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Cronicas-->Da Vida Que Já Se Sabe -- 15/02/2003 - 00:39 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Da Vida Que Já Se Sabe

Carlos Eduardo Canhameiro

Nasceu aos 21 dias de novembro de 1984. Parto normal, assim como seus outros 4 irmãos que vieram antes em intervalos regulares de dois anos. Nada sabia ao ser carregado pelos braços fortes do médico e pouco mudaria em toda sua vida. Sua mãe não o acalentou logo após o nascimento e ofereceu-lhe de mamar em seu peito apenas o necessário para sua fortificação. O maior laço entre mãe e filho já havia se rompido quando o cordão umbilical fora cortado. O pai mantinha o olhos vidrados no garoto desde o nascimento, orava com os lábios mudos, uma oração que para sempre ficaria entre sua boca e o ouvido perscrutador de Deus.
Cresceu como manda qualquer cartilha do bem: saudável e sem necessidades. Não frequentou escolas porque nunca soube da existência de uma e mesmo que se deparasse com uma, jamais saberia do que se tratava. Não só escolas fugiam do seu mirrado conhecimento mundano, televisão, livros - exceto o religioso que aprendera a ler algumas partes através de instruções pacientes do seu pai - vizinhos, amigos e inimigos - neste caso os irmãos supriam a necessidade, numa troca mútua - e sobretudo da morte. Ninguém ali imaginava que um dia aquilo que julgavam vida podia se expirar. Os pais nunca tocaram no assunto, tampouco permitiram que se imaginassem imortais, apenas os deixavam viver sem ensiná-los sobre a interrupção abrupta e sempre fora de hora que era a morte.
Esta família não conhecia tristeza ou alegria, estava isenta de qualquer maniqueísmo, exceto os pais, figuras que carregavam nos rostos os indefectíveis traços do bem e do mal, da verdade e da mentira. Os filhos se apercebiam dessas diferenças mas não eram capazes de formular qualquer raciocínio prático a respeito delas. Para eles os pais eram diferentes porque simplesmente eram pais, nem mais, nem menos que isso. O irmão mais velho tinha 12 anos quando começou a ser preparado para o que seria o dia mais importante de sua vida. Os demais irmãos não tomaram conhecimento disso, o mais novo, com apenas 4 anos, nem tinha capacidade para perceber que algo mudara na família, saberia da iniciação somente quando também completasse doze outonos de existência.
Porém, quando caminhava nos10 anos, a família diminuiu. O primogênito os abandonara. Nenhuma palavra sobre o desaparecimento do irmão foi dita ao caçula mas este percebera que os pais tinham olhos amargurados com a partida e os demais irmãos sorriam invejosos. Sem nenhuma explicação refugiou-se no quintal árido e sem muros e pela primeira vez sentiu lágrimas brotarem em seus olhos e uma dor nova e incómoda apertá-lo por dentro, como se algum ser invisível pudesse comprimir seu peito com as mãos e não soltar. A ninguém, nem mesmo a Deus, professou tal choro e só se lembraria dele quando fizesse 12 anos.
Não comemoravam aniversários, apenas oravam e agradeciam ao Senhor Supremo a dádiva de mais um ano de vida. Eram 12 anos de existência sem nenhum sentido aparente e também pela total falta de necessidade de um. Mas nesta idade estava apto em descobrir o que o destino lhe reservara. Em poucas palavras seu pai informara que ao completar 18 anos ele deixaria casa e família para cumprir desígnios que fugiam de sua própria vontade e também da de seus pais. Nos próximos anos passaria por provações até mostrar-se merecedor de tal honra. Não fez nenhuma pergunta e mesmo que fizesse não haveria resposta. Calado estava e assim ficou até a saída do seu pai. Não estranhou o desaparecimento do seu segundo irmão pouco tempo depois.
Os anos passaram e as provações vieram e não lhe causaram nenhum desconforto. Num ano jejum por incontáveis dias, noutro orações por semanas. Seus irmãos agora pouco falavam e numa casa em que a palavra era artigo raro, passou a quase extinção total, salvo pelas orientações dadas pelo pai a cada filho. A mãe definhava cada vez mais por causa dos filhos fugidios. Secretamente chorava no banheiro e maldizia seu Deus não mais que a si própria. Aos 16 anos pode acompanhar seu irmão partir. Lamentou a partida por puro egoísmo, sentimento que não sabia o que era. Passaria dois anos sem a companhia de ninguém. Desde os 12 anos sabia que algo extraordinário aconteceria em seu décimo oitavo aniversário, e descobrira com isso a expectativa. Aos 17 fora apresentado aos prazeres da carne. Nada mais do que três mulheres o satisfazia sexualmente dia e noite. Apenas se alimentava e experimentava as delícias do sexo em suas mais variadas receitas.
Três semanas antes de completar a maioridade fora desligado de suas concubinas, sofrera no excesso e agora sofria pela falta. Seu pai relembrava-o da importància do dia 21 de novembro e explicou-lhe os últimos detalhes. Na última semana conheceu o mundo exterior, guiado pelo progenitor, soube dos últimos passos e ações minuciosas que deveria executar para ter direito a receber ainda mais prazeres carnais. Não teve condições de vislumbrar-se com as arquiteturas e invenções seculares, voltava seu pensamento as vinte e três mulheres que receberia no dia 8.
Chegado o dia, fizeram a oração de costume com alguns palavras específicas para a ação que deveria executar. Vestiu-se com a pesada roupa que ganhara no dia anterior e ao despedir de sua mãe a viu chorar pela primeira vez. Ficou imóvel, sem conseguir estabelecer nenhum tipo de pensamento, sem saber agir. O fato era inédito e não tinha muitas comparações a fazer para chegar a qualquer dedução. Por um ínfimo momento, pensou o que seria das mulheres já que o destino do décimo oitavo ano de vida pertencia exclusivamente aos homens. Sem afinidade ou afeto maior pelo ser que ali se desfazia em lágrimas, virou-se e partiu. O pai, ao ver a cena deu uma grave bofetada de costas de mão no rosto da esposa, que gemeu calada e se retirou. O filho, alheio a cena pois já estava em outro cómodo, ao perceber a presença do pai, despediu-se numa felicidade doída. As últimas palavras do pai instruía-o para entrar no mais lotado possível.
Algumas horas depois, dentro de um ónibus apinhado de gente, levantou-se - sorriu porque imaginou que seu pai ficaria contente com a escolha - pegou um papel e leu em voz alta:
- Morro em nome e honra do meu Deus. - Antes que qualquer passageiro pudesse ter alguma reação senão aquela de saber que a morte acabara de se anunciar, ele apertou o botão. No átimo que faria seu corpo se desfazer em meio aos explosivos pensou:
O que significará: morro?


"No dia 21 de novembro, um palestino explodiu-se e matou 11 pessoas em um ónibus em Jerusalém." - Por Matt Spetalnick/Yahoo Notícias

"E todavia a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minuto, depois agora, neste instante - a alma irá voar do corpo, que você não vai mais ser uma pessoa, e que isso já é certeza; e o principal é essa certeza." - Míchkin em O Idiota de Dostoievski

"Será?" - Carlos Canhameiro
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