nova ameaça?
— Ao contrário. Eles estão me oferecendo proteção gratuita. O cara disse que eu salvei um do grupo.
— Então, é só ficar sabendo o nome de cada um dos que você ajudou e logo vamos...
— Com certeza, o grupo a que ele se referiu é o da torcida organizada. Quase todos, acho que com exceção só do Professor Ernesto, pertencem à torcida.
— Então o seu pai vai poder resolver esse mistério.
— Não vou envolver meu pai nisso. Ele está falando em se aposentar, mesmo sem completar o tempo de serviço. Vai pela proporcional. Afinal de contas, o nosso plano de dar moradia a todos vai permitir que ele abra uma casa de comércio, se quiser. O melhor é eu ficar atento para as pessoas que ficarem me vigiando.
— Eu sabia, Teo, que a sua projeção teria alguma conseqüência. Você é um homem público: vai ter de sofrer o assédio das pessoas mais ainda do que antes.
— Se eu merecer a atenção dos espíritos protetores, como hoje à tarde no estádio, posso dizer que a minha vida não irá se limitar aos gramados.
— Se você quiser a minha opinião, também não vai ficar no campo da advocacia, junto aos tribunais.
— Está sugerindo que eu escolha outro curso?
— Qualquer curso que termine servirá apenas para colocar um diploma na parede.
— O que você está dizendo deve ser o resultado de muita reflexão. Você deve vir pensando sobre isso há tempos.
— Desde que começou a entrar o dinheiro das propagandas.
— E quanto aos seus estudos?
— Eu não preciso me formar em nada. Basta tomar conta de você, ouvindo as suas queixas e partilhando as suas alegrias e emoções.
Antes que se abraçassem comovidos, soou de novo o telefone.
— Vieira?
— Eu mesmo. Teo, estou indo buscá-lo a pedido do Ernesto. Ele quer falar com você antes de desencarnar.
— Está tão mal assim?
— O médico me autorizou a chamá-lo. Acho que ele não deve estar bem. Eu não tive acesso ao quarto. Só deixam entrar uma pessoa por vez e a família tem prioridade.
— Você não quer que eu vá de táxi?
— Pode ser. Eu pensei em ir pegá-lo para evitar os transtornos de você sair à rua.
— Os porteiros já estão acostumados a deixar os motoristas descerem até a garagem. Qual é o hospital?
— Hospital das Clínicas da Universidade.
— Daqui a meia hora estou chegando. Até já!
— Até!
Rosinha percebeu que se tratava deu seu professor de filosofia:
— Eu também vou.
— Está certo, mas não demore a se aprontar.
Dentro de quinze minutos, Teotônio estava ligando para o porteiro de plantão para arrumar-lhe um táxi. Mais alguns minutos e lá foi o casal, permanecendo ambos calados, precisando dar atenção ao motorista, que solicitava esclarecimentos quanto às vítimas do acidente no estádio.
— Eu só ouvi dizer que o senhor salvou muitas pessoas. Faz doze horas que estou na praça. Deus o abençoe!
Quando chegaram, o homem não quis receber o valor da corrida:
— Vão com Deus! Eu vou rezar pelo seu amigo.
Teotônio fez questão de apertar-lhe a mão:
— Fique com Deus!
Vieira estava junto à porta. Vendo-os, aproximou-se:
— Muito obrigado por vocês virem.
Foi Rosinha quem respondeu:
— É o mínimo que podemos fazer.
— Venham comigo. Os funcionários foram avisados de sua presença, de modo que a gente vai poder entrar sem burocracias. Vamos direto para a sala do médico responsável pela emergência.
De fato, todas as portas foram abrindo-se, enquanto choviam sorrisos e palavras de reconhecimento e incentivo.
Na sala do plantonista, este esperava o rapaz com discurso preparado:
— Afastei todos os parentes para evitar comoções inúteis. Eles estão na sala de espera. Nós vamos pelo corredor interno. A mocinha é parente?
Vieira se adiantou:
— É a esposa do Teo, Rosinha. Ela também é aluna do Ernesto.
Rosinha completou:
— Aluna e amiga dele e da família.
Teotônio perguntou sobre os garotos.
— Estão melhor que o pai, embora tenham sofrido uma parada cardíaca. Disseram que foi você quem fez a massagem e providenciou a remoção dos enfermos.
— Foi o professor quem me indicou onde estavam. Se corresse por minha conta, teriam morrido.
O médico complementou:
— O pai está meio sedado mas consciente. Está sem dor. Eu acedi ao pedido dele de vê-lo porque espero que ganhe novo ânimo para viver. Se você agiu com tanta sabedoria no meio daquela balbúrdia, irá agora poder revigorar o amigo.
— Vou fazer o possível. Por favor, doutor, deixe a Rosinha entrar comigo.
— É de todo recomendável que o paciente não se emocione demasiado. Pode ter aumento de pressão. Eu, inclusive, vou entrar na frente para prepará-lo para vê-los.
E assim se fez.
Quando Teotônio e Rosinha entraram, encontraram um quadro de desolação. Os enfermeiros estavam monitorando as reações do enfermo, atentos para os sinais dos aparelhos que se ligavam a ele. Havia uma vasilha de soro com longa haste ligada ao dorso da mão do professor. A cabeça estava totalmente enfaixada, permanecendo as pernas mais elevadas em relação ao tronco. Um cheiro intenso de medicamentos, misturado com o odor fétido de material orgânico em putrefação, obrigou os recém-chegados a procurar de onde provinha, já que havia outros três leitos ocupados.
Teotônio aproximou-se do leito, observando que Ernesto estava respirando normalmente. Voltou-se para o médico, perguntando-lhe:
— Doutor, não é o caso de deixá-lo em paz?
O sussurro por mais leve que fosse acordou o enfermo, que abriu os olhos ciente de encontrar o aluno:
— Teo, muito obrigado!
Não houve jeito de acalmá-lo naquele pranto generoso. Teotônio colocou sua mão sob a dele, esperando que o contato físico oferecesse a vibração de amor que as palavras não expressavam:
— Professor, o senhor deve pensar no futuro dos seus filhos. Eles vão precisar de seus cuidados, de sua presença, de sua orientação. Não se deixe abater nem espere...
Hesitava o discípulo. Não queria passar ao mestre a impressão de que estava dando-lhe uma lição. Calou-se, enquanto alisava os cabelos do paciente.
— Teo, as nossas conferências depois das palestras...
— Não diga mais nada, professor. Reserve suas forças para enfrentar a verdade que irá revelar-se após o decesso.
Olhou-o o outro com olhos arregalados. Depois de alguns segundos, refeito da surpresa, respondeu:
— Você tem razão. Estou prestes a descerrar as cortinas da morte. Você acha que irei encontrar-me perante a minha consciência, interrogando-me a respeito da vontade de Deus?
Sorriu o moço. Recordou-se de uma das primeiras questões que propusera ao orientador, questão que não fora respondida na época. De qualquer modo, ainda que não estivesse seguro da resposta, observou:
— O que vim pedir-lhe é que exerça seu livre-arbítrio, impondo a sua vontade ao impulso que está sentindo de admitir que, desencarnando, irá exercer o socorrismo espiritual junto aos seus filhos de forma muito mais eficaz do que se se mantiver vivo. Esqueça que existem muitos problemas filosóficos em torno da...
Não sabia como prosseguir. Notou, então, que o professor fechara os olhos, adquirindo sua face placidez cadavérica. Procurou pelo médico, assustado. Mas este simplesmente lhe apontou o registro do batimento cardíaco no monitor luminoso, que estava acusando movimento regular.
— Que aconteceu, doutor?
— Ele adormeceu. Podemos sair. Ele vai ficar bem. Os sedativos, finalmente, estão fazendo efeito.
— Então vocês não o anestesiaram...
— O que fizemos o tempo todo foi tentar tranqüilizá-lo, porque estava muito preocupado com os filhos, tanto que precisamos levá-lo na maca até eles. Foi quando cismou de chamar por você.
Já fora do quarto, Rosinha agarrou a mão do marido, apertando-a significativamente.



17. CARREIRA INTERROMPIDA

Foi durante um treino da seleção que Teotônio torceu o tornozelo. Foi grave a contusão, tendo rompido vários ligamentos e lesionado o tendão do calcanhar direito.
A primeira conseqüência foi que teve de ser submetido a delicada cirurgia. A segunda foi a necessidade de buscar fisioterapeuta de primeira categoria para colocá-lo o quanto antes de volta aos gramados.
Muito embora deixasse de receber as gratificações, o elevado prêmio que pagava pelo seguro lhe garantiu a manutenção dos vencimentos, inclusive o ressarcimento de todos os gastos médicos e hospitalares.
Também pôde atender a muitos convites para entrevistas, quase todas dadas em domicílio. Interrogado a respeito do que iria fazer para passar o tempo, informou:
— Terei três meses de descanso até a consolidação definitiva dos ligamentos. Depois, irei passar por sessões de fisioterapia, que prometem ser exaustivas e dolorosas. Ao mesmo tempo, deverei recuperar a tonicidade da musculatura, através de exercícios programados cientificamente pelo meus amigos da academia.
A repórter, antiga conhecida do atleta, insistiu:
— E nos intervalos dos cuidados com o físico, que atividades intelectuais vão absorvê-lo?
Teotônio procurou descobrir na fisionomia da moça com que intenção era feita a pergunta. Desconfiou de que ela sondava fundo, buscando estimular a revelação de alguma grossa novidade, desde que o pusera em contato com a noiva, ao vivo, no ano anterior, no episódio da invasão policial à casa dela, depois do tiroteio entre bandidos e policiais em que Arnaldo foi ferido. Então, falou a verdade:
— Vou estudar a doutrina dos espíritos exposta por Allan Kardec. Pretendo fazer por merecer conversar com certos espíritos, para inteirar-me de alguns fatos relativos à minha família. Sei que esta declaração irá causar arrepios em muitos torcedores que possuem outras religiões, a maioria das quais não aceita que isso seja possível. Para tanto, convidei meu amigo e orientador, Professor Ernesto, recuperado do acidente em que quase perdeu a vida, para me auxiliar aqui em casa, com um roteiro de providências com esse objetivo.
Se a repórter estivesse desconfiada de que as tais providências fossem no campo das investigações policiais, não demonstrou, tendo agradecido a deferência da atenção do rapaz, prometendo editar a matéria, sem causar mal-entendidos.
De fato, à noite, puderam Rosinha e Teotônio acompanhar um resumo de tudo quanto havia a repórter extraído do rapaz, eliminado o trecho em que comentou a respeito da consulta aos espíritos.
— Achei excelente o trabalho jornalístico, ressaltando apenas a minha pessoa enquanto esportista, deixando de lado os arroubos filosóficos ou religiosos.
— Também achei que foram bastante discretos, não evidenciando a sua figura de modelo fotográfico.
— Isso se compreende, uma vez que chamariam a atenção para o meu patrocinador, exercendo gratuitamente a propaganda dos produtos que são promovidos pela empresa a custo de muito dinheiro.
— Teo, quando você acha que vai poder deixar a cadeira de rodas?
— Você sabe que dentro de uns trinta dias, mais ou menos. Por quê?
— Acho que está na hora de chamar seu pai para combinarem a compra da casa ou do terreno em que você está querendo construir.
— Já sei a opinião dele. Enquanto você estava na escola, liguei e expus o meu plano. Ele descartou. Sugeriu que eu comprasse outro apartamento, maior do que este, com quatro ou cinco quartos, sendo duas suítes, e que levasse sua mãe para morar conosco. Ela poderia ficar encarregada do imóvel e da criadagem na qualidade de governanta. Que é que você acha?
— Desde o dia em que a Laurinha aprontou comigo, sempre que pode, ela me lembra de que, se morasse aqui, nada teria acontecido.
— Quer dizer que ela vai aprovar a idéia?!
— Com certeza. O que não sei é o que pode acontecer com meus tios, que não têm recursos para arcar com o aluguel, desde que minha prima deixou o emprego.
— Até isso meu pai previu. Ele disse que eu poderia comprar um apartamento de dois dormitórios, para ceder a eles de graça, ou melhor, mais do que de graça: com o compromisso de pagar a taxa de condomínio, até que possam arcar com essa despesa.
— Meu tio ganha muito pouco, quase um salário mínimo.
— Eles precisam abrir algum negócio. Pensei em comprar uma loja de qualquer coisa, como dessas que vendem artigos bem baratinhos. Seu tio ficaria com a gerência. Afinal de contas, ele é inteligente e trabalhador. Até sua prima poderia ajudá-lo. Os lucros seriam deles, para a manutenção do comércio.
— Você está mudando completamente de idéia.
— Mudando pra melhor. Mas tudo depende da aprovação deles.
— Por mim, tudo bem. E quanto à moradia para seus pais?
— Essa é a parte mais fácil: eles virão morar aqui. Fica bom para o Wilsinho e muito adequado pra minha mãe.
— Contanto que a gente fique morando perto daqui.
— Talvez quem nos vendeu este apartamento tenha outro nas condições ideais pra nós. Dentro de mais algum tempo, acho que antes de voltar a jogar, vou completar dezoito anos e aí vou comprar um carrão...
— Seja modesto.
— Não vou comprar um carro que chame a atenção, mas precisa que seja blindado e com sistema de segurança via satélite.
— Não se esqueça de que vamos precisar de motorista.
— Vamos precisar de dois, porque você também tem de ter um carro pra seu uso. Aliás, todas essas providências vou tomar nos próximos dias. O dinheiro dá pra tudo, ainda mais que o desconto do imposto de renda na fonte não sai do meu bolso. Por onde você acha que devemos começar?
— Pelos carros e motoristas. Depois, vamos comprar nosso apartamento. Se não for assim, seu pai não vai poder mudar-se e minha mãe vai continuar lá perto da favela.
— Você se esqueceu dos seus tios. Acho que amanhã mesmo vou pedir que Renildo examine a questão.
— Bem pensado.
No dia seguinte, logo cedo, atendeu Artur ao telefonema de Teotônio, que lhe expôs o plano da compra do apartamento e da loja de comércio.
— Teo, se você quer ajudar mesmo a gente, apesar do que minha filha fez à prima, vou conversar com Esmeralda e, antes do almoço, iremos até aí combinar tudo.
— Excelente! Estarei esperando.
Em seguida, Teotônio ligou para Renildo e lhe pediu que viesse encontrar-se com ele o mais urgente possível:
— Não faça mais nada. Eu quero prioridade absoluta.
Na verdade, Renildo havia concentrado sua vida profissional na orientação dos negócios do craque. Cuidava de mais alguns contratos antigos, mas dava o melhor de si a Teotônio, de olho no futuro promissor de Wilsinho. Sendo assim, logo estava lá, muito curioso por saber as novidades.
Em breves palavras, Teotônio deu-lhe conhecimento dos seus planos, perguntando ao final:
— Por onde devemos começar?
— Teo, você conversou seriamente com seu pai e com Rosinha. Mas há outras pessoas a serem envolvidas no projeto. Vamos colocar de lado a ajuda ao tio de Rosinha, já que ele deve estar vindo para cá. Quanto aos carros, enquanto existirem táxis e porteiros de edifícios, você estará sempre bem servido. Quanto a serem blindados e protegidos por sistema de alarme sofisticado, não vejo ninguém que possa querer fazer-lhe mal.
— No meio do trânsito é muito comum que bandidos ataquem os passageiros dos táxis. Ninguém está livre disso.
— Concordo, principalmente quanto a Rosinha. Mas os seqüestros se dão contra carros particulares. Nestes casos, porém, os marginais estudam muito bem suas vítimas. Você tem recebido alguma ameaça?
— É claro que não.
Omitiu o jovem que se dera o contrário, com o desconhecido que lhe ligara prometendo dar-lhe segurança.
— Então, meu caro, isso não é o mais urgente. Basta chamar as empresas que prestam serviços especiais, levando até acompanhante armado ao lado do motorista.
— Ouvi falar nisso.
— Vou providenciar o endereço da firma que me for recomendada por quem conhece. Enquanto isso, busco no mercado de automóveis quem pode satisfazer o seu desejo.
— Diga: a sua necessidade, porque não se trata...
— Tudo bem! Quanto ao apartamento maior, é mais fácil de achar. A sua idéia de consultar a pessoa que lhe vendeu este é boa. No entanto, nós só vamos fechar negócio depois de analisarmos muito bem todos os aspectos do imóvel, inclusive, os arredores e o sistema de proteção aos proprietários. Pelo que entendi, você não está querendo nada de alto luxo...
— Dispenso o luxo. Quero conforto e certa privacidade.
— Sugiro um apartamento de cobertura, de preferência um duplex simples, para que os empregados não fiquem circulando pelas áreas mais íntimas. Num andar, a cozinha, a despensa, a lavanderia, as dependências dos empregados, o vestíbulo para receber as pessoas. No de cima, as salas, os quartos e as suítes. Vamos ver o que eu consigo arrumar.
— Quanto vai ficar isso tudo somado?
— Menos do que você vai receber até voltar aos gramados.
— Isso representa quanto tempo?
— Seis meses.
— Vire essa boca pra lá!... Eu quero voltar em três ou quatro meses, no máximo.
— Pois eu acho que nesse tempo você vai ganhar mais do que irá gastar com todas as coisas.
O tema deu ensejo a que desenvolvessem alguns aspectos técnicos dos contratos. Estavam examinando as alterações que iriam propor ao clube, já que, por força da convocação para a seleção, os vencimentos deveriam ser aumentados, quando chegaram os tios de Rosinha.
Após os cumprimentos de rigor, Teotônio, colocando a mão no ombro de Artur, trouxe o tema à baila:
— Então?
— Teo, se você quer dar-nos uma velhice mais tranqüila, receba minha irmã em sua casa e nos devolva à cidade natal.
— Vocês querem voltar para o interior?
— Na verdade, nunca nos acostumamos aqui.
Esmeralda complementou:
— Está muito difícil de viver naquele inferno que virou a rua, depois que Laurinha...
Teotônio interrompeu-a:
— Entendo. O meu plano era adquirir um apartamento. Mas, se todos estiverem de acordo...
Artur precipitou uma informação:
— Laurinha não vai querer sair daqui.
— Vocês não a consultaram?
Esmeralda foi quem respondeu:
— Consultamos, é claro. Ela não disse nem que sim, nem que não.
Teotônio aproveitou para sondar uma idéia que vinha concretizando-se em sua mente:
— Ela está apaixonada pelo bandido preso?
Artur e Esmeralda vagaram o olhar pela sala, como se cada um esperasse que o outro elucidasse a questão. Fez-se um momento de silêncio em que se ouvia os sons vindos da cozinha, onde a empregada preparava o almoço. Finalmente, Esmeralda esclareceu:
— No começo, nós pensamos que ela estava tão estranha por causa dele. Só há alguns dias é que descobrimos que está sentindo falta da droga, tanto sente que o pai precisou conseguir um pouco de pó pra ela não ficar desesperada.
— Por que vocês não me disseram nada? Vamos providenciar a internação dela numa clínica de desintoxicação.
Artur, no entanto, se opôs veementemente:
— Jamais! Se ela se achar longe de nossa autoridade, irá fugir.
Teotônio insistiu:
— Se ela quisesse fugir, já teria ido. Além de maior de idade, tem suficiente experiência de vida para se virar sozinha.
Artur rebateu:
— Eu acho que, se ela botar o nariz pra fora da porta, os bandidos vão acabar com a vida dela.
Teotônio voltou à vaca fria:
— Quer dizer que você acham que vai ser melhor ela ir para o interior?
Esmeralda respondeu:
— Não temos certeza disso. Pra nós, vai ser bem melhor. Mesmo que nós fôssemos morar no apartamento que você disse, não iríamos ficar sossegados.
Tendo feito um gesto que assentia, Teotônio perguntou a Renildo:
— Você tem condições de procurar uma casa digna, em bairro de gente assentada, de preferência com um ponto de comércio?
Renildo queria mais informações do casal:
— Vocês estão de acordo que o seu comércio seja de miudezas?
Teotônio explicou:
— Eu não falei com eles a respeito dessa idéia.
Artur, porém, esclareceu:
— Eu estava pensando em abrir uma venda a varejo de água engarrafada.
Teotônio, num gesto de desafogo, bateu na perna e concluiu:
— Pois está feito. Vamos providenciar uma casa e um ponto de comércio no mesmo prédio. Só tem uma coisa: é importante que vocês aprovem. Sendo assim, devem estar prontos para ficarem em hotel ou pensão, ajudando Renildo a concluir logo o negócio. Vou pedir que Dona Flávia venha morar aqui com a gente e vocês, o quanto antes, tomem todas as providências necessárias.
O casal deixou-se abalar pelas emoções da hora, contudo, não tiveram tempo para grandes demonstrações, já que Teotônio, sem muita cortesia, se fez levar até a porta da sala:
— Vão agora para casa, porque vocês devem estar muito preocupados deixando Laurinha só com Dona Flávia. A gente se fala por telefone.
Assim que a porta se fechou, Teotônio impulsionou a cadeira de rodas de volta à sala. Renildo mal teve tempo de ajudá-lo.
— De qualquer modo, perguntou o moço, não lhe parece que as coisas estão caminhando?
— Quer que eu comece as pesquisas por lá ou por aqui?
— Quero que seja por aqui mesmo. Depois que eles viajarem, eu o aviso. Por enquanto, vamos ver se existe um bom apartamento nestas redondezas.
Antes que Renildo estranhasse o motivo de ser naquele mesmo bairro, Teotônio explicou:
— Quero manter contato com a minha família. Por outro lado, trazer Dona Flávia para morar comigo vai causar ciúme em minha mãe. Não se esqueça de que a minha idéia inicial era construir as nossas casas no mesmo terreno.
— Se eu achar um bom negócio longe daqui, também estarei preocupado em encontrar outro apartamento para seus pais, se possível até no mesmo edifício.
— Desde que não seja muito longe do clube.
— Com os automóveis e respectivos motoristas, todo lugar vai parecer geminado ao estádio.
— Você tem carta branca para agir. Confio no seu discernimento.
— Não precisa me acompanhar até a porta. Qualquer novidade, eu ligo.
Não passara ainda meia hora desde que Renildo havia partido, Teotônio recebeu uma chamada:
— Minha sogrinha do coração, em que posso servi-la?
— Artur e Esmeralda chegaram exultantes. Eles me contaram tudinho. Se você tiver um tempo pra mim, eu vou até aí conversar, antes que a Rosinha volte da escola.
— Alguma coisa muito importante?
— Sim.
— Então venha.
Nem bem colocou o fone no gancho, recebeu outra chamada.
— Mãe, bom dia!
— Bom dia, Teo! Seu pai me disse que vocês combinaram uma troca de apartamentos. É verdade?
— É. Vou mudar-me para um lugar maior, talvez um dúplex...
— O que é isso?
— É um apartamento que ocupa dois pavimentos do prédio.
— Eu conheço como duplex.
— E eu vou prestar exame vestibular no fim do ano. Um advogado precisa cuidar de pronunciar bem as palavras.
— E nós vamos morar nesse seu apartamento?
— Se não houver objeção.
— Mas vocês estão bem instalados aí.
— Vamos mandar os tios de Rosi de volta para o interior, com a filha e tudo. Aí, Dona Flávia vai ficar sozinha. Sendo assim, vamos trazê-la para cuidar da filha. Neste apartamento, o contato vai ficar muito próximo...
— Não saia de casa. Estou indo para aí já. Vamos acertar os ponteiros.
Não deu tempo para despedidas. Teotônio ouviu o clique do telefone sendo desligado.
De repente, sua vida se agitava ainda mais. Pensou que estivesse fazendo algo que iria ser benéfico para todos, mas estava encontrando resistência emocional justamente de quem deveria mais entendê-lo e apoiá-lo.
“Ainda bem que Rosi está comigo nesta empreitada.”
Mal terminou de refletir, entra a esposa meio espavorida:
— Recebi uma ligação da Laura. Ela está uma fera com a gente, dizendo que estamos indo à desforra e não sei quanta coisa mais. Matei as duas últimas aulas e vim correndo preveni-lo. O que foi que você disse aos meus tios?
— Eu apenas concordei com a idéia deles de comprar-lhes uma casa e ajudá-los a montar um negócio em sua cidade natal. A idéia partiu deles. Eu bem que perguntei se tinham consultado sua prima. A cavalo dado, como diz o povo, não se olham os dentes. A revolta dela mais confirma a necessidade de que vá para longe daqui.
A última parte do que disse o marido Rosinha mal ouviu, tendo ido para o quarto para trocar-se. Teotônio manobrou a cadeira e foi atrás dela, explicando:
— Sua mãe e a minha estão vindo para cá. Vamos colocar tudo em pratos limpos. Não se preocupe.
Rosinha não respondeu. Ficou evidente a Teotônio que ela estava extremamente irritada. Vendo que não alcançaria acalmá-la, o rapaz saiu do quarto, imaginando se não estaria a esposa influenciada por passar por aqueles dias. Lembrava-se das aulas de Biologia e da recomendação da professora para que os homens deixassem as mulheres em paz.
Abriu um livro ao acaso, dos muitos que se espalhavam por sobre os móveis, e se distraiu completamente, envolvido pela fantasia do autor. Só despertou para a realidade quando soou a campainha.
Entraram juntas as sogras, ambas denotando que não haviam passado pelo período da menopausa, tão agastadas vinham.
Vilma ficou com o filho na sala, enquanto Flávia foi em busca da filha.
— Mãe, que está acontecendo?
— Filho, eu estou achando seus planos muito mirabolantes. Você acha que é capaz, só porque esta cheio de dinheiro, de comandar a vida das pessoas?
— Nesta altura, já não sei mais nada.
Não deu tempo para explicar que desejava melhorar a vida de todos os mais próximos, antes de se aplicar à benemerência pública. Flávia entrou na sala puxando a filha pelo braço, exclamando:
— Quero que todos escutem o que se passou lá em casa, para que fiquem sabendo o inferno que estamos passando com a Laura.
Rosinha tentou contornar o problema:
— Ela foi ríspida comigo mas é compreensível...
A mãe atalhou-a:
— Compreensível, coisíssima nenhuma! Eu estava na sala e ela me proibiu de me aproximar do telefone. Eu ouvi tudo quanto disse. Enquanto falava, bufava, espumava. Parecia possuída pelo demônio. Ela me mandou ficar longe do telefone, ameaçando-me com a escultura da âncora. Eu fiquei apavorada e estou tremendo até agora.
Teotônio quis pôr cobro à enxurrada de palavras:
— O que a senhora sugere que eu faça?
Foi Rosinha quem respondeu:
— Retire a oferta que fez aos meus tios. Eles que cuidem da filha que não souberam educar.
Flávia, que começara um pranto surdo, não se agüentou:
— Você está me acusando de não ter dado educação ao seu irmão. Você acha que eu mereço isso?
As coisas estavam ficando muito complicadas e poderiam desandar para perigoso desagravo.
Teotônio, sem saber o que dizer, sugeriu:
— Está na hora de a gente rogar aos espíritos protetores que nos guiem e nos façam entender que todos estamos bem intencionados e queremos fazer apenas o bem.
Como por encanto, as mulheres se calaram, enquanto ele pedia, de maneira comovida, o auxílio das forças espirituais. Foi assim que puderam voltar a conversar de forma bastante mais construtiva, ao cabo da qual Teotônio pôde resumir algumas conclusões:
— Precisamos tomar as decisões estando todos os interessados presentes, até mesmo a Laura, se ela concordar. Vou avisar Renildo que se limite a encontrar os automóveis que lhe pedi, bem como os motoristas. Não vamos transformar Dona Flávia em empregada de luxo sem salário. Vamos consultar alguns médicos especialistas em desintoxicação, para sabermos se não será melhor deixar Laurinha internada numa clínica. Acima de tudo, vou estabelecer com Renildo e com meu pai expressiva quantia em dólares a serem fornecidos às famílias, para que se estabeleçam onde e como quiserem, se assim julgarem conveniente. Vamos almoçar?



18. PREPARATIVOS PARA A REUNIÃO

Renildo ficou bastante satisfeito com a notícia que Teotônio lhe passou. Diante dele, confessou:
— Não é por nada, não, mas eu não estava na minha procurando casas ou apartamentos. Meu negócio é cuidar de contratos. Achei excelente a solução de dar quarenta ou cinqüenta mil dólares a cada família, para que os empreguem do modo mais de acordo com eles mesmos.
— Meu caro, você disse quarenta ou cinqüenta; não seria melhor sessenta ou setenta? Não me parece que comprariam algo bom com tão pouco.
— Quando você me ligou, me informou aquelas cifras. Se quer aumentar, tudo bem. Transformo tudo em reais e deposito nas respectivas contas de seu pai e do tio de Rosinha.
Em seguida, o empresário e consultor relatou suas pesquisas referentes aos automóveis. Tirou da maleta inúmeros prospectos, expondo as vantagens e desvantagens de cada veículo. Ao final, argumentou:
— Não creio que haja no mercado um carro que satisfaça a todos os quesitos de segurança. É preciso encomendar um.
— Você está sugerindo que eu escolha um dos modelos e leve para reformar em oficina especializada em proteção?
— Investiguei e posso dizer-lhe que existem várias pequenas empresas que transformam veículos retirados de fábrica ainda sem acabamento em modelos exclusivos. Basta dizer quais os itens a acrescentar.
— Você acha que a melhor solução é essa?
— Sem dúvida, principalmente porque eles enviam seus representantes para a casa do cliente, estabelecendo o orçamento mediante as solicitações.
— Traga-me um desses representantes. Quero sondar a capacidade que têm de apresentar um produto altamente sofisticado, algo que possa competir com a indústria estrangeira.
— Eles podem dar ao carro nacional as mesmas características dos importados, sem provocar a cobiça dos ladrões de automóveis.
— Para quando?
— Para amanhã cedo.
— E quanto aos motoristas?
— Entrevistei doze e selecionei cinco, todos com muita experiência em servir a empresários. Na verdade, nenhum deles precisa de emprego. A agência é que os indicou quando eu disse para quem iriam trabalhar.
— Tenho medo de desgostar os rejeitados.
— Não tenha. Você é o patrão e também sua esposa. Ela deve estar presente, quando eu os trouxer para que vocês os conheçam. É só uma questão de simpatia, porque as referências que obtive de cada um são as melhores, tendo seu pai feito o favor de passar-lhes as folhas corridas de antecedentes criminais.
— Chame um a um nos próximos dias, no período da tarde, quando Rosinha está em casa. Nós não temos pressa. Quando tivermos dois definidos, você não precisará trazer os outros.
— Como queira. Acho que está bem pensado.
Vieram os cinco selecionados, no entanto, o casal não se decidiu por nenhum. Nesse meio tempo, Teotônio pôde conversar com o pai a respeito da situação que havia criado, tentando ajudar Artur e família.
— Filho, você está pondo a mão em vespeiro. Nada que fizer irá satisfazer o princípio da caridade, em relação a tal gente.
— Pai, se o senhor tiver outras informações...
— Não tenho mais nada a revelar. O que vai acontecer com o dinheiro que você der a eles, com toda a certeza, não vai alcançar o objetivo de lhes dar uma casa ou apartamento, aqui ou noutro lugar qualquer.
— Você acha que eles vão gastar em outras coisas?
— Teo, você já pensou que Laurinha pode estar devendo pros traficantes?
— Não me ocorreu. Ela estava com um deles, portanto...
— Pois esse tal de André, mesmo preso, exerce o mando do tráfico em sua região. Possui asseclas que estão dando proteção à namorada. Entrando dinheiro na parada, o pai vai querer comprar a liberdade da filha. Não basta mudar-se pra outra cidade. Onde estiverem, vão estar debaixo da mesma aflição. Se você comprar-lhes algum imóvel, eles irão vendê-lo, imediatamente e você estará financiando o amor bandido da moça.
— Se eu comprar qualquer imóvel, deixo no meu nome. Eles vão apenas ocupá-lo sem ônus algum. Aliás, não é o que acontece hoje, quando estão sob um teto que pertence à Dona Flávia?
— Essa alternativa você expôs a eles?
— Na verdade, a idéia que passei era de que iria presenteá-los com uma moradia melhor.
— Não vou dizer que sim nem que não. Mas se você afastar sua sogra do irmão e família, vai ter de trazê-la para viver em sua casa.
— Ou posso comprar outra propriedade para abrigá-la sozinha.
— Rosinha não vai deixar. Não se esqueça de que a mãe dela foi quem chamou o irmão, depois que o marido morreu. Eles estão muito ligados.
— Então, eu compro uma casa bem melhor que aquela em que eles moram e todos se mudam para longe da favela.
— Desde que a propriedade esteja no seu nome...
— Todas essas são possibilidades de entendimento. O que não quero é facilitar a vida dissoluta da moça.
— Essa está com muita sorte. Devia estar presa. A sua idéia de interná-la numa clínica de desintoxicação é boa, no entanto, a gangue do namorado vai ficar acompanhando tudo. Na hora certa, eles a levam embora.
— Mas ela não é tão importante assim.
— Não era até conhecer André. Agora, estando a par de tudo o que ocorre por dentro da quadrilha, no mínimo, representa grande perigo, principalmente porque, de alguma forma, está ligada a um herói nacional, que tem como pai um policial de carreira.
— Tudo quanto o senhor me disse está relacionado com o atentado que o senhor sofreu no ano passado?
— Evidente que está. Eu só fui poupado porque passei para o serviço interno, burocrático. Estivesse na rua e não estaria agora conversando com você.
— Quem é que está por trás disso tudo?
— Você está perguntando pra saber ou pra confirmar as suas suspeitas quanto a ser este ou aquele?
— Eu quero conhecer a verdade.
— Neste caso, não vou dizer-lhe mais nada, porque a curiosidade mata. Você está lesionado. Precisa descansar. Se ficar muito excitado com assuntos policiais, irá demorar mais pra que os músculos se restabeleçam.
— Prometa-me que, quando eu estiver de volta aos gramados, jogando e marcando gols, o senhor irá responder à minha pergunta.
— Claro que eu vou contar tudo um dia.
— Prometa nos termos que lhe pedi.
— Tudo como você quiser.
— Prometa.
— Quer que eu jure?
— Só prometa.
— Prometo. E, quanto ao apartamento cujo dinheiro você vai me dar, você não acha justo que eu compre no mesmo prédio do seu?
— O senhor vai querer o dinheiro ou vai apenas morar numa propriedade minha?
— Teo, a minha idéia era ter algo pra deixar pro Wilsinho.
— Pai, o meu irmão, não vai demorar, vai ser tão rico ou mais que eu. O futuro dele no futebol está mais do que assegurado. Mas eu lhe passo o que o senhor quiser comprar para o seu nome. O que não vale pro tio da Rosi, vale pro senhor. Está bem assim?
— Está e não está. Tenho de ouvir a sua mãe.
Ouvida esta, Teotônio foi comunicado de que deveria, segundo a opinião materna, guardar o dinheiro, porque se satisfazia ela com o apartamento que ele iria deixar vago.
Rosinha é que não se manifestou a respeito. Prestou bastante atenção no relato que o marido lhe fez da conversa com o sogro e se limitou a ouvir-lhe as considerações:
— Querida, meu pai está escondendo de mim quase tudo. Sempre que puxo o assunto da droga, dos usuários e dos traficantes, ele fica elétrico. É claro que faz força pra não demonstrar, mas eu conheço o velho. Ele é de pouca prosa, ao contrário dessas ocasiões, em que fala até pelos cotovelos. Você já o viu várias vezes manifestar-se de forma agitada. Ele me abriu os olhos quanto ao envolvimento de sua prima com a quadrilha. Ela está encalacrada, na verdade. Não tem saída. Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Resta saber se ela quer se ver livre do amante.
Não tendo tal provocação obtido resposta, passou a outro tema:
— Rosi, como é que vamos fazer quanto ao carro que pretendo comprar-lhe?
— Por mim, pode ficar como está. O pessoal da agência é muito competente e eu já me acostumei com os motoristas que me apanham aqui e na escola.
— Você está achando que eu também devo manter o mesmo esquema?
— Por que não?
— Concordo com você no sentido da segurança que temos tido até agora; o que me preocupa é o futuro.
— Pois não deveria. Está esquecido de que Jesus mandou que apenas os males de cada dia é que devem bastar ao homem? Ele mandou olhar os lírios no campo e as aves no céu. Você conhece a história melhor do que eu.
— Nesse caso, devo ficar muito satisfeito com o fato de manobrar o meu carrinho aqui no apartamento.
— Perfeitamente, mas sem abusar da velocidade...
A brincadeira tornou o moço mais ousado:
— Que bom que você está mais alegre hoje. Nestes últimos dias, você tem andado jururu, encrespando com qualquer referência que eu faça quanto a dar isto ou aquilo a alguém.
Se a intenção era a de provocar uma reação de revolta, o rapaz conseguiu. Rosinha não se pronunciou a respeito e abandonou a liça, não desejando terçar armas. Fechou-se no quarto e não permitiu que o marido entrasse, por mais que suplicasse junto à porta. Estava deveras agastada.
Teotônio acabou desistindo, julgando melhor refletir a respeito das possíveis causas de tão grave reação. Já não se satisfazia mais com a possibilidade da tensão pré-menstrual. Talvez fossem as atenções relativas a Laurinha, desde o caro presente que lhe trouxera da Europa.
“Tudo indica para um erro meu, quanto a não avaliar direito toda a extensão da humilhação que lhe impingiu a prima. Às vezes, o sentimento do perdão ocorre muito depressa, sem que as pessoas envolvidas se dêem conta de que, perante a existência, essa é a única saída possível. A solução espírita sempre é a melhor, porém, é preciso que a pessoa tenha tempo para considerar todos os aspectos e circunstâncias que dão origem aos fatos.”
Tendo percebido que o coração havia serenado, adormeceu sentado, com a cabeça apoiada no travesseiro que mantinha junto ao encosto.



19. TEMPOS DIFÍCEIS MAS FELIZES

Desde que Rosinha se fechara aquela noite no quarto, Teotônio foi perdendo seu característico bom humor.
Na manhã do dia seguinte, não ouviu da esposa nenhuma explicação. Tentou conhecer as razões verdadeiras da atitude, porém, sem sucesso. A moça entrava e saía de casa calada, não dando ao jovem oportunidade de estabelecer intimidade de qualquer nível.
Mas a verdade era dessas que não demoram para aparecer, de sorte que precisou Rosinha ceder à evidência:
— Teo, estou grávida.
— Que maravilha, querida!
— E nossos planos de formar-nos para só depois disso constituirmos a prole?
— Não será a presença da criaturinha produto de nosso amor que irá trazer-nos desassossego. Ao contrário, temos tudo do bom e do melhor para oferecer a ela. Você pensava que eu iria ficar bravo e, por isso, estava arredia comigo?
— Eu não sei o que o que pensei. Parece que tudo que você tencionava fazer, agora vai ficar quase impossível.
— É só acrescentar mais um projeto ao rol das realizações. Nós não estamos procurando apartamento maior? Pois é só mobiliar um dos quartos para o bebê.
— Mas a minha mãe vai querer passar mais tempo comigo e isso vai causar problemas para você, principalmente até o momento em que retomar os treinamentos.
— Eu não me dou mal com sua mãe. A minha é que não pode ficar com ciúme, já que ela tem o meu irmão em casa. Não é lógico querer ficar com os dois.
— Você sabe muito bem que não é a mesma coisa.
— A vida está reservando-nos muitos momentos inesperados. Vamos enfrentar o mais natural de todos com sabedoria. Que tal uma prece aos protetores para que nos ajudem a superar a nossa crise?
— É o que eu tenho feito a toda a hora. Desde que constatei a gravidez, deixei de prestar atenção às aulas.
— Por isso é que não atendia quando eu chamava para estudarmos juntos. E eu acreditando que era por essa ou aquela razão... Sabe que cheguei a pensar que você estava no período de tensão pré-menstrual? Depois levantei a hipótese de que era por raiva da atenção que dei a sua prima. Ainda fui capaz de imaginar que você não gostava mais de mim e que estava interessada em algum colega...
— Pode ir parando por aí. Se você quer mesmo saber, eu fiquei enciumada, sim, mas não foi por causa da Laura nem do presente que você lhe deu. Fiquei enciumada de suas fãs e também das modelos com quem você convive para as fotos. Só me tranqüilizei quando você me explicou que tudo não passava de composição realizada no computador.
— Já que estamos indo como que em rota de colisão, diga onde foi que errei para engravidá-la.
— Você está jogando o verde para colher maduro. Você sabe muito bem que era eu que sempre fazia o cálculo para evitarmos filhos. Então, quem errou fui eu.
— Ou a natureza nos pregou uma peça. Talvez, pensando bem, você tenha passado por alguma transformação fisiológica quando sofri a torção de tornozelo e precisei ser operado. Acho que isso explica a mudança da época da ovulação. Também, logo depois que voltei do hospital, nós nos precipitamos nos braços um do outro.
Imperceptivelmente, o casalzinho, que vinha trocando afagos, acabou em delírios de paixão, como a encerrar aquela fase obscura de seu relacionamento.
Na manhã do dia seguinte, sessão de avaliação do estado do pé do craque.
O Doutor Barbosa examinou a radiografia e não gostou do que viu. Foi sincero:
— Por mim, você voltava para a mesa cirúrgica. Vamos trocar a bota de gesso.
Deu a atribuição ao enfermeiro, recomendando que o chamasse, assim que o pé estivesse livre.
Teotônio, que vinha sentindo algumas dores, iludidas através de analgésicos, percebeu que o pé estava ainda muito inchado. O trabalho de retirada do gesso foi indolor, no entanto, quando o médico tocou no calcanhar, o rapaz não foi capaz de sustar um grito.
O grupo que dava assistência ao facultativo quedou silencioso. Barbosa comentou:
— Vamos tirar uma série de radiografias. Quero ver por todos os ângulos a situação dos ossos, ligaduras e tendões.
De fato, o radiologista se esmerou e conseguiu amenizar ao máximo o sofrimento do paciente, dado que precisou mudar a posição do pé diversas vezes, tendo obrigado o rapaz a deitar-se, a sentar-se e até a erguer-se, apoiando o pé no aparelho.
A espera da revelação foi angustiante. Passaram pela cabeça de Teotônio as hipóteses mais trágicas, desde a impossibilidade de voltar a jogar, até a necessidade de amputação.
“Por que é que mandei Rosi visitar o seu médico logo hoje? Se ela estivesse comigo, ficaria a me entreter, impedindo-me de pensar tantas bobagens. Se bem me lembro, Vieira tinha uma tese a respeito dessas fantasias da mente. Mas não acho que as vibrações das pessoas que estão sofrendo real perda da capacidade de locomoção ou do próprio membro tenham o condão de alcançar-me, apesar de concordar que estou abrindo minhas defesas espirituais para a percepção delas. Preciso ser mais otimista, o que me fará mais sensível aos bons fluidos que os protetores devem estar tentando espargir sobre meu pé.”
Antes que desenvolvesse mais profundamente as teses de caráter doutrinário, achou melhor simplesmente repetir intimamente, “como pediu Jesus”, um rápido pai-nosso.
Realmente, pôde acalmar-se, distraindo-se, então, com as figuras impressas nos quadros dependurados nas paredes da pequena sala de espera dos pacientes em atendimento.
Quando voltou com as chapas de raios X, Barbosa estava mais tranqüilo:
— Mostrei as radiografias aos colegas e chegamos à conclusão de que deverá bastar simples goteira, ou seja, gesso apenas na parte inferior do pé, subindo até o alto da panturrilha; o resto é bandagem. Você vai ter de ficar mais tempo em repouso, só usando a cadeira de rodas para ir ao banheiro. Vou arranjar-lhe dois enfermeiros que irão revezar-se para atendê-lo em todas as necessidades. Não se preocupe que seu plano de saúde cobre todas as despesas. O que não estiver estipulado ali, estará, certamente, nalguma cláusula da apólice do seguro.
— Quanto tempo vou ficar nessa situação, doutor?
— Não mais do que quinze ou vinte dias. Nesse meio tempo, você voltará à clínica toda semana, conforme a reserva de horário que fará na portaria. Boa sorte! Não se esqueça de que eu quero para mim o primeiro gol que você assinalar.
— O senhor é a décima terceira pessoa a pedir esse gol. Vou ter de mandar imprimir na camiseta uma relação bem grande de nomes.
Quando chegou ao apartamento acompanhado do paramédico, Rosinha ainda não havia retornado.
— Senhor Teo, por favor, diga-me onde quer ficar acomodado, se na sala, se no quarto; e onde estão os lençóis, cobertas, travesseiros etc.
— Senhor Raul, por favor, trate-me apenas por Teo, afinal você pode ter até o dobro de minha idade.
— Tenho trinta e cinco.
— É isso mesmo: estou pra completar dezoito. Mas eu prefiro que tudo isso minha mulher lhe dê, quando chegar. Aliás, vou pedir pra minha mãe dar um pulo aqui e, então, ela irá fornecer-lhe tudo quanto você quiser. Enquanto isso, me ponha diante da televisão.
— Perfeitamente, mas vou dispor o sofá de modo a facilitar a sua visão.
Em rápidos movimentos, tendo deixado a cadeira num canto da sala, Raul arrastou os móveis para diante da tela do aparelho enorme, cujo peso ultrapassava os cem quilos. Achou algumas almofadas, com as quais fez um anteparo para as costas e a cabeça do rapaz. Tirou-lhe o sapato do pé esquerdo, empurrou a cadeira para junto do sofá e carregou-o com facilidade até acomodá-lo confortavelmente.
— Procure não se deslocar forçando as pernas. Se quiser se recuperar logo, vai precisar descansar bastante.
— Vou acabar atrofiando os músculos.
— Só se não nos permitir massageá-lo nem orientá-lo nos exercícios para os braços, costas e abdômen.
— Quer dizer que vou começar com a fisioterapia?
— Isso mesmo, conforme as instruções que o Doutor Barbosa nos passou.
— Enquanto estiver comigo, posso contar com você pra outras coisas além dos cuidados profissionais? Estou pensando em jogar baralho, em ler as cartas que recebo aos montes, em responder a elas, em pedir-lhe pra alugar filmes...
— Você pode preencher o meu tempo como melhor lhe convier. Estou acostumado a ficar de plantão junto a doentes em estado terminal, vigiando os aparelhos de manutenção da vida. Na minha maleta, tenho alguns livros começados nos momentos de folga. Ajudá-lo vai ser um prazer.
— Você pode deixar o telefone sempre ao alcance de minha mão?
— Não posso. Sempre que desejar fazer uma ligação, eu lhe passo o aparelho. Todo cuidado é pouco. Você é minha responsabilidade. Qualquer recaída vai ser atribuída a mim e ao meu parceiro.
— Será que ele vai ter a mesma boa vontade?
— Sem dúvida. Quando o doutor nos informou que o paciente seria o ídolo do futebol, nós dois nos oferecemos primeiro. É uma honra servi-lo.
— Muito obrigado. Fico contente com isso. Em todo o caso, ainda tenho algo importante para perguntar-lhe. Como vai ser quando eu precisar ir ao banheiro?
— Eu o ponho na cadeira e o levo até lá. Não se preocupe, pois estou acostumado e nunca vou deixá-lo embaraçado, inclusive na hora do banho. Aposto que é a sua esposa que o vinha pondo na banheira...
— Ela mesma.
— Esse talvez tenha sido um problema para a recomposição dos ligamentos, porque a sua tendência deve ter sido de evitar que ela fizesse muito esforço.
— É verdade.
— Vamos contornar todas as dificuldades. Inclusive, na primeira semana, nós vamos dar-lhe banhos na cama, eu e o Juvenal juntos. Você sabia que recebemos mais um pouco para cada dia que anteciparmos a recuperação dos pacientes?
— Prêmio por produtividade. Interessante.
— Quer que eu ligue pra sua mãe?
— Não precisa. Está na memória do aparelho. É automático.
Enquanto falava, a ligação se completou:
— Oi, querido! Vejo que já está em casa. Foi tudo bem no médico?
— Foi mais ou menos. Preciso ficar de molho mais uns tempos. Dá pra senhora vir aqui ajudar o meu enfermeiro a arrumar as coisas de que vai precisar?
— Em vinte minutos.
Foi só desligar, recebeu uma chamada:
— Pronto!
— Teo, é a Flávia. Vamos demorar mais um pouco pra chegarmos. A Rosinha precisou fazer mais alguns exames e estamos aguardando os resultados.
— Tudo bem com ela?
— Tudo bem. Pode ficar tranqüilo. O médico disse que os exames são de rotina em casos como o dela.
— A senhora está me assustando.
— Desculpe. Não é nada grave. Quando chegarmos, ela vai explicar tudo direitinho pra você. Até já!
Os próximos vinte minutos se passaram dando Teotônio muitas informações ao enfermeiro, quanto ao acidente no campo que o alijou da seleção. Também falaram a respeito dos torneios em andamento e das amplas possibilidades de o jovem voltar a ser campeão nacional.
Aí chegou Dona Vilma.
Feitas as apresentações, explicada a presença de Raul, em seguida foram providenciadas as coisas solicitadas por ele.
Depois de ser melhor acomodado no sofá, Teotônio disse:
— Mãe, adivinha aonde foi a Rosi.
Sem dar tempo a que respondesse, revelou:
— Foi ao médico saber como anda a gravidez. Você vai ser avó.
A resposta da senhora foi dar um longo abraço no filho, mesmo de forma desajeitada, buscando não machucá-lo.
— Dona Flávia foi com ela. Era para já estarem de volta, mas minha sogra me avisou a respeito de outros exames. Estou com medo de que não esteja tudo bem.
— Ponha nas mãos de Deus, já que ela deve estar sendo cuidado pelo que de melhor a Medicina pode oferecer.
— Certamente.
— Vocês são muito jovens. Nessa idade, todos os problemas podem ser resolvidos pelo tempo. A vida pra vocês está na época das descobertas. Pense que, há um ano atrás, as suas preocupações eram totalmente outras. Se você colocar tudo sob essa perspectiva, vai ver que o futuro não assusta.
— A senhora parece o Professor Ernesto dando aula.
— Aprendi com o Padre Fulgêncio. Ele costuma falar assim nas reuniões da Congregação. Por falar nisso, ele lhe mandou lembranças. Disse que qualquer hora virá visitá-lo.
Nesse momento, entram Rosinha e a mãe, ambas com ares de grande preocupação. As notícias que traziam não eram tranqüilizadoras. Ao dar com uma pessoa estranha em casa, mais a sogra, a moça se assustou:
— Que foi que aconteceu, Teo?
O rapaz fez menção de se erguer, porém, prevenido, Raul o impediu, pondo-lhe as mãos nos ombros, dizendo-lhe com firmeza:
— Fique calmo, por favor.
Em seguida, ele mesmo se apresentou, explicando por alto qual era a sua função junto ao enfermo, insistindo que fora enviado pelo Doutor Barbosa.
Ainda estava falando e já Rosinha se achegava ao marido, como a buscar amparo e conforto.
Sussurrando-lhe ao ouvido, Teotônio perguntou-lhe:
— E quanto a você, querida, que está acontecendo?
Ela escondeu o rosto no peito do rapaz e lhe disse:
— Estou anêmica, nem mais, nem menos. A doutora me aconselhou uma dieta muito rica em ferro e cálcio, além de me receitar um complexo de vitaminas. O pior de tudo: ela me proibiu o regime vegetariano.
— Quer saber de uma coisa, Rosi, vamos consultar outros médicos. Não é porque estamos no Brasil, onde as mulheres têm muitos filhos, apesar de passarem necessidade, que vamos aceitar uma imposição de alimentos. Afinal de contas...
— Teo, querido, a médica tem razão. Eu não estava seguindo nenhum regime racional. Tenho a certeza de que posso nutrir-me muito bem sem ingerir nenhuma espécie de carne. Ocorre que não esperava engravidar.
— Tudo bem com o bebê?
— Com certeza. Possivelmente a anemia tenha sido provocada por ele. Mas preciso fortalecer o organismo. A doutora me disse que não preciso preocupar-me porque não vou engordar muito, só o suficiente para manter a criança saudável.
A conversa transcorreu em voz baixa, porém, os outros três ouviram tudo. Apenas Dona Flávia arriscou um comentário:
— Não vamos exagerar. O resultado dos exames não foram tão ruins. Basta, como disse a médica, uns quinze dias de rigor no tratamento e na alimentação. Depois, Rosinha voltará a realizar os exames. Inclusive, ela está liberada para ir à escola, moderando apenas a ginástica na academia.
Rosinha, sem sair do aconchego do marido, perguntou-lhe:
— Minha mãe pode ficar aqui comigo por uns tempos?
— Pode não: deve. Também minha mãe vai ter de vir todo dia cuidar de mim, apesar dos enfermeiros. As duas juntas vão ter de administrar a casa e velar para que não falte nada.
Dona Vilma concordou:
— Vamos dar um jeito para que tudo corra bem. Principalmente, vou pedir ao Arnaldo para que venha passar as manhãs aqui, porque eu acho que o Renildo está sugerindo coisas demais.
Teotônio olhou meio espantado para a mãe, desconfiado de que o assunto tivesse sido debatido na casa dela. Por isso, no íntimo, tomou a decisão de avisar o empresário para que não providenciasse mais nada das coisas de que se encarregara. Em voz alta, falou sem entusiasmo:
— Mãe, deixe o pai decidir o que deve fazer. Se ele quiser ajudar, que vá procurar um apartamento maior para mim. O Renildo poderá passar a ele as instruções.
Estava na hora do almoço e, mais do que nunca, as senhoras precisavam providenciar a dieta recomendada à gestante.
À tarde, Teotônio conheceu Juvenal, mais novo que Raul três anos, igualmente prestativo e eficiente. Ambos concordaram que havia necessidade de uma cama hospitalar para deixar o paciente melhor acomodado, de sorte que o móvel foi providenciado, tendo sido entregue no prazo de uma hora.
Enquanto isso, apareceu Renildo, atendendo ao chamado do patrão, com quem manteve conversa particular:
— Agora que você está a par das novidades aqui em casa, há de concordar comigo que não tenho cabeça para decidir-me por este ou aquele carro, por este ou aquele apartamento. Ainda bem que não escolhemos nenhum motorista...
— Desculpe-me, Teo, mas os carros têm de ser encomendados já, para ficarem prontos dentro de dois ou três meses.
— Então, escolha você, sabendo que não quero nada que chame a atenção no meio do trânsito.
— Pode confiar em mim. Quanto ao apartamento, conforme você disse, seu pai irá procurar também, o que me ajudará a definir quais deverei apresentar a você.
— Não precisa ser duplo nem de cobertura. Basta ter uma boa área, limpa e arejada, para que meu filho possa passar uma infância feliz.
— Nesse caso, sugiro que seja uma boa casa, com bastante terreno, em condomínio fechado, em local afastado da poluição da cidade.
— Isso deve ficar mais pra frente. Por enquanto, encontre algo com algum sistema de purificação de ar, espécie de ar condicionado.
— Você está pensando em um apartamento climatizado. Vai custar um pouco mais, entretanto, é possível achar algum em prédio em fase final de acabamento. Deixe comigo.
— Alguma novidade quanto ao meu contrato de garoto-propaganda?
— Liguei pra lá mas ninguém soube informar se haveria mais fotos, já que as vendas estão ainda muito elevadas. A pessoa com quem conversei apenas me adiantou que você irá ser requisitado quando mudarem a linha dos produtos. Por enquanto, estão preparando a campanha para a linha feminina.
— Será que Rosinha...
— Nem pensar. Em primeiro lugar, eles desejam uma atleta de gabarito internacional. Em segundo lugar, precisam manter certo mistério quanto à sua vida conjugal.
— Como é que você está sabendo disso tudo?
— Desde a primeira fase das fotos.
— Eles podem ter mudado de opinião.
— Posso tentar sugerir a eles que a contratem.
— Só depois que eu conversar com ela.
— Ficamos assim. Se eu souber de qualquer coisa, aviso. Da minha parte, só posso dizer que ela faria sucesso, caso ganhe desembaraço, mas não com os produtos esportivos; com os cosméticos em geral ou como manequim.
— Esqueça o mundo da moda; com a gravidez isso não vai...
— Pode acontecer de quererem um rosto bonito, para enfeitar as confecções para gestantes.
— Vamos, primeiro, caríssimo empresário, esperar que ela fique completamente curada.
Mais tarde, posta a par do sonho do marido, Rosinha pôs-se a rir:
— Para você, as coisas têm caído do céu em seu colo. É preciso transformar essas idéias em projetos mais coerentes com a realidade espiritual. Por que você não conversa sobre isso com Fulgêncio, com Vieira ou com o Professor Ernesto?
— Você acha que não tem cabimento tudo o que imaginamos para você? Pois saiba que, nesse campo, existem muitas moças...
— Perdão, Teo, mas deixe que sobre a minha vida...
— Veja lá o que você vai dizer!
— ...sonharemos juntos; não você com esse Renildo dos contratos milionários.
— Ah!

Quinze dias depois, já revigorada, Rosinha voltou a freqüentar as aulas. Teotônio, à custa de exaustivas sessões de fisioterapia, se viu bem melhor, acusando os exames a que se submeteu que já poderia efetuar exercícios com o pé em franca recuperação, mas nada de ir à escola.
Raul e Juvenal exultavam de alegria, uma vez que poderiam contar vantagem junto aos colegas, além do pagamento extraordinário.
Estava Teotônio estudando com a ajuda de Juvenal, quando, no meio da tarde, recebeu um recado de Renildo:
— Estou no subsolo. Desça para conhecer os seus carros.
— Já?
— Quando souberam para quem estavam trabalhando, os operários deixaram os outros pedidos de lado. Venha apreciar as obras de arte.
Até Juvenal ficou curioso, aprontando a cadeira de rodas, que empurrou para fora do apartamento, elevador adentro.
Diante dos carros, tanto Teotônio quanto Raul não se entusiasmaram, julgando-os iguais aos modelos de dois anos atrás. Estavam lustrosos e cheiravam a novo, entretanto, não evidenciavam nenhuma característica de superioridade.
Maliciosamente, Renildo foi explicando:
— Parece que se trata de carros reformados. E são mesmo, pois estão saindo da oficina de camuflagem.
Aos poucos, revelou os segredos da blindagem e da segurança, evitando mencionar os dispositivos eletrônicos que necessitavam de senha para serem ativados.
Ao ser colocado no assento de trás, pôde o dono avaliar a maciez do estofamento e a riqueza de pormenores disfarçados, desde pequenas bolsas embutidas até uma geladeira capaz de resfriar quatro garrafas. Em suma, era carro digno dos filmes de magnatas ou de altos membros das organizações criminosas.
Renildo observou:
— Quando você completar dezoito anos, vai poder dirigir esta obra-prima. Então, vai sentir o desempenho de um motor de duzentos e cinqüenta cavalos-vapor. Parece pouco, mas isso significa ir de zero a cem quilômetros por hora em menos de dez segundos. Estou dizendo tudo isto para adverti-lo quanto a não mostrar a máquina para nenhum jornalista. Ela está fora dos padrões legais, tanto que a documentação não registra nenhum dos acessórios exclusivos, tendo saído como veículo para demonstração. Aliás, os funcionários do serviço não tiveram acesso ao veículo para vistoria, assinando em branco, liberando a licença mediante grossa propina.
— Ao contrário do que lhe venho pedindo encarecidamente, porque não quero vir a ser acusado de nada ilegal. Não se esqueça de que você está diante de futuro advogado, defensor da aplicação da lei.
— Retiro o que eu disse. Na verdade, não mexi nenhuma palha para obter tal resultado. Só fiquei sabendo dessas coisas, quando estranhei o preço que me foi cobrado.
— Devem ter ficado caros à beça...
— Ficaram a preço de custo, mais os impostos e taxas. Vamos ter de agradecer a muita gente. Eu sugiro que você o faça indo pessoalmente à montadora e à oficina de transformação.
Teotônio voltou ao apartamento com o coração opresso, barafustando a idéia de que nada daquilo estava certo, a partir da própria necessidade de tanta precaução para viajar pelas ruas e estradas de seu país.
Quando Rosinha viu os carros, também se decepcionou, dizendo francamente ao marido:
— Isto representa a decadência moral em que está imersa a humanidade.
— Querida, não se esqueça de que todos os recursos médicos postos à nossa disposição provieram das nossas posses superiores. Eu sei que todo o povo deveria usufruir as mesmas regalias, contudo, não podemos nos arriscar a deixar as nossas vidas no asfalto, sem termos tentado fazer algo de bom pelos semelhantes.
— Tudo bem, mas as suas observações só reforçam o que lhe disse. Não vai ser outra a visão da vida que iremos passar ao nosso filho.
A lembrança da criança amolgou as vontades ouriçadas e ambos se enterneceram, abraçando-se demoradamente.



20. FRUTOS DO SUCESSO

No dia do retorno de Teotônio aos jogos oficiais, concentrado no hotel, tendo acordado bem cedo, pôs-se o jovem a meditar sobre os acontecimentos dos últimos tempos.
O primeiro sorriso se lhe estampou no rosto pela lembrança do dia do aniversário. Era o dia de estréia nos treinamentos coletivos, ainda bastante temeroso de aplicar suas fintas nos companheiros. Havia solicitado que a festa tradicional da farinha e dos ovos fosse transformada em confraternização junto à garotada das favelas próximas.
Santoro o havia prevenido:
— Prepare-se para graúda surpresa no seu dia. A rapaziada está preparando uma cerimônia pra você não se esquecer dela tão cedo.
E mais não disse, pondo o convalescente atento para os disparates e os excessos.
Ao adentrar o gramado, contudo, foi recebido com um Parabéns a você! entoado por milhares de vozes de crianças e adolescentes. As arquibancadas estavam cheias, precisando o rapaz dar uma volta olímpica, acenando e agradecendo. No centro do campo, os companheiros rodeavam um bolo monumental, ornamentado na forma de um grande saco de farinha de trigo, com marca e tudo, e várias cestas cheias de ovos de chocolate.
Relembrou, ainda comovido, as lágrimas e o breve discurso em que incentivou o estudo e o trabalho, tendo recomendado que ficassem longe das drogas.
Depois passou a um episódio constrangedor: a despedida de Raul e de Juvenal.
Os terapeutas foram de uma dedicação extraordinária, logrando colocar o paciente em forma bem antes do tempo programado. Quando souberam que o casal estava querendo contratar um ou dois motoristas, ofereceram-se, ainda que interrompessem suas carreiras.
— Vou conversar com Rosinha, dissera, para ganhar um pouco de tempo, apesar de estar convencido de que iriam ser aprovados.
— Eu não vou aprovar, sem que seu pai investigue a vida dos dois, respondera-lhe prudentemente a moça.
Postos a par da necessidade de possuírem carteiras de motorista profissional, bem como de terem cursado escola de auto-defesa e de serviços de segurança particular, propuseram-se a obter as referidas habilitações. No entanto, instados a apresentarem as carteiras de trabalho, recusaram-se, dizendo que estavam nas mãos do empregador.
Dois dias depois, já dispensados das funções que vinham desempenhando, Arnaldo trouxe a notícia de que ambos estavam fichados na polícia por diferentes crimes, conforme apontavam as folhas corridas. Havia uma informação relativa a atividades junto à torcida uniformizada do clube, que os apontava como membros de extinta diretoria.
— Pai, que podem ter feito de errado, além de incentivarem a violência?
— Não consta nada nesse sentido. Contudo, sabe-se que, no seio dessas entidades, corria muita droga, servindo ainda para lavagem de dinheiro do contrabando em geral e de armas em particular. Os sócios constavam como contribuintes, mas não pagavam nada; e as despesas eram enormes, pelo livro de contabilidade forjado através de faturas e notas fiscais frias.
Intimamente, Teotônio ligou os fatos, concluindo que era bem possível que pertencessem ao mesmo grupo do desconhecido que lhe agradecera a salvação do rapaz na queda da arquibancada.
Sem saber como negar-se a contratá-los, Teotônio solicitou que o pai estivesse presente durante a entrevista agendada. De fato, a presença do policial fardado intimidou os candidatos, que saíram expressando abertamente a sua lamentação.
— Bem que eu estava desconfiada de alguma coisa, dissera-lhe mais tarde a jovem esposa.
Lembrou-se de Rosinha com a barriga de sete meses, para se fixar na gravidez ainda mais proeminente de Laura.
Fora ao encontro dela uma semana depois que se habilitara a dirigir. Dissera a Rosinha que o faria, descartando-a:
— Eu levaria você comigo, mas não acho que esteja preparada para um encontro emocional. Não vamos fazer a nossa filha correr nenhum risco desnecessário.
A moça foi breve e incisiva:
— Ela vai pedir dinheiro pro parto. Veja lá o que você vai prometer-lhe!
— Estou interessado em decifrar o mistério do relacionamento dela com meu pai.
Repetiu a frase quase em voz alta, para ver que soava inteiramente falsa, dado o resultado da entrevista. Na realidade, Laura desejava expor-lhe outro problema:
— Primeiro, quero pedir-lhe que me desculpe pelo mal que fiz à minha prima. Pode acreditar que foi André quem me obrigou a ser grosseira. Mas a sua opinião não vai mudar nada. Eu quero ter o meu filho e criá-lo longe das drogas. Meu pai vive dizendo que eu preciso concordar em ir com ele para o interior. Eu até que posso ir, mas tenho medo de que o pai do meu filho mande alguém atrás de mim. Ele não quer que eu ponha o nome dele na certidão. Melhor assim. É pai que não orgulha filho nenhum. Mas o que eu vim pedir a você é que me instale noutra cidade grande, com recurso para sobreviver, trabalhando por conta própria. Meu pai não precisa do negócio que você propôs a ele. Eu, sim. A minha tia não quer separar-se do irmão. Ela vai ficar morando com vocês até Rosinha dar à luz. Depois vai voltar pra casa. Eu pensei que você poderia dar a ela uma casa noutro bairro, perto do seu apartamento novo. O imóvel que você me destinar pode ser de aluguel. Só que você vai precisar me adiantar alguns meses, até que meu comércio comece a render. Se preferir, você compra uma casa pequena ou apartamento em seu nome e me deixa morando lá. Como você está vendo, eu pensei em tudo. É o desespero de minha situação. Você não sabe a dureza que está sendo ficar sem a droga, pra que meu filho nasça sem vícios. Eu agradeço muito a sua atenção. Não precisa decidir agora. Converse com Rosinha, com meu pai, com minha tia. Você vai ver que é a melhor solução. Mais uma coisa: se você não se aborrecer, vou mandar minha tia levar de volta o presente que você me deu. Disseram que custou uma nota preta. Mas eu não acho que...
Teotônio lembrou-se que se enternecera com a moça. Ouvira o jorro das palavras, como se o discurso tivesse sido longamente preparado. Aceitou a escultura com a condição de que fosse trocada por enxoval completo para o bebê. Recebeu por resposta o único sorriso que dera Laura naquela tarde. Soubera ainda que o menino iria chamar-se Artur, como o avô, com o sobrenome acrescido da palavra Neto. Dissera, por sua vez, que não haviam escolhido ainda o nome da menina e a conversa terminou aí.
“Fui buscar lã e saí tosquiado”, refletiu com seus botões, recordando-se de que todos aprovaram a sugestão da moça, menos no que respeitou a outra cidade. Haveria de morar no mesmo bairro dos pais, que não abriam mão de cuidar do neto e também de supervisionar os negócios da filha.
Realmente, por ocasião do parto, Laura já habitava apartamento simples, três quadras distante da casa que Teotônio havia comprado para a sogra, no mesmo bairro do belo apartamento em que esperava criar a filha. Recordou-se da mudança dos pais e do irmão para sua antiga residência, sorrindo de satisfação por ver que acomodava toda aquela gente de forma bem melhor.
Quando ia rememorar a recepção que Rosinha havia dado à âncora de aço, os colegas invadiram-lhe o quarto, para levá-lo de roldão até o refeitório.



21. JANDIRA

Após trinta e seis semanas de gestação, nasceu Jandira, em parto complicado e sofrido. Rosinha odiou cada momento de dor, transferindo para a filha a frustração de parir uma menina para oferecer ao marido. Como havia recebido mal a notícia da gravidez, ainda pior se sentiu ao pegar ao colo a cria mal embrulhada nos panos do hospital.
A ninguém na sala passou despercebido o desconforto materno, alertando a obstetra quanto à necessidade de orientar o pai, para que providenciasse assistência psicológica à parturiente.
Teotônio estava prestes a adentrar o gramado, portando na camiseta expressiva homenagem a Rosinha. Havia recebido a informação de que nascera a criança, prometendo a si mesmo a honra de oferecer um gol à mãe e outro à filha. No entanto, o pensamento na maternidade prejudicou-lhe o desempenho, perdendo bolas fáceis, desperdiçando jogadas criativas dos companheiros, aborrecendo Santoro, que o substituiu no intervalo, com a recomendação de que fosse ver a filha.
Estava ainda no estádio, quando ouviu solene vaia. Depois de alguns minutos, encheu-se o vestiário de aplausos entusiasmados.
— Vá ver o que aconteceu, pediu ao único roupeiro que ficara.
Dentro em pouco, voltava o moço com as notícias:
— A vaia foi por ter sido anunciada a sua substituição; os aplausos, por terem sabido do nascimento de sua filha.
Ao taxista, antes mesmo de indicar o endereço da maternidade, solicitou que parasse em alguma floricultura.
— Pode deixar comigo. Eu sei onde existe uma aqui perto. Parabéns por sua filha. Como vai se chamar?
— Se depender de mim, Helena. A mãe quer Jacira. Acho que vou registrar Jacira Helena.
— Belo nome. Dê meus parabéns à Dona Rosinha e aceite meus votos de felicidades para a menina.
— Obrigado.
Estando o rádio transmitindo a partida, antes de descer para adquirir as flores, ouviu a narração do gol de seus companheiros, tendo o repórter de campo cedido o microfone ao artilheiro:
— Este pertence ao Teo. Deus é fiel.
Comoveu-se o moço com a distinção, direcionando os pensamentos para a interpretação religiosa da frase, notando, desde logo, que o seu nome se relacionara, pela origem, ao nome excelso do Criador:
— Como não seria eu um predestinado, se tenho a notável honra de carregar nome tão ilustre?!...
Na floricultura, não houve como não aceitar o ramalhete de rosas brancas e vermelhas que lhe foi oferecido. Encomendou, então, duas dezenas de arranjos florais para serem entregues, dois a dois, nos próximos dias. Saiu acompanhado pelo pessoal da floricultura, precisando abrir passagem entre os que se aglomeraram na calçada para ovacionarem-no.
Quando o táxi arrancou, as lágrimas ainda insistiam em correr-lhe pela face.
De longe, percebeu o motorista que havia pequena multidão à porta do hospital.
— Vou dar a volta e entrar pelo pronto-socorro.
— Por favor, pare onde está o povo. Vou atravessar a barreira. Não existe perigo onde há amor verdadeiro.
Ia dizer que o médium Chico Xavier nunca sofrera nenhuma desdita, sempre rodeado pelos admiradores, mas não deu tempo. Pagou a corrida, deixando generosa gorjeta sobre o banco, já que não queria o taxista cobrar. E apeou, assediado pelas fãs.
Com o ramalhete nas mãos e distribuindo sorrisos, foi abrindo caminho, sempre tocado pelas pessoas, em gestos que lhe lembravam o apelo que se fazia a Jesus pela cura dos males. Caminhava nas nuvens. Felizmente, o trajeto era curto e logo os seguranças tomaram a si a responsabilidade de controle da onda que arrastava o herói para dentro do edifício.
No saguão, muitos médicos e enfermeiros espreitavam o momento de cumprimentar o jovem pai. Logo se destacou a Doutora Leila, a obstetra, pedindo-lhe que a seguisse. Precisavam conversar.
No consultório, recebeu Teotônio o carinhoso abraço dos pais e da sogra, reunidos ali por convocação da médica.
— Eu pedi que me ouvissem, porque tenho algo muito importante para dizer relativamente ao iminente conflito que vai se estabelecer entre mãe e filha. A moça está deprimida, sintoma que eu havia consignado na ficha de observação, desde a primeira consulta. Acho que ninguém ignora que existe uma síndrome de pós-parto que torna a parturiente avessa ao nascituro. Rosinha demonstrou essa reação durante todo o parto, mais ainda quando expulsou a criança e a recebeu sobre o ventre. Vai ser preciso dar uma atenção especializada a ela, através de acompanhamento psiquiátrico. Vou receitar uma série de medicamentos para estimular os centros nervosos, no sentido de anular os efeitos danosos dos elementos químicos gerados no cérebro, pela serotonina, principalmente. Vou passar-lhe uma droga vasodilatadora para produzir-lhe sensação de conforto e bem-estar. Vamos ver se criamos resistência física à dor moral provocada pelo aumento da pressão cardiovascular. Estou pondo a família a par desse quadro, para pedir que não levem em conta os ataques que ela fará contra vocês, em razão do desequilíbrio hormonal. O que acontece, na realidade, é uma espécie de paranóia, um efeito similar ao das drogas alucinógenas. Vocês entenderam ou preciso esmiuçar mais o assunto?
Foi Teotônio quem respondeu:
— Quer dizer que vamos ter de ser carinhosos a mais não poder?
— Exatamente, a ponto de se sacrificarem para vê-la melhorar aos poucos. Mas não deixem que o tempo faça o serviço sozinho. Busquem auxílio médico especializado.
Arnaldo, que se impacientava, tentou pôr fim à conversa:
— Doutora, muito obrigado por tudo. Vamos fazer conforme a senhora está recomendando.
Dona Flávia, entretanto, queria saber mais:
— A minha filha, doutora, não gosta da criança: é isso?
— Nesta altura, ela não gosta da vida nem de ninguém. Ela está centrada no sofrimento da gestação e do parto. Logo vai perceber que terá muitas limitações pelo fato de ter de amamentar e de cuidar da higiene do bebê. E vai sentir o poder de pressão da sociedade que exige das mães comportamento padronizado pela benquerença à prole. Não pense que isso seja um ato de vontade, um capricho ou um sentimento de repulsa consciente. Aliás, se ela puder ser despertada para os efeitos ruins que tal atitude pode gerar relativamente a ela mesma, irá perceber que precisa de ajuda externa. No estado em que se encontra, não estranhem que ela se negue a consultar o psiquiatra.
Teotônio quis comprovar uma intuição:
— Significa dizer que ela vai reagir agressivamente?
— Você entendeu muito bem. Existem casos em que as mães maltratam os filhos recém-nascidos. Muitas até os abandonam ao deus-dará, para não falar nas que lhes causam o óbito.
Arnaldo pediu licença e saiu: precisava respirar. Dona Vilma saiu com ele, temendo por alguma reação mais forte, algum desfalecimento, tendo percebido que o marido estava suando frio. Mas Leila foi atrás do casal, fez que o avô se sentasse, abaixasse a cabeça e a colocasse entre as pernas. Logo ele se refez, já assistido por enfermeiro.
Teotônio havia ficado pregado na cadeira, enquanto a sogra chorava encostada na parede, junto ao desvão da janela.
No íntimo do rapaz, desenvolvia-se, forte, um pensamento de superação do drama, já que rogava com fervor pelo auxílio dos protetores espirituais, que nunca o abandonaram. Quando se levantou, a médica estava de volta, consolando Dona Flávia, dizendo-lhe palavras de estímulo, afiançando-lhe que nada daquilo tivera origem na educação que dera à filha.
— Doutora, disse entre lágrimas, eu senti por ela o mesmo repúdio, quando ela nasceu. Passei três ou quatro meses...
— A senhora não venceu a crise?
— Sim.
— Pois ela também vai vencer, com a sua ajuda. Quem foi que ajudou a senhora?
— Meu finado marido. O interessante é que, quando nasceu meu filho mais novo, nada disso voltou a acontecer.
— Pois, então, fique tranqüila e mostre-se a ela sempre calma e ativa, cuidando da criança com desvelo e amor. O seu exemplo irá frutificar; a senhora vai ver.
Teotônio ia despedir-se mas a médica fez questão de conduzi-lo até o quarto da esposa. Preocupara-se tanto que se esquecera até de pedir para ir ao berçário ver a filha. Foi quando notou que passara o tempo todo com o ramalhete na mão, todo amarrotado, faltando muitas flores arrancadas pelas fãs. Antes de entrar, tentou rearranjar o buquê, mas o máximo que conseguiu foi uma triste maçaroca de galhos, folhas e algumas flores despetaladas.
Rosinha repousava. Ao lado da cama, o berço onde Jandira dormia. Teotônio aproximou-se da esposa, que bruscamente buscou pela pessoa cuja respiração pressentira.
— Ah! É você? Que horas são?
— São cinco e pouco.
— Você não deveria estar em campo?
— Saí no intervalo. Santoro achou melhor que eu viesse ver vocês, já que não estava produzindo nada.
— Pois ele deveria ter dispensado você antes, pra me acompanhar no parto.
— Ninguém pensou nisso, porque todos estavam esperando que tudo acontecesse só amanhã.
— Você não pediu a ele pra vir embora?
Teotônio sentiu que havia alguma armadilha preparada.
“Se digo que não pedi, pensou, ela vai ter do que me recriminar. Se digo que pedi, vai me chamar de mentiroso. Estou bem arranjado.”
Tentou contornar a questão:
— De certo modo, foi como se pedisse, porque só estraguei as jogadas, não conseguindo fazer nada que prestasse, levando até algumas fintas, errando os passes, pondo-me em impedimento, dando uma entrada mais forte no adversário, quase levando cartão amarelo, o primeiro na vida.
— E quem está interessado no que se passou no jogo?!... Você não devia estar aqui, filmando tudo? Até a Laura tem o registro do nascimento do filho.
— A Doutora Leila me disse que o parto foi difícil mas que você se portou muito bem.
— Eu me portei muito mal. Ela não pode ter dito semelhante coisa. Se disse foi porque está acostumada a receber tanto xingo.
Teotônio estava confirmando a previsão da médica. Apelou, então, para a única saída que imaginara:
— Querida, Rosi, vamos fazer uma prece de agradecimento a Deus...
— Você não vai ver a sua filha?
— Agora estou ao seu lado, querendo...
— Você está querendo dizer que não quer ver a menina?
— É claro que estou, mas antes...
— Está com medo que ela se pareça comigo?
— Se ela se parecer com você, vai ser um pequeno anjo, um espírito abençoado...
Leila, que ficara ouvindo o diálogo, correu em auxílio do moço. Tirou a criança do berço e aproximou-a do casal, afastando a roupa que escondia parte do rosto.
Rosinha estranhou que a médica estivesse presente:
— A senhora também é fã do meu marido, doutora?
— É claro que sou. Ele é um herói nacional. Você deve estar muito orgulhosa dele. Vejam como dorme a menina.
Teotônio aproveitou para acariciar a cabecinha da filha, tentando dizer algo que parecesse neutro:
— Deus te abençoe, querida! Você vai completar a felicidade de seus pais e de seus avós.
Jandira, ao ouvir o som daquela voz, abriu os olhos, buscando-lhe a origem, dando com o pai, com certeza sem ter noção alguma da fisionomia. Eram apenas lembranças do tempo da gestação. Para Teotônio, foi um deslumbramento, que ele expressou de imediato:
— Ela me reconheceu. Ela sabe que sou eu o pai dela. Que criaturinha mais esperta!
Mais que depressa, a médica afastou dele a menina, depondo-a de volta no berço. Mas era tarde. Rosinha tomou tudo como uma provocação:
— Pois ela, quando estava no meu colo, chorou muito. Só parou quando a enfermeira a levou embora.
Leila fez menção de responder, porém, Teotônio se antecipou:
— Os primeiros vagidos dos recém-nascidos são apenas sons sem nenhum sentido. Acontece que eles não sabem controlar as cordas vocais e, ao respirarem, dão a impressão de que estão chorando.
Rosinha, contudo, não se deixou impressionar:
— Você está me chamando de ignorante? Pensa que eu não sei nada disso? Eu estava na aula de biologia junto com você. Eu estou dizendo que ela estava chorando mesmo, porque o parto foi difícil também pra ela. Se eu sofri, ela também sofreu.
Enquanto ela falava, Teotônio alisava-lhe o cabelo desarrumado, tendo de ouvir outra queixa da parturiente:
— Você bem podia ter avisado que estava vindo, pra eu poder me pentear, pôr um batom e uma cor no rosto. Devo estar parecendo um cadáver.
— Você está como deve estar toda mulher após dar à luz: com o brilho da felicidade nos olhos.
— Você está sentindo isso em mim?
— Rosi, eu vou agradecer a Deus o fato de vocês duas estarem bem. Não se esqueça de que Jesus lembrou que a mulher esquece as dores, quando percebe que lhe nasceu o filho.
Falou e se arrependeu, percebendo que abrira um flanco por onde Rosinha podia abatê-lo com argumentos fáceis. No entanto, inexplicavelmente, a moça permaneceu calada, segurando a mão do marido, apertando-a com força.
Teotônio interpretou o gesto como sinal de que ela estava reconhecendo a aflição dele. Recitou, então, uma prece inventada ali mesmo, na qual pediu aos protetores que o inspirassem, para bem poder cuidar da jovem mãe e da pequenina. Agradeceu ao Pai por toda a vida de realizações do casal, prometendo que devolveria à sociedade, por inteiro, o bem que dela vinha recebendo. Atrapalhou-se um pouco com as palavras, não exprimindo com muito acerto o que sentia, já que estavam confusos os pensamentos, dado que não queria provocar atrito algum. Terminou repetindo um pai-nosso arrastado, entrecortado de soluços, emocionado e quase infeliz.
Procurava Teotônio o que mais dizer, quando Rosinha lhe perguntou:
— Que foi que você me trouxe?
— Ah!, sim. Onde deixei as rosas?
Adiantou-se Dona Flávia:
— Estão comigo.
E entregou ao genro o que havia sobrado do magnífico ramalhete.
— Rosi, isso é o que restou, quando passei no meio do povo reunido junto à entrada.
A moça pegou o embrulho amarrotado e comentou:
— Aposto que suas fãs devem ter ficado bem contentes com as lembrancinhas que conseguiram. Se tivessem deixado, ao menos, o cartão que você deve ter escrito...
— Escrevi, sim. Dizia que as rosas eram da dona do meu coração, as vermelhas, porque as brancas eu trouxe para enfeitar o berço.
— Nenhuma brincadeira com o meu nome?
— Na verdade, eu escrevi que era para a rainha das rosas.
— Não acredito. Aposto que você pegou essas flores no quarto ao lado, resto de algum presente.
Reclamava ainda a moça, quando bateram de leve na porta aberta, chamando a atenção de todos. Eram funcionários do hospital, com dois magníficos arranjos de flores:
— Podemos deixar estas flores no quarto?
Foi Teotônio quem se manifestou, levantando-se, indo buscar os ramalhetes, mal conseguindo carregar um deles.
Rosinha logo observou:
— Quero saber quem foi que me enviou.
Havia um envelope em cada arranjo. Teotônio arrancou as presilhas e entregou-os à jovem esposa, esperando em silêncio pela reação dela.
Rosinha leu em voz alta:
— Para Rosi, a rainha do meu jardim encantado. Teo. E este outro: Para Jandira, a princesinha que irá enfeitar ainda mais o meu canteiro. Teo.
Tendo deixado o amarfanhado buquê com Dona Flávia, esta logo encontrou o outro cartão, passando-o para a filha:
— Leia também este daqui que estava escondido no fundo.
Com a mão trêmula, Rosinha leu o terceiro cartão:
— Para Rosi, a dona do meu coração, rosas para a rainha das rosas e de todas as flores. Foi você mesmo quem escreveu?
— É a minha caligrafia. Não está reconhecendo?
— Você não copiou de nenhum lugar?
— Se tivesse copiado, teria escrito coisa bem melhor. Isso daí está parecendo muito piegas. Amanhã eu vou mandar outras flores e outros cartões. Vamos ver o que você acha.
— Bobo. Não está vendo que estou mexendo com você?
Estendeu os braços, chamando o moço para um forte e demorado amplexo. Escondia as lágrimas que teimosamente insistiam em escorrer.
Alguns silenciosos minutos depois, Leila colocou todos para fora do quarto, para alegria das mulheres de camisola que espiavam do corredor:
— Queiram sair, porque chegou a hora da primeira colheita de leite.
Teotônio conduziu a sogra pelo braço, levando-a para junto dos pais, precisando acenar e apertar as mãos que lhe estendiam as parturientes, enfermeiras, médicos e funcionários.
Dona Vilma quis saber o que estava acontecendo.
— Mãe, a doutora percebeu que Rosinha se emocionou e está tentando fazer com que aceite a criança. Vamos orar juntos para que tudo dê certo.
Lá dentro, sugando o seio que começava a intumescer, Jandira punha fim às resistências da mãe.



22. PONDO PINGOS EM ALGUNS IS

Exatamente quinze dias depois do nascimento da filha, ao retornar Teotônio de vitória contundente contra adversário de valor, partida em que marcou duas vezes, encontrou os pais em casa.
Após os cumprimentos de rigor, à queima-roupa, a sós com o pai, perguntou:
— Pai, como é que o senhor explica o fato de ter passado mal na maternidade, quando vem enfrentando vida muito dura, lutando contra os marginais, levando tiro etc. e tal?
Juvenal não respondeu de pronto. Não esperava a pergunta. Finalmente, vendo a ansiedade estampada no rosto do filho, explicou:
— Você tem toda razão. Acontece que, diante dos marginais, decido logo o que fazer e tomo uma atitude. No hospital, eu estava ouvindo a explicação da doutora, que dizia que Rosinha ia pôr a minha neta em perigo, sem que a gente pudesse fazer nada que a contrariasse. Ainda bem que ela mudou logo. Na hora em que você saiu do quarto e nos disse que estava tudo bem, respirei aliviado.
Teotônio refletiu que, como sempre, o pai lhe dava cabais explicações, deixando tudo claro, através de lógica impecável. Vendo que o sargento aguardava por outras observações, perguntou ainda:
— Quantos guardas foram destacados para a segurança da criança, na maternidade?
— Desloquei uma dúzia, com a desculpa de que poderiam tentar raptar a menina. O que eu queria, na verdade, era proteger você do assédio das pessoas, principalmente dos jornalistas. Quando é que você vai ser entrevistado ao vivo na televisão?
— Amanhã à noite.
— Vou mandar uma guarnição. O canal deve estar anunciando sua presença ao vivo e isso nunca é bom pra quem tem tanta fama.
— Eu não acredito que alguém queira me fazer mal.
— Quer que eu lhe dê exemplos de atentados a pessoas mais famosas que você?
— Não precisa. Acontece, porém, que, aqui no Brasil, jamais aconteceu, a não ser quando os repórteres estão presentes e algum engraçadinho cisma de beijar as pessoas, só para serem filmados e fotografados.
— Não é só isso. Os mais graduados no batalhão sempre estão recomendando que os policiais tomem muito cuidado. Sempre pode acontecer de algum louco querer se consagrar como o pior dos homens, atacando aqueles que são amados pelo povo.
— O senhor não está com medo de que os asseclas do André estejam recebendo ordem pra vingarem a prisão dele, já que todos ficaram sabendo que foi a Rosinha quem avisou que ele estava saindo do prédio?
— Ponha-se no lugar dele. Você arrumou a vida da mãe do filho dele, deu-lhe um ganha-pão dos melhores...
— Não se esqueça de que ela e o pai dividem os lucros e o trabalho.
— Ela pouco faz. Cuida do caixa e atende a freguesia no balcão. Artur é quem pega no pesado.
— Mas ele está muito contente, inclusive porque a filha criou juízo.
Arnaldo percebeu que o filho dissera aquilo para ver se ele confirmava. Ainda assim, acrescentou de forma cordata:
— Você sabe que eu conheço a moça faz tempo. Queira Deus que você tenha razão. Quanto a mim, continuo atento, sempre determinando que as viaturas da ronda prestem atenção no que se passa perto da residência dela. Qualquer movimento suspeito, devem comunicar de imediato. Existem outros membros da quadrilha que desejamos prender.
— Tanto desvelo revela que o senhor absorveu o verdadeiro espírito do policial a serviço da ordem pública. É de admirar e eu lhe rendo o meu preito filial, especialmente quando a gente lê todo dia nos jornais e também vê pela televisão quantos colegas seus cometem crimes, organizando-se em quadrilhas de extermínio, comandando o tráfico de entorpecentes, explorando o lenocínio, extorquindo comerciantes, mancomunando-se com os bandidos, praticando contrabando de armas e sei lá mais quantas formas de indevido uso do uniforme, para proveito próprio ou de pequena parcela da população.
— Só falta você me perguntar por que não cedi à tentação ou não me deixei corromper pelas ameaças dos marginais, como naquela vez em que atiraram no Cabo Farias, em mim e nos demais que vieram em nosso socorro.
Afligia-se Teotônio com o rumo que adquirira a conversa. Há muito desejava colocar o pai sob o crivo de um interrogatório, mas se sentiu absolutamente despreparado para enfrentar o velho soldado sob o sagrado teto do lar. Sendo assim, tartamudeou:
— Não vou perguntar, porque eu sei qual é a causa de seu procedimento.
Criou coragem e prosseguiu mais solto e mais coerente:
— O senhor nos ensinou o caminho da religião, tanto que jamais faltou aos compromissos assumidos diante dos cânones da Igreja Católica. Estava, desse modo, impedido moralmente, filosoficamente, de pactuar com o pecado e com os pecadores...
— Não vá tão longe. Procure uma razão mais próxima.
Teotônio adivinhou que o pai desejava que ele concluísse exatamente pelo ponto em que começara sua análise:
— Eu disse que o senhor nos ensinou a praticar o bem, o que significa dizer que o fez por amor à família. É isso?
— Veja o Padre Fulgêncio e o Senhor Vieira: eles trabalham pelo bem da humanidade por amor ao próximo, concretizando o ensinamento maior de Jesus, aquele que ele chamou de segundo, abaixo apenas do amor a Deus. Pensar o mesmo de mim é colocar-me em pedestal de pureza a que não faço jus. Prefiro ficar mais aquém, lembrando-me de que Jesus mandou que as pessoas amassem o próximo como a si mesmos. Foi isso o que fiz, ou seja, amei a mim mesmo, antes e acima de tudo. E para que pudesse amar-me plenamente, não podia deixar de amar aos meus parentes, aos meus amigos e a cada ser vivo a quem dava a dimensão, a estatura do ser humano que reconheço em mim. Não sei se isso é moral ou filosófico; o que sei é que desperta muita desconfiança nas pessoas, porque ninguém consegue acreditar em que a farda possa vestir com honradez e dignidade, sempre associando a autoridade que ela investe à arbitrariedade daqueles a quem cabe fazer cumprir a lei, muitas vezes através da força, pelo poder que lhes foi outorgado.
Teotônio estava atônito. Não esperava semelhante pronunciamento do pai. Mas este logo fez que se empanasse o êxtase do jovem:
— Não se espante com as minhas palavras. Acontece que decorei o discurso que o coronel pronunciou, quando me deu a medalha por enfrentar os bandidos, com o risco da própria vida. Como as palavras foram gravadas, o major fez questão de copiá-las e de distribuí-las entre todos da corporação. Não são emocionantes?
Ia Teotônio dizer algo a respeito, quando apareceu Dona Vilma carregando Jandira, trazendo a reboque a nora. Precisavam conversar a respeito do batizado da menina.
Ainda deu tempo de colocar a mão no braço do pai, gesto através do qual lhe transmitia seu afeto e compreensão.
— Filho, disse-lhe a mãe, vamos ver se você concorda com o que Rosinha e eu deliberamos.
— Vamos ver.
Dona Vilma passou a criança para os braços do marido e sentou-se no sofá em que se acomodava o filho.
— Nós achamos que você não vai querer uma cerimônia pública. O ato religioso não deve servir para qualquer outra finalidade que não seja a de tornar a menina uma alma cristã. Estamos certas?
— Certíssimas.
— O Padre Fulgêncio também pensa assim e falou que os padrinhos dispensam os pais durante a liturgia. Por isso, não vai ser preciso transferir o batizado para a paróquia dele nem ele vai fazer questão de batizar a menina. De acordo?
— De acordo.
— Então, vamos poder marcar a cerimônia para um dia da semana em que você possa ser liberado da concentração, o que não irá chamar a atenção de ninguém antecipadamente.
— Não entendi. Se estou dispensado da cerimônia, por que vocês querem que eu esteja presente?
— Não seja engraçadinho. Você entendeu perfeitamente que não é pra ir à igreja, mas precisa estar na recepção dos convidados em casa.
— Precisa ser em casa? Não será melhor no salão do condomínio?
— Se você reservar o salão, com certeza isso irá cair no conhecimento dos jornalistas. Depois, vamos trazer apenas os mais chegados e este apartamento é suficientemente grande para abrigar umas cem pessoas.
— Vocês estão pensando em convidar o bairro todo?
— Disse cem mas não vão passar de trinta. Quer ficar sério pelo menos por alguns instantes?!
Arnaldo quis participar mas foi muito mal recebido pela esposa:
— Ele está representando uma comédia: na qualidade de espírita não dá valor aos atos exteriores do culto católico.
— Você deve ficar ninando a menina. Cuidado que ela pode regurgitar em sua farda, o que seria bem feito.
Rosinha, que se sentara no braço do móvel e acariciava os cabelos do marido, esclareceu:
— Posso garantir que Teo está contente que as providências estejam sendo feitas pela senhora. Ele teria de mandar chamar os padres aqui, já que está muito difícil de circular pela cidade. Agora ele está indo à escola com escolta de três seguranças.
Teotônio não resistiu:
— Quatro. Não se esqueça de que você é a minha garantia de sobrevivência aos ataques femininos.
— É isso aí!
Dona Vilma pôs fim à conversa paralela, levantando o problema mais crucial:
— Quem vocês vão escolher pra padrinhos?
Teotônio respondeu:
— Isso nós já fizemos; dois católicos de quatro costados: Dona Vilma e Seu Arnaldo.
A mãe foi taxativa:
— Eu aceito, mas há um porém: Dona Flávia vai ficar enciumada.
Foi Rosinha quem lhe abalou a certeza:
— Minha mãe está mais pra espírita do que pra católica. Ela tem freqüentado regularmente o centro espírita, desde que Renato mandou aquela mensagem. Depois, ela não larga os livros de Kardec. Se a gente a convidar, ela não vai aceitar.
Arnaldo demonstrou prudência:
— Se vocês me permitirem participar, devo advertir para o fato de que não convém arriscar ferir a sensibilidade dela, já que ela não tem mais o marido pra oferecer como padrinho. Chega que seu tio serviu pra conduzi-la ao altar.
Teotônio reforçou a observou:
— Bem lembrado. Então, vão ser vocês dois, porque Rosi e eu assim queremos.
Dona Vilma insistiu:
— Vocês não pensaram em alguém mais jovem, que fique mais tempo na vida com a sua filha, apadrinhando-a, quer dizer, dando-lhe presentes finos e caros...
Teotônio interrompeu-a:
— Quem poderia fazer isso seria um dos craques da seleção que jogam no exterior e que me mandam farta correspondência, sempre sugerindo que eu aceite as propostas dos estrangeiros.
Dona Vilma esclareceu:
— Estava pensando nos diretores do clube, no Renildo, nos seus antigos patrões...
— A senhora está querendo que eu diga o nome do meu irmão, que vai preencher todos os requisitos. Todos, menos dois: ele está deixando de ser católico e não tem quem possa formar um casal com ele.
Dona Vilma ainda fez uma última tentativa:
— Wilsinho pra padrinho e Dona Flávia pra madrinha.
Arnaldo, dessa vez, entrou decidido:
— Mulher, você está juntando dois espíritas. Não ouviu o que eles falaram? Diga logo que você está muito contente em ser a madrinha, tanto que já está correndo atrás de tudo.
Dona Vilma fez de conta que ninguém dissera nada e concluiu:
— Vamos esperar que Jandira complete quatro meses. Ela vai sair nas fotos com expressão de maior felicidade. Está bem assim?
Foi Teotônio quem encerrou o assunto:
— Mãe, a senhora manipulou a gente como bem entendeu. Vamos jantar?
— Primeiro vou ligar pro seu irmão. Quem sabe ele queira fazer companhia à gente.
Rosinha pegou a filha, que dormia no colo do sogro, e levou-a para o quarto, dizendo que iria verificar se podiam mandar colocar a mesa.
Enquanto isso, pai e filho seguiam para a sala de jantar, elogiando Arnaldo o bom gosto dos decoradores:
— Tudo de primeira nas salas e quartos. A cozinha é pura funcionalidade, sem falar na beleza dos banheiros e do jardim de inverno. Custou caro, mas um imóvel como este nunca vai perder valor.
— Pai, estive pensando em criar uma fundação de amparo à juventude carente das favelas. O senhor, que é um homem prático, que tem a dizer a respeito?
— Você já visitou instituições como essa?
— Tenho visto reportagens na televisão e nas revistas.
— Não é a mesma coisa. Nem dez por cento dos rapazes e moças são atendidos. Se houver interferência no comércio de drogas, tudo vai por água abaixo.
— Quer dizer que são os criminosos que mandam nesses lugares? Não há como reverter a situação?
— Tudo quanto você tem recebido é uma isca perto dos ganhos das quadrilhas. Acredite em mim: se auxiliar os pobres e miseráveis fosse bom para o crime organizado, ninguém faria mais por eles. Não precisaria o governo se preocupar em colocar escolas, em fundar postos de saúde, em estender os encanamentos de água e esgoto, em assegurar o policiamento, em dar ares de cidade aos becos e vielas. O dinheiro que você gastar corre o risco de alimentar as redes do crime.
— Como assim?
— Você vai treinar pessoas pro exercício de profissões. Elas serão absorvidas pelos marginais, porque eles se utilizam de todos os recursos com a finalidade que têm em vista, seja pra enriquecimento dos chefões, seja pra manutenção da estrutura de serviços, como a distribuição das drogas, a prostituição, o comércio de armas, inclusive com a corrupção dos agentes das instituições civis e militares, como no caso de juízes que dão liberdade aos condenados, diretores de presídios que proporcionam vida de nababos aos que transformam a cadeia em casamatas, de onde dirigem as quadrilhas. Não se esqueça de que são muitas as campanhas políticas custeadas por eles. Tudo tem seu preço: se vacilar, morre.
— Quer dizer que não vale a pena tentar melhorar a condição de vida dos mais infelizes?
— Eu não disse isso. O que estou dizendo é que, a uma organização tão poderosa, se deve opor outra ainda mais. Se há infiltrações até nas forças armadas, onde a disciplina é muito rigorosa, imagine o que eles não vão fazer junto a uma pequena corporação de caráter particular.
— O que o senhor recomendaria?
— Eu diria pra você não criar nenhuma instituição nova. Contribua dando amparo às famílias, retirando-as do ambiente maléfico, ajudando-as a se empregar, fazendo os menores estudar. Para isso, procure montar pequenas indústrias, possibilitando que os empregados se tornem sócios, com participação nos lucros e também nos prejuízos. Dê responsabilidade de gerenciamento da empresa às pessoas.
— Isso uma pessoa sozinha não irá conseguir fazer. Vai ter de se valer de um escritório, ou seja, daquilo que chamei de fundação.
— Concordarei com você, desde que as pessoas escolhidas sejam moralmente sadias, o que não é muito fácil de achar.
— Ou, caríssimo senhor Arnaldo, poderei seguir a sua sugestão, dando assistência financeira aos centros espíritas de todo o país, começando por aqueles cujas diretorias conheço.
— Essa sua perspectiva não é abrangente. Os centros espíritas dão assistência material e espiritual, mas estão muito longe de se constituírem em centros de recuperação social. Para realizar o que você está pretendendo, terão de passar por fortes transformações, fundando escolas...
— Pai, a Igreja Católica possui uma larga rede de escolas, de hospitais, de clínicas de recuperação de dependentes de todo tipo etc. e tal. Mas também possui um corpo de profissionais (se assim posso chamar os missionários, os sacerdotes, os padres, os monges, as freiras etc.) que vivem às expensas de seu trabalho. Os centros espíritas não contratam. Quase exclusivamente subsistem do voluntariado de todo tipo de pessoas. Quer saber de uma coisa? Estamos conversando como quem irá acabar no inferno.
— Como assim?
— É lá que residem os bem intencionados...
— O que não podemos negar é que é muito fácil de conversar a respeito de fazer benemerência, quando se está nadando em dinheiro. Você conhece muito bem a história do rico, do camelo, do reino e do fundo da agulha...
— Agora o senhor me entendeu. É isso que está me deixando preocupado, porque pra mim tudo tem caído do céu e ninguém protesta contra a fortuna que acumulei em pouco mais de um ano. Ao contrário, sou apontado como o maior exemplo de herói nacional.
Dona Vilma veio avisar que Wilsinho iria jantar com os companheiros da escola e que os empregados estavam só aguardando a ordem para servirem os acepipes.
Arnaldo ainda teve tempo para um conselho:
— Por que você não conversa a respeito com o seu professor de filosofia?



23. O PRIMEIRO PROJETO

Absteve-se Teotônio de conversar com Ernesto, para evitar que o amigo lhe esmiuçasse os ganhos. A idéia lhe fora passada por Rosinha:
— Que você discuta seus planos com seu pai, tudo bem. Afinal, ele está a par de todos os seus negócios. O professor, porém, tem vaga idéia de suas remunerações, no máximo, podendo deduzir que os ricos devem fraternalmente acudir os miseráveis.
Teotônio ainda quis argumentar:
— Talvez ele possa fornecer-me pistas abstratas...
— Tais pistas eu mesma posso dar-lhe: estamos beirando os dezoito anos de vida. Tudo quanto temos acumulado o foi no último ano. Deus não irá cobrar nada de nós, como Jesus cobrou do jovem rico, cujos haveres eram de raiz. Seja mais piedoso para consigo mesmo e deixe passar alguns anos, até que se firmem os conceitos evangélicos em nossas mentes.
— Estou vendo que você também tem pensado sobre o assunto.
— Tenho porque estou me deparando sempre com os salários que pagamos tão regiamente aos empregados, pensando que, até bem pouco tempo, os nossos pais se contentavam com menos da metade, rejubilando-se no final do ano com as gratificações. Pensando positivamente, o Professor Ernesto, somando os três ordenados que recebe, não chega ao que pagamos ao nosso mordomo. Essa não é uma boa razão para não revelar-lhe o quanto temos guardado?
— Penso que você tenha definido muito bem a situação. Contudo, não vejo motivo para esperar para pôr em prática a benemerência que sou capaz de realizar, posto que de maneira precária.
Rosinha ainda ponderou:
— Não se esqueça de que, oficialmente, você está colaborando para que o governo aja em prol de maior justiça social, uma vez que todos os impostos são pagos rigorosamente. Duvido que outros craques milionários façam o mesmo...
— Rosinha! Rosinha!
— Não me censure. Estou sendo realista, baseando-me no noticiário que acusa os que recebem em moedas estrangeiras de terem polpudas contas em paraísos fiscais. Isso sem falar naqueles que estão sendo processados por remessas irregulares de fundos ao exterior.
— Querida, tenho pensado bastante a respeito dos depósitos que são feitos em meu nome, conforme os contratos com as firmas que me patrocinam. A bem da verdade, todo aquele dinheiro representa ínfima parte do que arrecadam através de minha imagem. Se estou colaborando com o governo, de qualquer modo, as quantias provêm do próprio povo.
— Provêm da parte do povo que pode dispor.
— Até aí eu vou. Mas será que os produtos que anuncio correspondem às reais necessidades de quem os adquire? No caso das minhas atuações como futebolista, inevitavelmente, sou forçado a concluir, concordando com antiga observação, que o futebol é um vício...
— É o ópio do povo...
— Isso.
— Contudo, não seremos nós quem irá afastar o público dos estádios.
— É lógico que não. Como costuma dizer meu pai, enquanto se discute futebol, não se pensa em roubar ou em matar, embora muitos lhe atribuam a responsabilidade dos tumultos, das algazarras, dos excessos...
No dia seguinte, Teotônio decidiu-se por levar a efeito seu plano de criar uma fundação beneficente.
Acertou por telefone com o Doutor Rosalvo a melhor hora de se encontrarem, tendo ficado decidido que o antigo patrão iria ao apartamento do craque, à noite, uma vez que todo o dia estava tomado entre ir à escola, ao treino e à sessão de fotografias com os novos uniformes do clube.
De fato, antes das dezenove horas, o advogado era atendido por Rosinha, prevenida da visita desde cedo pelo marido:
— Que bom que o senhor pôde atendê-lo a domicílio, doutor.
— Não fora pela finalidade magnífica que me foi anunciada, só a alegria de poder cumprimentar tão ilustre família me deixaria satisfeito. Como Jandira está crescida!
— Doutor, o senhor não sabe que amor de menininha é ela!
— Estou vendo que é muito esperta. Veja como sorri para mim. Que gracinha!
Realmente, a criança se desenvolvera rapidamente, física e mentalmente, tanto que as avós estavam ultimando os preparativos para o batizado.
— O senhor não se incomoda de ficar uns instantes com o James, porque preciso verificar como andam as coisas para o jantar?
— Não precisa preocupar-se comigo.
— Não estou preocupada. Quero ver se as minhas secretárias estão dando conta do recado. Vão ser vinte pessoas à mesa. Também vou avisar o Teo de que o senhor já chegou, pra ele se apressar. Quando fica pra tirar fotos, sempre se atrasa. Esteja à vontade.
Voltando-se para o mordomo, orientou-o:
— Providencie para que o Doutor Rosalvo se sinta em casa.
Diante de pessoa recebida com tanta consideração, James perfilou-se, aguardando que se manifestasse.
Rosalvo levantou-se e lhe estendeu a mão:
— Muito prazer! Eu queria muito conhecê-lo, tanto Teo fala do senhor.
James correspondeu ao gesto, formalizando a postura e respondendo convenientemente:
— Procuro cumprir meu roteiro de tarefas o melhor que posso. O doutor bem sabe que jóia de criatura é o meu patrão. Deseja algum aperitivo, um chá gelado, refrigerante?...
— Traga-me uma tônica com limão, por favor.
— Alguma preferência quanto à marca? Prefere que seja diet?
— Qualquer uma. Pode ser.
Sozinho por alguns momentos, o advogado pôde avaliar o bom gosto da decoração e a finíssima qualidade dos objetos. Sobre a cômoda, chamou-lhe a atenção uma peça de aço, espécie de âncora estilizada. Desconfiou tratar-se de escultor conhecido internacionalmente, o que confirmou lendo a assinatura em destaque numa das bolas que substituíam as tradicionais farpas que se agarram ao solo no fundo das águas. Ia começar a fazer considerações a respeito das sugestões que a inusitada forma lhe provocava, quando voltou o criado.
— Está muito bem, obrigado! Eu só gostaria que me ligasse a televisão.
— Perfeitamente, doutor.
James retirou um controle remoto de uma das gavetas do móvel que ostentava a escultura. Acionado o minúsculo aparelho, abriu-se um compartimento na parede. Com a descida para trás do móvel do quadro que a ornamentava, surgiu uma tela de mais de sessenta polegadas, que se iluminou automaticamente, colocando à vista do advogado uma figura feminina envolta em ricos trajes tradicionais japoneses. Antes que a personagem começasse a orientar o espectador a encontrar o canal preferido, James acionou o controle remoto, tornando a busca manual.
— O senhor gostaria de assistir a algum programa em especial?
— Noticiário.
— Vou colocar o quadro dos diversos canais jornalísticos e o senhor irá escolher o que melhor lhe agradar.
Tendo repartido a tela em oito seções, apareceram oito programas diferentes. Com o controle na mão, Rosalvo escolheu um dos canais, que dominou a tela toda. Não teve tempo, porém, de ouvir integralmente a notícia da hora: Teotônio chegou, dando-lhe demorado e afetuoso abraço, comentando:
— Esta é a maravilha eletrônica mais avançada hoje em dia: tela plana absoluta, visor de cristal líqüido, som distribuído por toda a sala. Os programas musicais apresentam as orquestras como se estivéssemos no meio dos instrumentos.
— Eu não sabia, meu caro, que a chamada televisão de plasma era tão poderosa. Também não suspeitava que houvesse telas tão grandes.
— Essa é a maior no mercado internacional.
— Deve ter custado uma nota...
— Presente do dono da fábrica como recompensa por eu deixar-me fotografar ao lado e dentro dela.
Nisso uma reportagem chama a atenção de ambos: era o próprio Teotônio dando uma entrevista, logo após o término do treino.
— Doutor, o senhor faz questão de que a televisão fique ligada?
— Você não está interessado em ver se tudo quanto disse foi respeitado?
— No começo, não perdia programa algum. Agora, pouco me importa o que façam com a minha imagem. Enquanto estiver no coração do povo, eles não vão poder macular o meu nome. De qualquer modo, eu sei de cor as perguntas e respostas e posso fazer-lhe um resumo.
— Obrigado. Pode desligar.
Teotônio deixou o aparelho à mostra, pondo-o em compasso de espera, emitindo coloridas e brilhantes imagens de aquário.
— Então, doutor, estudou a minha proposta?
— Fiz alguns levantamentos importantes e posso dizer-lhe, sem medo de errar, que fundar um instituto de benemerência irá exigir um plano muito bem elaborado, além de muito dinheiro. Antes de mais nada, preciso saber se você está mantendo a intenção de ingressar na universidade.
— Estou terminando o ensino médio e vou prestar os exames do concurso de habilitação no final do ano; inclusive, já estamos devidamente inscritos.
— Vocês devem estar estudando bastante.
— Além do curso que freqüentamos voltado para as provas, temos tido o auxílio de corpo docente especializado, com o qual treinamos todas as matérias. Depois que voltei aos exercícios físicos e às partidas, tenho tido menos tempo, tanto que suspendi os estudos dos livros espíritas, o que pretendo retomar antes do início do ano letivo na faculdade.
— Você espera concorrer para entrar numa instituição oficial ou particular?
— Estou preparando-me para as Arcadas do Largo São Francisco.
Rosalvo meneou a cabeça, irresoluto quanto à opinião que a consciência lhe mandava dar. Teotônio observou o gesto sutil e solicitou franqueza.
— Pois bem, meu jovem e querido amigo, os horários ali são inflexíveis e o desempenho dos alunos é cobrado com rigor, porque os lentes desejam manter o prestígio que granjearam através da formação de gerações de brilhantes juristas. Para alcançar êxito, você deverá traçar roteiro curricular que lhe permita aprovação, no mínimo, nas disciplinas semestrais.
— Estou sabendo. Os meus orientadores me descreveram as torturas dos que não conseguem acompanhar o ritmo dos professores. Mas essas águas ainda estão longe de passar sob a minha ponte. Aonde o meu velho e querido amigo deseja chegar?
— É simples. Acredito que qualquer pessoa que invista doze milhões de dólares em algum empreendimento vá desejar acompanhar o emprego deles e isso irá absorver a atenção e o tempo...
— Quem disse que eu quero investir tudo isso? Eu lhe falei em um milhão de euros.
— Essa quantia é insuficiente para cobrir os gastos de uma fundação que se preze. Dá para inaugurar os serviços. Mantê-los é outra história, pois toda fundação tem de gerar recursos para não depender exclusivamente das doações. Ora, para obter lucro, há que produzir bens de consumo, o que significa a compra de propriedades e a criação de estabelecimentos agrícolas, industriais e comerciais. Segundo as informações que levantei, poucas fundações têm tido vida longa. Assim mesmo, as que sobrevivem recebem verbas oficiais de vulto; ou, o que não é para já, angariaram grandes fortunas de magnatas que indicaram em testamento a sua vontade soberana.
— Vejo que o senhor veio preparado para me dissuadir do intento.
Rosalvo levantou-se, aproximou-se da escultura de aço e, erguendo-a com esforço, finalizou:
— Esta obra de arte deve ter custado muito caro. No entanto, para que valha milhões de vezes mais, há de deixar passar o tempo, esperando a época da consagração mundial do escultor. Da mesma forma, os haveres do meu antigo funcionário terão de consolidar-se, criar raízes, enrijecer o caule, abrir a copa, florir e frutificar, para que se possam colher os benefícios salutares para os infelizes.
— Em outras palavras, doutor: o senhor me recomenda cautela e paciência, para não entornar o caldo.
— Exatamente. Enquanto isso, destine pequenas quantias para algumas entidades reconhecidamente honestas. Não distribua seu dinheiro às escâncaras, para não vir a ser iludido pelos espertalhões de plantão. Faça-o através de pessoas de sua confiança e registre todas as doações, com o fito de notificar o fisco. Apontando a razão social das entidades beneficiadas, a receita poderá cruzar as informações e avaliar se as dotações foram consignadas em suas respectivas declarações de renda. Fazer o bem, sim; é óbvio. Facilitar a fraude, jamais: é contribuir para a falsidade, a imoralidade, a desonra... Você irá aprender muito mais na Faculdade de Direito.
— O que o senhor achou dessa escultura?
— Achei muito bem acabada.
— É sua.
— Olhe que eu aceito...
— Não faça cerimônia. Vou pedir para o James colocá-la na caixa original, conforme eu a trouxe da Europa.
— Muito obrigado.
Ia Teotônio acionar a campainha para chamar o mordomo, quando entraram na sala Arnaldo e Renildo.
Ao se deparar com o advogado, Arnaldo exclamou:
— Ora, viva! Vamos ter uma reunião de negócios!
Teotônio desconfiou de que teria havido alguma confabulação, mas guardou silêncio, enquanto abraçava o pai e estendia a mão ao empresário.
Todos acomodados, o craque dirigiu-se aos recém-chegados:
— Estava recebendo uma aula de...
Rosalvo interrompeu-o:
— Aula nenhuma. Teci apenas algumas considerações a respeito da generosa proposta do nosso herói de formar uma fundação de amparo aos necessitados. De resto, fiz papel de advogado do diabo, pois tentei dissuadi-lo da idéia, ao menos por uns tempos, sugerindo-lhe que realize pequenas doações a entidades filantrópicas idôneas.
Teotônio admirava a facilidade verbal do ex-patrão, que, com um gesto, convidou-o a que confirmasse o que dissera.
— É verdade. Ou quase. Pelo menos ele discorreu com conhecimento de causa, o que me obriga a repetir que me deu uma aula, para não dizer uma lição. O pensamento de meu pai eu já conheço. Gostaria de ouvir a opinião de Renildo.
Este não titubeou:
— Quanto o meu pupilo está desejando dispor para as obras de caridade?
— Vou ser prático, respondeu Teotônio. Se não constituir uma empresa com tal finalidade, para a qual havia pensado em reservar um milhão de euros, penso que uma quantia de vinte mil euros mensais pode ser distribuída.
Renildo fez um gesto solicitando que todos aguardassem o resultado de umas contas que vinha fazendo no laptop. Finalmente, esclareceu:
— Meu caro, você acaba de diminuir três mil euros do total que me autorizou a doar.
As outras três personagens em cena ficaram boquiabertas. Teotônio mais que ninguém.
Renildo prosseguiu:
— Só para centros espíritas, igrejas, mesquitas, sinagogas e tendas de umbanda, são perto de quinze mil euros. Acrescentando outras instituições, como hospitais, orfanatos, asilos, centros esportivos etc., a quantia ultrapassa os vinte e três mil euros. Não se esqueça de que tenho todas as ordens para contribuição, como também mantenho arquivados, para efeito de prestação de contas, todos os recibos. Não é à toa que precisei montar um escritório contábil só para os seus haveres e deveres.
— Eu não sabia que era tanto!
— Só não é mais porque tenho tido o cuidado de investigar todas as indicações que recebo, anulando muitos benefícios.
— É que eu lhe confiei tal atribuição.
— Que eu cumpro fielmente, caso contrário vamos ter de responder pelo crime de patrocinar malfeitores. Está aí seu pai que me tem amparado oficialmente. Graças a Deus, ele ainda não se aposentou, embora possa fazê-lo quando bem entender.
Arnaldo justificou-se:
— Estive pensando seriamente a respeito mas achei melhor esperar ser promovido, para que meu soldo cresça um pouco e se mantenha até o final dos meus dias.
Teotônio aparteou:
— O senhor sabe muito bem que eu posso cobrir qualquer quantia que o Estado venha a pagar-lhe.
— Meu filho, o que você já me paga é dez vezes mais. O que me importa é fechar a minha conta na hora certa. Depois, sempre é bom ter alguém lá dentro para conhecimento do que se passa nos bastidores, por detrás das cortinas...
Rosalvo apoiou-o:
— Aposentadoria antes da hora causa forte sensação de dever não cumprido. Eu mesmo já deveria ter dependurado as chuteiras há seis anos, mas continuo à frente de todos os processos, com a mente desperta, ensinando aos jovens muitas das manhas, artimanhas e algumas patranhas do ofício.
A entrada em cena das mulheres encerrou a reunião.



24. O SEGUNDO PROJETO

Numa tarde em que se dera ao luxo de ficar em casa a espairecer, dispensado das aulas e das demais atividades de um dia normal de trabalho, por força de paralisação dos transportes coletivos que deixou a cidade tumultuada, Teotônio passou em revista os antigos arquivos do computador, dando com o programa de reprodução das feições dos suspeitos de crimes, em que realizara o retrato do seqüestrador do avião.
Como que inspirado, imaginou-se realizando uma série de cenas, como nas histórias em quadrinhos, em que um herói juvenil combate o mal e salva as pessoas, em geral crianças, púberes e adolescentes, das garras das tentações dos vícios e das riquezas.
Entusiasmou-se com a perspectiva de criar uma publicação mensal, pensando ser absolutamente viável, ainda que não atinasse direito com os custos e o marketing necessário para que o empreendimento obtivesse sucesso.
Foi saber de Rosinha que sugestões poderia ela dar de imediato. Encontrou-a amamentando Jandira, que lhe sugava o seio já meio adormecida.
— Querida, quero saber sua opinião a respeito de outra forma que bolei de ajudar as pessoas, principalmente a juventude.
— Você sabe o que eu penso a respeito da prática da caridade nesta fase de nossas vidas.
— Tudo bem. Não estou pensando em auxílio material. Quero dar-lhes apoio espiritual. Eu sei que existem muitos livros espíritas, católicos e de outras religiões. Sei também que...
— Querido, você quer constituir uma editora; é isso?
— Talvez também precise criar uma editora. O que estou achando bastante plausível é dar ao público juvenil um herói que pratique o bem, livrando as pessoas dos perigos.
— Há algum que não faça exatamente isso?
— O meu herói não usaria de violência. Não portaria armamentos. Levaria um raio de luz, por exemplo, ou um espaçador temporal com o poder de suspender os atos, dando às personagens momentos para reflexão a respeito das atitudes que estão sendo tomadas, como nos filmes quando as lembranças das personagens voltam em flashback, mas com a possibilidade de discussão dos pontos com o protetor-herói. Qualquer coisa nesse sentido.
— Quem irá realizar os desenhos: você?
— Eu posso até rascunhar alguma coisa, já com uma narrativa definida. Mas sei que não terei talento nem tempo para nada disso. Vou precisar contratar uma equipe, além de conseguir a assistência do Vieira. Quem sabe Ernesto se interesse e acampe a idéia, pondo-se à frente do projeto. Sempre poderei pagar-lhe melhor do que ele ganha na escola.
Rosinha admirava os arroubos do marido. Parecia vê-lo arquitetando as jogadas que redundavam em gol. No gramado, porém, Teotônio era prático e sempre achava o caminho mais curto e seguro para favorecer os companheiros ou para arrematar. Assim refletindo, encontrou o que lhe pareceu o melhor parecer:
— Aprovo completamente a sua idéia, nos termos em que você as colocou, ou seja, preparando uma ou duas revistas, para dar forma às suas pretensões. Encontrar quem realize o trabalho não haverá de apresentar dificuldade. O que eu lhe peço é que não se deixe absorver pelo projeto a ponto de se descuidar da preparação para o vestibular.
— Eu queria ouvir um incentivo seu. Ouvi. Muito obrigado, Rosi, querida. Mas não vou começar nada sem consultar meu procurador, meu pai e meu irmão, especialmente este, que deverá aprovar tudo, passando-me muitas experiências que eu não tive.
De volta ao computador, veio-lhe à mente que Rosinha, dando o peito à filha, executava como se fora seu primeiro projeto. O segundo formulara através das recomendações.
Sem pestanejar, ligou para Wilsinho:
— Onde você está, mano?
— Em casa. Não me atrevi a ir treinar, apesar de poder ir a pé. A televisão está mostrando vários ônibus queimados, inclusive na avenida do estádio.
— Não vi nada. Tenho estado entretido com meu novo projeto: a publicação de uma revista mensal de histórias em quadrinhos.
— O que você pretende com isso?
— Quero ajudar a mocidade através da linguagem visual. Eu sei que são poucos os que lêem livros, menos ainda os de formação moral. Penso que os gibis ainda têm livre trânsito entre os jovens.
— Eu sirvo de exemplo?
— Por que não, Wilsinho?!
— Não me interesso muito por essas publicações. Outro dia, o professor de português pediu que a gente lesse qualquer coisa e a maioria copiou resumos extraídos diretamente da Internet. Aí ele perguntou quem lia as histórias em quadrinhos. Ninguém lia. Aliás, dois de meus colegas disseram que os pais liam e possuíam coleções.
— É desanimador.
— Não foi essa a minha intenção. De qualquer modo, procure as estatísticas das editoras. Dê cunho científico ao seu projeto. Não fique no amadorismo.
— É você mesmo quem está tendo essas idéias ou está repetindo alguma orientação que recebeu na escola?
— É claro que estou reproduzindo o meu professor de Biologia. Mas você não acha que ele tem razão?
— Perfeitamente.
— Teo, qual o motivo de você ter ligado pra mim?
— Queria saber a sua opinião a respeito da revista, ou melhor, queria sentir uma voz mais próxima do público-alvo. Na verdade, pensei em algo mais profundo: gostaria que você me auxiliasse a analisar os temas de maior interesse dos adolescentes.
— Se o seu interesse é educativo, precisa consultar os pesquisadores das áreas psicológica e social.
— Eu sei disso, meu caro. Estou sondando a sua boa vontade. Que você acha em participar ativamente do meu projeto?
— Aceito, com uma condição.
— Diga.
— Eu só entro na equipe depois de formada, quando o projeto estiver concluído e pronto para ser executado. Até lá, vou continuar meus estudos, já que o futebol ainda não está produzindo frutos financeiros...
— Você não tem nem dezesseis anos e já foi convocado para a sub-15. Logo será a vez da sub-17. Mesmo que não jogue, vai ficar muito valorizado. Modéstia à parte, a minha fama não vale nada?
— Não quero discutir esse ponto agora. Aliás, se você quer saber a verdade: eu só não desaprovei o seu projeto editorial, porque tudo em que você toca se transforma em ouro. Quando você tiver algo bem concreto, pode me chamar.
— Você está se saindo melhor do que a encomenda. Vou desligar. Dê um beijo na mãe e um abraço no pai. Não vá sair por aí zoando com os colegas. Juízo!
— Um beijo na sobrinha e recomendações à esposa.
— Pense no que lhe pedi.
— Vou pensar, pode deixar.
Estivesse Teotônio muito preocupado consigo mesmo e, por certo, daria maior importância às observações do irmão. A referência ao fato de transformar em ouro tudo em que tocasse roçou-lhe a consciência, entretanto, ao invés de converter as reflexões em profunda análise da personalidade, simplesmente considerou que as circunstâncias de sua vida combinaram com a necessidade da população de possuir um herói, pensamento que o estimulou a incrementar seu plano de formular o projeto da revista com mais um ingrediente: o da felicidade de poder auxiliar as pessoas, imaginando que sua personagem ganhava em contextura moral, como ainda recebia os contornos religiosos da filosofia espírita.
Passou da meditação à ação e delineou o primeiro esboço da figura que estava criando na mente.
Desenhou a lápis, numa folha avulsa. Deu relevo ao rosto, buscando evitar lembrar-se dos heróis das histórias em quadrinhos. Desejou fazê-lo bem moço, com idade aproximada de dezoito anos, meio imberbe, com o cabelo espesso liso a cair-lhe sobre os olhos.
Considerou que vinha delineando um retrato de pessoa da raça branca e perdeu-se em raciocínios, quanto a dar prioridade aos descendentes dos europeus que vieram trazer sua civilização ao continente americano. Passou em revista os heróis de outras procedências, dando com jovens japoneses estilizados e negros fiéis a seus patrões. Recordou-se de um craque negro do passado cuja imagem dera vida a um herói infantil, em histórias que apreciara de menino. Viu-se retratado na figura à sua frente e não julgou que deveria atribuir-lhe as características de seu próprio físico.
Deixou incompleta a face e traçou rapidamente, de grosso modo, um corpo esbelto de atleta, exagerando no contorno dos músculos do peito, dos braços e das pernas. Conseguiu um monstro superdotado de força, como se proviesse de dentro das academias de ginástica, produto das drogas anabolizantes.
Crítico, Teotônio percebeu que os traços estavam pesados e a figura inexpressiva. Assim mesmo, considerou que tinha algum talento, particularmente quando apoiado pelos programas instalados no computador.
Observou:
“Se não me dediquei ao desenho, se não estudei com professores especializados, se pretendo seguir a carreira de advogado, se entendo de controlar a bola, arremessar aos parceiros ou arremeter contra o gol adversário, se tenho espírito criativo para me apresentar perante os jornalistas, sabendo comportar-me diante das câmaras, por que é que desejo estabelecer parâmetros de conhecimento prático em área alheia à minha formação e educação?”
Sentiu o moço que manejava as palavras com muito melhor propriedade e desenvoltura do que fazia prever sua precária habilidade com o lápis. Suspendeu o trabalho e começou a concatenar as idéias em torno dos fenômenos espíritas transformáveis em histórias com algumas personagens. Acabou concluindo que era preciso estabelecer um roteiro em que vários amigos atuassem para o efeito da prática do bem. Não demorou para surpreender outro problema:
“Como representar o outro lado da vida? E que corpo etéreo se deve atribuir aos espíritos dos mortos?”
Tais questões Teotônio não conseguiu resolver. Pensou em fantasmas colocados no meio de nuvens, mas julgou por demais concretas tais concepções, tanto que resolveu, provisoriamente, antes de ouvir o profissional que daria vida ao projeto, que os espíritos participariam da ação somente através da palavra, cujos balões apontariam para um ponto indefinido ao alto, caso proviessem de espíritos superiores, ou do chão, caso ditas por infelizes sofredores.
Iam por aí os pensamentos do nosso atleta, quando reconheceu o Professor Ernesto na chamada do celular:
— Às suas ordens, querido mestre!
— Precisamos conversar vis-à-vis.
— Cara a cara, face a face?
— Isso mesmo.
— Quando?
— Se possível, agora mesmo.
— Sobre?...
— O magazine ou fanzine que você está querendo publicar.
— Como é que soube disso?
— Um passarinho me contou.
— Esse passarinho tem nome?
— Vieira.
— E que outra gralha papagaiou ao ouvido dele?
— De nome Fulgêncio, que disse ter ouvido de sua mãe. Antecipo-me, antes que você caia no artigo de ridicularizá-la também.
— Pelo jeito, o aconselhamento vai ser sério. Será que terei o alvará de Vossas Senhorias?
— Não quero antecipar nada, mas a nossa idéia é um pouco diferente da sua. Como isso pode levar algum tempo, é melhor estarmos face a face.
— Vis-à-vis...
— Também. Chego aí em dez minutos.
— Vou deixar aviso com os porteiros.
Teotônio achou engraçado que um projeto seu causasse tanta preocupação às pessoas mais velhas. Pensou lá consigo:
“Que mal pode haver em despertar na juventude o interesse pelas ações de benemerência, através das historietas calcadas nos fundamentos espíritas? Essa conversa tem jeito de ser muitíssimo proveitosa. Pelo menos, vou ouvir as ponderações filosóficas de um mestre que é amigo, antes de tudo.”
Mal deu tempo de avisar Rosinha da chegada do professor e já a campainha anunciava a sua chegada.
Após cumprimentar a dona da casa e aluna, fazer festinha para Jacira, cujo desenvolvimento lhe causou real espanto, e afirmar que a cidade estava um caos, tanto que precisou deixar o carro na escola e vir a pé até o apartamento, Ernesto puxou Teotônio pelo braço, indo ambos conversar na sala do computador.
Foi Ernesto quem deu início ao diálogo:
— Meu caro, não me veja com rigores do Santo Ofício, que mandava queimar os suspeitos de apostasia. Simplesmente, venho avisá-lo de que os mentores espíritas encarnados primam pelo respeito à pureza doutrinária. Caso você não tenha suficiente cuidado no que respeita aos pontos básicos expostos por Kardec, irão proceder a uma propaganda contrária entre os freqüentadores das casas espíritas.
Teotônio sentia vontade de interromper para argumentar, porém, ao silêncio do interlocutor, ofereceu fisionomia atenta e disciplinada, desejosa de ouvir o restante do discurso.
Ernesto prosseguiu, meio incomodado com a atitude do jovem:
— Você não pense que não existam artistas na seara espírita capazes de elaborar revistas ilustradas, nas quais contariam histórias de feitos e proezas de heróis votados à prática do bem. Existem, inclusive, médiuns que incorporam desenhistas e pintores, para a realização de quadros maravilhosos e sugestivos, podendo também ficar à disposição de falecidos profissionais da área. Digo mais: à vista da difusão editorial e da capacidade de publicação de algumas empresas, a começar pelos prelos das diversas federações espíritas, seria de prever que tais obras de cunho popular já houvessem sido elaboradas e dadas aos públicos infantil e juvenil. Você deve estar entendendo o nosso ponto de vista: diante do ineditismo do empreendimento, há que se prever retração da parte das autoridades do setor.
O orador fez uma pausa, a ver se recebia alguma diretriz para onde encaminhar a fala. Como Teotônio mantivesse o mutismo inicial, resolveu realizar ele mesmo as possíveis perguntas:
— Quem atribuiu aos diretores das casas espíritas, aos dirigentes dos centros e das sedes regionais e aos componentes dos quadros federativos o poder de decidir a respeito do que deve ou não deve chegar às mãos dos afiliados? A própria condição de suas prerrogativas estatutárias, alcançadas, evidentemente, pelo notório saber que lhes facultaram a candidatura e a eleição para tais cargos. Quem os acusa de discricionários e preconceituosos relativamente às idéias originais consignadas nos textos que lhes são submetidos para análise e crítica, ainda que já impressos inadvertidamente? Os autores não consagrados ou aqueles cuja obra caiu no gosto do povo em geral, vendendo muito, mas sem notável arrimo nas teses kardequianas; os primeiros, por despeito; os últimos, por desfeita.
Ernesto não estava empolgando-se com as próprias palavras, que começavam a parecer-lhes ocas, sem repercussão, ao contrário de suas aulas, que atraíam a atenção dos alunos, sempre dispostos a participar e a discutir. Teotônio evitava até os sinais de cabeça indicativos de que estava acompanhando o fio dos raciocínios. De qualquer modo, o professor ainda teve ânimo para expor mais algumas idéias:
— A literatura espírita moderna está coalhada de obras de cunho ficcional, algumas de excelente qualidade. Entretanto, as mais aceitas pelos leitores, ou melhor, leitoras, são as que poderíamos acoimar de romances água-com-açúcar, histórias ou estórias que envolvem ligações amorosas quase sempre de atmosfera cármica, ou seja, que apresentam problemas de outras encarnações que se resolvem através das boas qualidades morais das personagens, adquiridas após muito sofrimento e sacrifício. Nada que se compare com as parábolas com que Jesus ilustrava os ensinamentos evangélicos, parábolas formuladas com o evidente intuito retórico da comprovação das teses morais superiores, diferentemente dos textos modernos que buscam os sentimentos, as emoções, através de vivência existencial em mundo de provações e expiação, o que me leva a considerar um último e, talvez, mais importante aspecto da relevância do cuidado que se deve ter ao compor-se a figura de herói encarnado na Terra: aqui ninguém é perfeito, de modo que a personagem central da história, obrigatoriamente, tem de apresentar falhas de procedimento, que se sanarão por meio das reflexões a que for induzido pelas ações praticadas em favor da humanidade. Ora, a partir desta visão realista, nenhum enredo poderá prescindir da apresentação de situações em que predominam a violência e o crime, senão os relatos de superação do mal acabarão inócuos, sem sentido. Sabendo-se que os próceres do movimento kardecista, o verdadeiro espiritismo, se empenham em formular ideais fundamentados em sociedade em que deve prevalecer a paz, a boa convivência, o auxílio mútuo, a benemerência, a boa vontade, o perdão, a recuperação dos que caem nas garras dos vícios, o trabalho em prol dos necessitados, em suma, a caridade, conforme o lema exaltado por Kardec: fora da caridade, não existe salvação, retratar pictograficamente as ações em que as pessoas praticam toda sorte de maldade contra outros seres humanos há de fomentar o espírito de revolta, a vontade da desforra, a necessidade moral da vingança. Parece-nos que o povo não irá aprender nada de novo, se mantivermos a antiga lei mosaica do olho por olho, dente por dente e fratura por fratura. Que pensa você a respeito disto tudo?
Teotônio deu um abraço espontâneo no amigo e não se furtou a responder:
— Penso que deverei submeter aos especialistas cada uma das revistinhas que minha equipe elaborar. Só espero que o senhor veja nelas tudo quanto nos passar desapercebido. Vamos jantar?
— Teo, querido, peço-lhe desculpas...
— Deixe disso, mestre. A suspicácia de vocês faz sentido. Basta pensar que a minha juventude faz deduzir que haja imaturidade em mim e que o herói que tento representar nos desenhos mais não passa do que o reflexo de minha própria personalidade. É muito compreensível que vocês ajam como anjos protetores, desejosos de me proteger das arremetidas intelectuais, em campo que não domino e para o qual pretendo carrear a capacidade de profissionais consagrados. Mas o que eu disse é certo: todas as historietas serão submetidas à apreciação de vocês.
Ernesto sorriu agradavelmente e contestou:
— Eu ia pedir desculpas por recusar o convite para jantar, mas a sua manifestação me permite ficar mais sossegado ainda do que já estava. O que eu quero pedir-lhe é que me ceda o computador durante as próximas horas, porque preciso realizar alguns contatos em função da tese que estou escrevendo para o doutorado.
— Desconfio de suas palavras, no entanto, caíram muito bem no contexto das observações que fiz. Use a Internet o quanto queira. Apenas, permita-me examinar a correspondência.
Em alguns segundos, dispunha-se na tela a relação dos e-mails. Rapidamente, Teotônio descartou os que ofereciam produtos e serviços, reduzindo para treze os que lhe interessaram. Entre estes, havia um que respondia à consulta que fizera a uma editora. Vendo que a resposta era positiva, fez questão de a ler para Ernesto:
— Estamos sempre abertos para as iniciativas de valor. Podemos estudar, preparar uma máscara do produto, fazê-lo passar pelo setor de artes gráficas e testar o resultado através de amostragem do público-alvo. Se estiver de acordo, estaremos chegando à sua residência antes das oito da noite. Confirme-nos o encontro.
Ernesto fez um gesto de admiração, porém, Teotônio, sem perda de tempo, já estava discando, no celular, o número impresso na tela.
Feitas as apresentações, o jovem perguntou:
— Conseguem vocês romper a barreira do tráfego?
— Para motoqueiros experientes, nada nos segura. Em dez minutos estamos aí.
Foi só uma questão de confirmar o endereço e logo se via Teotônio instruindo James quanto aos visitantes noturnos.
Não demorou, eram os dois rapazes introduzidos no escritório. Traziam pastas e puseram-se à vontade para desenhar no colo mesmo.
— Vocês não querem apoiar as pranchetas na mesa?
Heitor, o mais expedito, fez um sinal ao amigo Tomás, ambos se levantaram e seguiram Teotônio até a sala em que estava Ernesto pesquisando.
— Mestre, estes são os desenhistas que irão executar os primeiros esboços da minha aventura no campo das revistinhas.
— Mas são tão jovens! Não devem ter mais que dezoito, dezenove anos.
Heitor informou:
— Eu tenho vinte e dois e Tomás, vinte e um. O senhor errou por pouco.
— Faz tempo que se dedicam ao desenho?
— Desde crianças. Fomos colegas de faculdade. Aliás, o Tomás nem chegou a concluir o curso, sendo requisitado, como eu, para a equipe responsável pela criação da editora.
— Vocês vão permitir-me continuar o que vinha fazendo.
— Perfeitamente.
Teotônio não demonstrou mas, quando começou a explicar o projeto da revista, sentiu certa insegurança, como se tudo estivesse parecendo-lhe agora fora de propósito. Em largos traços, colocou os rapazes a par de suas intenções, esclarecendo que se tratava de um projeto cuja principal motivação era o auxílio moral e espiritual aos leitores infantis e juvenis. Falou de sua crença espírita e mostrou os primeiros impressos que fizera dos desenhos no computador.
Com base nos dados fornecidos, Tomás delineou rapidamente sobre a figura mal acabada os contornos do herói que Teotônio tinha em mente. Tão bem o fez que o autor se encantou, afirmando que era exatamente aquilo que imaginara.
— Reparando bem, este herói está muito parecido comigo.
Tomás abriu a pasta e retirou vários trabalhos, alguns diretamente realizados sobre fotografias de Teotônio.
— Estivemos estudando a sua fisionomia e achamos que era possível transformá-la num rosto carismático.
Teotônio coçou a cabeça:
— Vamos ter de mudar isso. Estou preso a um contrato de imagem. Não posso aparecer nem em efígie.
Foi a vez de Heitor participar da conversa:
— Basta contatar a agência de publicidade e combinar o marketing. Conversando a gente se entende.
— Eu não sei se vou gostar disso. Estou começando a cansar da idolatria que me está elevando muito junto à opinião pública. O meu herói tem de ter a virtude da modéstia, o que não aconteceria comigo, se meu rosto se visse divulgado para engrandecimento próprio. Como sabem, elogio em boca própria é vitupério. Estou querendo ajudar a divulgação do espiritismo; meu fito não é a promoção pessoal.
Heitor esclareceu:
— Nosso chefe foi quem nos deu a incumbência de desenhá-lo como o mocinho da história. Acho que ele não vai aceitar mudar isso. De qualquer modo, vamos estabelecer um roteiro simples, com uns vinte quadros, no máximo, para termos idéia mais exata de sua pretensão.
— Primeiro, eu quero que modifiquem o rosto do herói, tornando-o diferente do meu.
Tomás tomou a iniciativa e, em três tempos, mudou o formato da face, encavou mais as maçãs, aumentou levemente o tamanho do nariz, ampliou a testa e deu novo penteado à basta cabeleira.
— Que tal?
Teotônio pilheriou:
— Estava bem melhor antes.
Até Ernesto, que ouvia atentamente a conversa, achou muita graça.
Heitor insistiu:
— Como vai ser o enredo?
Teotônio pensou um pouco e reproduziu a primeira história que havia formulado:
— O nosso herói, que ainda não possui nome, caminha por uma rua deserta, quando é surpreendido por dois marginais, pequenos bandidos, que pretendem rendê-lo de arma na mão. Ele não se assusta nem fica com medo. Ao contrário, em voz alta, pede aos espíritos guardiães dos pivetes que os livrem da perversidade, ao mesmo tempo em que lhes entrega a carteira, onde se encontra sua cédula de identidade. Um dos garotos lhe pede o relógio, o agasalho e os tênis. O outro, de posse da carteira, descobre que se trata de artista plástico conhecido na cidade por patrocinar uma escola de futebol para meninos da favela. Depois de conversarem a respeito do ingresso dos dois na escolinha, tendo o nosso herói descrito as vantagens do procedimento moral, os rapazelhos devolvem o que haviam tirado dele e prometem comparecer, no dia seguinte cedo, para iniciarem vida nova.
Enquanto ia narrando a história, Tomás e Heitor confabulavam baixinho, rascunhando várias cenas. Ao final, uniram as várias folhas e deram continuidade à história, demonstrando que havia muitos balões vazios, sem as falas correspondentes das personagens.
Heitor explicou:
— Trata-se, evidentemente, do episódio inicial, já que se esperam acontecimentos que levem ao clímax da ação e ao desfecho. Houve uma promessa: a de que iriam os garotos ser recebidos pelo artista, no dia seguinte. Então, muitos fatos podem suceder, como a presença de traficantes e de policiais atrás dos pequenos bandidos, os pais deles e suas histórias paralelas, os outros meninos da escola de futebol e assim por diante.
Teotônio ia examinando quadro a quadro, notando desde o início que a roupa e os tênis levavam o logotipo do patrocinador do seu time.
— Vejo que vocês, de modo muito esperto, introduziram o merchandising dos produtos que divulgo. Não vou pedir agora pra apagarem, porque confio em que vão tentar obter a aprovação da marca. Mas me digam francamente: que vocês pensam desse roteiro?
Heitor e Tomás trocaram um olhar, tentando cada qual empurrar para o outro a responsabilidade da resposta. Enfim, Heitor se atreveu:
— Eu acho que, para introduzir o espiritismo desde o início, teríamos de concretizar a existência dos tais espíritos guardiães. De qualquer modo, nós não tecemos comentários quanto ao mérito. Isso vai ficar para o chefe, que é experiente e rigoroso.
— Ele me escreveu que testaria o público.
— Não se esqueça de que ele julgava que iria poder contar com um herói decalcado em sua personalidade, uma espécie de retrato físico e moral do ídolo de milhões de torcedores. Não posso garantir que a reação dele vá ser favorável.
— Que vocês me podem sugerir?
— Enquanto espera a resposta, escreva a continuação, começando por colocar as falas dentro dos balões. Dá pra tirar uma cópia de cada desenho?
Ernesto, que ocupava o computador, ofereceu-se para realizar a tarefa. De fato, em poucos minutos, o aparelho fornecia três cópias.
Despachados os desenhistas, lá ficaram aluno e professor trocando idéias a respeito da lição de casa que sobrara para o jovem autor.
— Que lhe parece, mestre: irei conseguir convencer o editor?
— Não sei, não. Se o interesse dele estava em utilizar o seu bom nome, a sua figura, isso vai ser difícil. Entretanto, esse aspecto não me aflige, porque sei que você pode arcar sozinho com a publicação. O que me importa é discutir a divulgação espírita pretendida. Está disposto a me ouvir mais um pouco?
— Perfeitamente.
— Vou começar pela formação profissional do seu herói: artista plástico. Você, desde logo, caracteriza a personagem como pessoa de mais de trinta ou quarenta anos, fugindo...
— Eu disse artista plástico como poderia ter dito jogador de futebol, cantor de rock, pugilista campeão mundial, astro das pistas...
— Todos que você acaba de citar apresentam habilidade inata e imediata, precisando de alguns poucos anos de treinamento. A nomeada de um artista plástico resulta de muitos anos de estudos e de bons relacionamentos sociais. Para se chegar a isso em menos tempo, só alguns gênios da literatura, da poesia, da filosofia, da matemática, da ciência, mas, neste caso, com um círculo de atuação muito restrito. Imagino que você não queira que as lições espíritas brotem naturalmente ou mediunicamente, sem esforço de entendimento, sem longas horas de meditação. Veja você mesmo: aos dezoito anos, vem dedicando-se às leituras doutrinárias, sem poder transferir os conhecimentos sequer aos companheiros de time. É certo que tem demonstrado superior dedicação aos necessitados. Eu mesmo, junto com meus filhos, constituo preciosa testemunha de seu arrojo e desprendimento, de sua coragem e amor ao próximo. Mas o povo que presenciou o salvamento dos feridos por sua iniciativa carece ainda de saber que sua fé é espírita. Quer saber de uma coisa: até que a idéia de transformá-lo no herói das historietas não está totalmente isenta de sentido.
Teotônio sopesava ainda os argumentos do professor, quando este acrescentou:
— Outro ponto com que discordo é colocar de início o conflito, para depois desenvolver o enredo. Explico-me: o encontro das personagens é fortuito. Sem que o leitor conheça a índole da personagem principal, logo se depara com atitude de absoluta calma, que anula a possível crise perante o ato criminoso. Permita-me fazer uma comparação com a sua própria vida. Se você escrever a história da vida que está levando, linear e sem problemas, com uma esposa e uma filha queridas, em ambiente luxuoso, poderá até ser convidado para um artigo dessas revistas que mostram a felicidade dos bem aquinhoados financeiramente. Que lição espírita se pode extrair disso? Muitas, se partirmos do princípio de que algo possa vir a constituir-se em empecilho para a felicidade da família. Aí, os espíritas irão buscar no passado as razões para a decadência moral, física ou econômica, transformando as personagens em exemplos do que seja encarnar-se em mundo de provações, de expiações. No caso do criador da escolinha de futebol da favela, sempre você deverá orientar os textos para o sofrimento de perder os garotos para os vícios e os crimes e para a alegria de subtraí-los da marginalidade, abrindo-lhes perspectivas de vida alvissareira, ou seja, vida proveitosa no sentido do aprendizado das lições dos espíritos que assistiram a Kardec ou dos ensinamentos morais de Jesus. Estou indo muito longe?
— Estou acompanhando seus raciocínios e devo confessar que estou admirado de sua capacidade de análise de umas poucas idéias transformadas em desenhos.
— Ainda devo pôr reparo noutro problema fundamental: a extração social dos antagonistas, ou seja, dos pequenos assaltantes. O que me importa preveni-lo, Teo, é quanto à linguagem que vão empregar. Você terá de abrir mão de seus estudos secundários e recordar-se das expressões que tantas vezes ouviu e utilizou na infância e na adolescência. O emprego da gíria regional será de obrigação. Mas qual? De onde? De que época? Um exemplo: escreva como os malandros de São Paulo; os do Rio de Janeiro vão acabar não entendendo. Pior ainda: os do Nordeste, os do Sul ou os de Portugal não terão como traduzir o que ficar registrado nos balões, a menos que se lhes falseiem as características peculiares. Em todo o caso, é problema menor ou não haveria condições para a existência de tantas revistinhas do tipo. E quando forem ouvir os tópicos da teoria espírita, estarão aptos a entender a formulação das frases? Neste caso, você deverá fazer como tantos escritores da tradicional literatura infanto-juvenil: vai ter de copiar do dicionário o significado das palavras, o que é possível e até plausível em obras escritas; quase impossível, em balões de falas. Paro ou continuo?
— Só mais um pouco.
— Um tema paralelo: e seu preparo para os exames de habilitação ao curso de Direito? Você deve ter percebido que está deixando-se impregnar inteiramente por esse seu projeto. Se, nos campos, seu desempenho depende de treinamento físico, na área intelectual, os conhecimentos só se fixam após a compreensão dos conteúdos. Você deve avaliar que objetivo é o prioritário. Se concluir pela formação universitária, não deve abandonar a escola, como fez o nosso desenhista Tomás, pois não haverá de ser advogado sem passar pelos cursos jurídicos. Que Rosinha pensa disso tudo?
Ernesto fez referência à mocinha porque, desde algum tempo, estava ela ouvindo as explicações.
Teotônio, que lhe dava as costas, foi quem se surpreendeu, como se, de repente, descobrisse que estava criando um mundo à parte, talvez para compensar a vida toda particular da esposa como mãe e nutriz de Jacira. Tudo lhe passou pela mente como uma faísca elétrica disparada pelo protetor espiritual. De qualquer forma, ficou atônito por instantes fugidios, sem dar demonstração de que adquiria consciência de um fenômeno psicológico relevante.
— Penso que estamos criando necessidades para muito além dos reclamos da natureza. Tenho pensado na tradicional recomendação atribuída a Deus: Crescei e multiplicai-vos. Acho que a palavra do Senhor é muito sábia, embora não veja como ele se tenha preocupado em orientar a inteligência dos homens de modo específico. Como vê, caro professor, as suas aulas de filosofia têm frutificado em meu espírito. Sendo assim, posso concluir que o Teo está cada vez mais afundando em pretensões...
Teotônio não suportou a recriminação da esposa:
— Querida, não vá acusar-me de nada, por favor.
— É claro que vou. Vou acusá-lo de ter um coração bondoso e uma alma generosa. O que está falhando é a sua inteligência, porque deseja colocar os pés em quatro barcos, quando, como todo o mundo sabe, o ser humano é bípede. Trabalhar como modelo, jogar futebol, estudar para prestar os exames vestibulares e, além de tudo, projetar uma revista de âmbito nacional é querer abraçar o mundo de uma vez.
— Você se esqueceu de que sou o cabeça da casa, marido dedicado e pai amoroso. E que ajudo meu pai e meu empresário nos negócios em que aplico o nosso dinheiro. No entanto, devo reconhecer que você está carregada de razão. Pelo menos, vou abandonar uma das tarefas que me sobrecarregam. Vocês podem adivinhar qual seja?
Ernesto, fazendo um gesto para que Rosinha não respondesse, gracejou:
— Eu sei o que você vai dizer. Vai dizer que vai deixar de ser o cabeça da casa, marido dedicado e pai amoroso.
A provocação pegou Teotônio de surpresa. Foi obrigado a confessar:
— Eu poderia dizer outra coisa pra contradizer, mas era justamente essa a brincadeira que tencionava realizar.
Rosinha aproximou-se da cadeira em que estava o marido e agarrou-o pelos cabelos:
— Veja lá, maganão!
Teotônio puxou-lhe as mãos e beijou-as, afirmando:
— Amanhã vou dispensar a editora.
Ernesto, meneando a cabeça negativamente, obtemperou:
— Não acho que essa seja a melhor coisa, a menos que você substitua essa atividade extremamente séria, por outras, vamos dizer assim, mais sociais, mais recreativas. O esporte, que você pratica profissionalmente, não lhe dá a compensação para o desafogo dos desafios da existência, como seria de esperar para aqueles que, como eu, fazem exercícios físicos apenas para manter o tônus muscular em dia. Os estudos poderiam distraí-lo e até diverti-lo, entretanto, nesta fase, apresentam-se eivados de responsabilidade. Não sei de seus negócios, porém, é fácil de conceber que, em tal área de atividades, haja...
Teotônio, que tivera um sobressalto com a impressão de que a direção dos pensamentos do amigo iriam levá-lo a tomar alguma decisão fundamental, interrompeu-o bruscamente:
— Amabilíssimo mestre, não precisa continuar. Vou conversar seriamente com Rosinha, pra saber o que será melhor pra ambos. Agradeço-lhe penhorado todas as explicações e orientações. Asseguro-lhe que foram valiosíssimas. O senhor terminou as pesquisas? Se houver terminado, venha dar o prazer de sua companhia, jantando conosco.
Ernesto apontou para o computador, afirmando:
— Vou ficar mais uma hora, uma hora e meia. Estejam à vontade, por favor. De resto, minha família sempre espera por mim para jantar, apesar de que hoje a confusão do trânsito vai obrigar-me a chegar atrasado, qualquer maneira.
— Pra isso existe a telefonia. Avise que irá ficar e libere a turma.
— Ainda é cedo. Farei isso se perceber que não poderei retirar o carro do estacionamento da escola.
— Tudo bem. Pode ficar o tempo que precisar.
Antes de se sentarem à mesa, por telefone, Renildo avisou Teotônio de que havia tratativas já bem avançadas de transferência do craque para um clube europeu, clube este que oferecia certa soma irrecusável, ainda que ele viesse a desfalcar o time atual no meio do campeonato.
O empresário perguntou se Teotônio sabia de alguma coisa.
— Não ouvi falar nada. Você sabe que a imprensa iria cair em cima de mim, se a notícia vazasse.
— Então, esteja prevenido.
— O que você me recomenda?
— Transferência imediata e contrato de, no mínimo, quatro anos, com cláusulas a serem estabelecidas quanto ao direito de imagem e demais atividades como modelo.
— Quanto posso pedir de férias para visitar meus pais?
— Esqueça. O dinheiro que você receber vai financiar quantas viagens forem necessárias deles e de seu irmão pra lá. Isso se você não levar a turma toda para viverem juntos.
— Vou estudar a proposta com Rosinha.
— Lamento, meu caro, porém, o clube tem de aproveitar a oportunidade. E você também, porque ficará muito mais valorizado.
— Renildo, você sabe que o dinheiro que estou recebendo constitui grande problema pra mim. Receber mais ainda...
— De lá, você poderá patrocinar muitos eventos no Brasil, inclusive favorecendo o prato e a educação dos pobres. Permita-me uma comparação que a convivência com o nosso Vieira me inspirou. Existem os espíritos protetores a quem cabe acompanhar seus pupilos, como verdadeiros anjos da guarda, não é verdade?
— Exatamente.
— Mas também existem os chamados anjos guardiães, responsáveis pelo sucesso da encarnação dos seres a quem prestam assistência. Não é assim?
— Pode ser.
— Existem ainda os espíritos de luz, que velam por grupos grandes de indivíduos, respondendo pelo desempenho das comunidades. Se você estiver lá longe, haja como os espíritos superiores. Não há de ser o contato quotidiano que irá torná-lo mais eficiente na tarefa de auxiliar os semelhantes.
— E se tudo desandar, como tenho visto acontecer com os ratos, que se divertem na ausência do gato?
— Você acha que estando aqui...
— Eu não acho nada, aliás, nem estou procurando. Nesta altura dos acontecimentos, estou vendo todos os meus projetos irem por água abaixo, principalmente os estudos.
— Isso é verdade. Mas sempre haverá de encontrar meios de prosseguir a educação quando se vir obrigado a dependurar as chuteiras. Acredite em mim: você irá ter muito mais tempo lá do que está tendo aqui. Eu só não estou jantando aí por causa do trânsito caótico. Você viu o noticiário da tarde?
— Não.
— A confusão vai continuar por mais dois ou três dias. Talvez os treinos e os jogos vão ficar suspensos. Espere comunicação oficial do Santoro.
— Com certeza, terei de me exercitar nos aparelhos aqui em casa.
— Ou vocês serão levados pra fora da cidade, onde poderão treinar à vontade. Pra isso é que existem os helicópteros e os heliportos, como esse do seu prédio.
— Entendi, eu vou pelo ar e os outros vão nas garupas das motocicletas.
— Muito boa sugestão. Eu mesmo vou aproveitar essa sua idéia, agora que existem muitos moto-táxis clandestinos pela cidade. Bem lembrado. Amanhã a gente se encontra, depois que me entender com a diretoria do clube. Reze por mim.
— Acho que você vai precisar.

Quinze dias depois, estreava o craque na Europa, plenamente instalado com a família inteira, pais e sogra, menos Wilsinho, que não lograra transferência para nenhuma agremiação estrangeira e ficara morando com os tios, no apartamento dos pais.



EPÍLOGO

Quando voltaram ao Brasil, durante as férias de inverno, Teotônio fez questão de avaliar pessoalmente o andamento de todas as entidades por ele patrocinadas. Gostou muito de tudo, pedindo ao amigo Renildo que aumentasse os valores distribuídos, já que, entre salários, prêmios e lucros provindos das empresas, a quantia anual projetava aumento de trezentos por cento.
Os amigos dos centros espíritas receberam-no com entusiasmo, uma vez que a revista de histórias em quadrinhos vingara nas mãos profissionais da dupla Heitor e Tomás. É verdade que os fenômenos espíritas davam ao herói com cara do jogador certa aura de poderes sobrenaturais, com os dons da visão a distância, do movimento espontâneo dos objetos, do conhecimento dos fatos pela leitura das impressões deixadas nos ambientes, da levitação, do transporte extático, da materialização, e todos os ditos mediúnicos, conversando, sendo exortado ou exortando espíritos de toda a escala evolutiva, segundo Kardec.
A única falha, ponderável falha do ponto de vista dos dirigentes espíritas, era que o editor não submetera jamais as publicações ao critério deles. Conversando a respeito com Ernesto, ouviu a seguinte explicação:
— Está claro que existe muito exagero em cada página. No entanto, é muito significativo o número de jovens que têm procurado os centros espíritas, com o intuito sério de aprender. Que tenham os orientadores bastante tato para não afugentarem os recém-chegados, impingindo-lhes conhecimentos doutrinários sofisticados. Mantendo-se apenas o básico, em breve, os rapazes e moças passam a questionar as explicações, recebendo aí as informações capitais para a compreensão do conteúdo das obras do codificador.

A notícia triste lhes foi dada por Artur e Esmeralda relativamente à filha Laura. Ela havia desaparecido levando Andrezinho e não deixara endereço. Os avós temiam pela sorte do neto, já que a filha, de há muito, consideravam perdida.
Explicava Artur:
— Se seu pai também tivesse vindo, ele poderia mobilizar a polícia. Nós demos queixa do desaparecimento, mas parece que ninguém se incomoda com as pessoas com débitos antigos em relação à sociedade.
Rosinha foi quem perguntou:
— Vocês não estão freqüentando o centro espírita?
Elucidou-lhe a tia:
— A gente acompanhava a sua mãe, que sempre queria ouvir o filho Renato dando comunicação. Desde que vocês foram embora, nós temos freqüentado a missa do Fulgêncio e mais nada. Mas a Laura não ia a lugar algum. Nunca foi de corpo e alma. Se compareceu duas ou três vezes depois que se engraçou com o marginal que lhe fez o filho, foi apenas para dar a impressão de que estava regenerada.
Teotônio observou:
— Vocês vão ver que logo ela vai voltar arrependida, a menos que esteja às voltas com o tráfico ou com o vício. Eu não prometo nada, mas é possível que venha a encontrá-la.
Artur limitou-se a apertar-lhe a mão, enquanto Esmeralda se desfazia em pranto:
— Vocês não sabem o que é se apegar ao neto. Se você conseguir trazê-lo de volta, Deus irá abençoá-lo pela eternidade.
— Esperem um pouco que eu vou fazer umas ligações.
De passagem, Teotônio solicitou ao mordomo que providenciasse água com açúcar para Dona Esmeralda.
Fechado no escritório, procurou no laptop um certo número de telefone que guardara desde quando desejara elucidar o caso da voz ao telefone. Era da sede da torcida organizada, desconfiança antiga de que ali se achava a chave do mistério.
Ligou e lhe informaram que a diretoria estava reunida. Quando se identificou, logo a mocinha foi avisar que o craque desejava falar com a pessoa com quem tratara um dia.
Não demorou e aquela mesma voz se ouviu:
— Queria falar comigo? Sabe quem sou?
— A moça não me disse nem quero saber. Vou direto ao assunto: Descubra pra mim o paradeiro da Laurinha do André e faça que ela volte à casa dos pais. Se você me fizer isso, vamos ficar quites, segundo a vida que salvei no acidente do estádio.
— Não vamos ficar quites, não. Este pequeno favor não cobre aquele. Só tem um pequeno problema: acho que ela está presa e o filho foi dado pra adoção. Em todo o caso, vou mantê-lo informado, mesmo que você esteja na Europa.
— Então, ficamos assim. Obrigado por tudo.
Teotônio ouviu o clique, ficando a imaginar o poder dos marginais quando aliados às forças vivas da sociedade. Voltou-lhe, naquele instante, as dúvidas que há muito vinha sufocando quanto à conduta do pai, terminando por refletir:
“Eu tenho muito em que pensar, para me preocupar com as ações dos outros. Vou fingir que driblei o adversário, que ficou caído lá atrás, impossibilitado de me alcançar para me atingir pelas costas.”
Gostou da comparação e, quando voltou para junto dos outros, vinha até com um sorriso nos lábios.

A sós com Rosinha, desejando esta saber como é que ele havia dado tanta esperança aos tios, Teotônio confessou:
— De certa forma, ao dizer-lhes que esperassem alguns dias, estava mentindo, pois a informação que obtive não era nada alentadora. Disseram...
— Quem disseram?
— Aquela mesma voz que me causou tanto medo no meio da noite.
— E como você chegou até ele?
Não foi fácil convencer a esposa de que estivera com o dedo no gatilho há muito tempo, só não atirando porque poderia ferir o próprio coração. Usou dessa linguagem figurada e retórica, para impressioná-la. Mas a moça não se deu por achada e insistiu:
— Você sabe que se trata de um bandido e pode, inclusive, localizá-lo e não vai tomar nenhuma providência? Ao menos, forneça uma pista às autoridades ou ao seu pai.
— Não sei se seria a melhor solução. Com meu ato de bravura, que às vezes considero apenas instintivo, mudei a opinião de muita gente a respeito do que é certo e do que é errado. Se não atingi tal ponto, pelo menos dei o que pensar, tanto que tal indivíduo se tornou, quem sabe, um meio-amigo e, com certeza, um protetor.
— Você está afirmando que os exemplos arrastam, conforme a sabedoria popular?
— Eu não conseguiria definir melhor o meu pensamento. Em todo o caso, o que me contaram é que sua prima poderia estar presa, estando o filho para ser adotado, ou coisa assim.
— Como é que o cara pode ter tantas informações?
— Basta pensar em que faça parte da quadrilha do André, que foi o que me levou a procurar por ele.
— Nossa mãe do céu!
— Agora, raciocine comigo. Se ela estivesse presa e o filho recolhido por ordem do Juizado de Menores, não teriam as autoridades dado conhecimento do fato aos avós? Ela mesma não teria contratado um advogado, que avisaria a família? É ilógico, portanto, o que me tentaram passar como verdade. Por isso, sabendo que eles estão bem, porque protegidos pela bandidagem comandada pelo pai da criança, é que disse ao Seu Artur e à Dona Margarida que não demorariam para terem notícia dos desaparecidos. Não é verdade que eu não poderia ter agido de outro modo?
Rosinha concordou e ambos apostaram que não passaria uma semana até que Laura desse sinal de vida.

Naquela mesma noite, porém, Teotônio sonhava, pela terceira vez consecutiva, vendo-se a caminhar com dificuldade, arrastando atrás de si pesada escultura de aço representando uma âncora sem farpas, a mesma que dera a Laura e, depois de estornada, presenteara ao Doutor Rosalvo. Desta feita, sentou-se no chão, percebendo que a corrente lasseava e se soltava por si mesma. Acordou assustado, certo de que algo estava sucedendo do outro lado do oceano com alguém da família.
Rosinha não estava no leito: amamentava a filha no dormitório dela.
Teotônio lavou o rosto com água fria e foi ver a esposa. Queria o conforto de seu amor e o lenitivo de sua sensibilidade para o sofrimento que lhe apertava misteriosamente o peito.
Tão amedrontado parecia que Rosinha se sobressaltou:
— Que aconteceu? Parece que você viu um fantasma.
— Rosi, vamos fazer as malas e partir de volta.
— Meu Deus, por quê?
— Estou tendo o pressentimento de que minha mãe sofreu um enfarto.
— Se toda vez que penso que a minha mãe está em perigo...
— É sério. Quantas vezes na vida eu lhe afirmei que tive a sensação de estar sendo avisado de alguma desgraça? Nunca.
— De qualquer modo, você não acha que precisamos ter a certeza, ligando pra lá?
— Estou com medo.
— Eu também. Teo, querido, vamos orar para que os nossos protetores nos ajudem e assistam à sua mãe, caso esteja passando por algum transe doloroso.
Após acomodar a criança no outro seio, Rosinha tomou a mão do marido e ambos se concentraram numa prece dita por ele, entrecortada de longos silêncios.

Na manhã seguinte, Flávia ligava para a filha, avisando-a de que Arnaldo sofrera um ataque e de que Vilma estava atarantada para atender às dificuldades impostas naturalmente pelas condições adversas de estar em país estrangeiro. Dizia ela que o sogro havia sido internado, tendo recebido toda a atenção dos diretores do clube.
Sem comentarem a respeito do presságio, os jovens tomaram o primeiro vôo, levando Wilsinho e deixando James para cuidar do apartamento. Mal tiveram tempo de informar a Renildo que partiam, encarregando-o de comunicar o fato a todos os conhecidos, inclusive à corporação policial do ex-sargento.
Foi assim que o casal se esqueceu completamente do que sucedia a Laura, ignorando que ela levara o filho a visitar os avós, três dias depois, afiançando-lhes que estava bem, trabalhando e ganhando a vida numa cidade do interior. Não entrou em minúcias nem os pais a interrogaram a respeito, temerosos de terem de ouvir algo que devessem recriminar.

Quando Wilsinho regressou ao Brasil, trazia o pai numa cadeira de rodas e a mãe muito aflita com as condições de paralisia do marido. Sofrera este um derrame e, apesar da cirurgia para alívio da pressão exercida pelo edema, ainda ficaram seqüelas graves, como a falta de movimentos do lado esquerdo e a incapacidade de falar.
Prometeram-lhes, contudo, que iria melhorar, para o que deveria submeter-se a severos exercícios de fisioterapia. Um dos facultativos esclareceu que, muitas vezes, conforme a literatura médica, pacientes no mesmo estado desenvolviam, em outra região do cérebro, recursos para desempenho das funções obstruídas.
Fulgêncio e Vieira, cada qual a seu modo, afiançaram que promoveriam assistência espiritual de vulto, podendo a família manter a fé em que Arnaldo ainda voltaria a participar ativamente do convívio dos demais.

Recomeçavam os campeonatos nacionais europeus e Teotônio pôde distrair-se do pesadelo das últimas semanas, carregando nos treinamentos e dedicando-se a erigir, junto à torcida, a mesma fama que o precedera.
Rosinha apoiava o marido, estimulando-o a orar pela recuperação do pai, para o que não se cansava de lembrar o irmão Renato, que falecera nas mãos dos narcotraficantes e que se comunicara, passando aos vivos a idéia de que a morte era apenas uma transição entre duas formas de existência. Afinal de contas, concluía, estava o sogro entrevado, mas com possibilidade de refletir a respeito do seu procedimento, podendo preparar-se para enfrentar a travessia inexorável.

Encerra-se esta narrativa numa cerimônia festiva muito importante para os futebolistas do mundo inteiro, qual seja, a da entrega do prêmio de melhor atleta pela entidade federativa internacional. Teotônio pôde levantar o troféu, dando muito orgulho aos familiares, aos amigos e a toda a nação.

Indaiatuba, de 21 de fevereiro a 05 de setembro de 2003.
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