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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->ADONIAS -- 02/03/2005 - 07:29 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

WLADIMIR OLIVIER

















ADONIAS



























Edição da CASA DO MÉDIUM

Rua Cinco de Julho, 1184
Indaiatuba — SP



ÍNDICE

De saída ..................................................
1. A palestra ................................................
2. Adonias vai à aula ........................................
3. Adonias medita ............................................
4. Entrevista com o protetor .................................
5. Aflora o passado ..........................................
6. Uma lição inolvidável .....................................
7. Uma sessão bem sucedida ...................................
8. Monta-se uma parte do quebra-cabeça .......................
9. O sono ....................................................
10. Alice .....................................................
11. As tentações de Jesus .....................................
12. A aula ....................................................
13. A conferência de Maciel ...................................
14. Importantes decisões ......................................
15. Adonias arruma serviço ....................................
16. Reflexões .................................................
17. Os milagres e as curas de Jesus ...........................
18. Fernando ..................................................
19. Separação .................................................
20. Parte Adonias .............................................



DE SAÍDA

Aconteceu que Adonias, por brincadeira, se chamou de pastor na derradeira página do nosso Adonias e Adão, obra que esperamos venha a ser de retumbante sucesso editorial e de público. Mas o que ele não esperava com sua brincadeira era a repercussão imediata, entre os seres do etéreo, de que alguém pudesse iniciar suas pregações com um mea culpa tão esclarecedor de problemas inerentes às ilusões carreadas do mundo denso, para as franquias espirituais de quem não tem muitos compromissos cármicos, relativamente às pessoas com quem conviveu.
De fato, após uma análise que diríamos percuciente, não soubéssemos que muitos outros fatores se agregariam aos iniciais para a percepção da realidade existencial do ser que tivera sido Adonias, o ex-sacerdote abriu o coração ao povo, para que nele lessem todas as aspirações por um mundo melhor, a partir de ato do mais profundo transtorno psíquico, como era o de se considerar digno representante das forças universais superiores, concentrando seus esforços, não em parecer, mas em ser um messias.
Quando foram ouvi-lo e perceberam que o Pastor Adonias não passava de um mero Padre Adonias, ficaram absolutamente intrigados como é que alguém poderia pregar uma peta logo quando principiava a carreira de pregador, em cujo programa constavam vários estudos profundos da natureza de Jesus, através de suas palavras iluminadas.
Eis o que prometemos para este novo volume das memórias mais antigas e mais recentes de nossa personagem, ou seja, de como foi capaz de se integrar ao corpo docente da colônia que leva o nome de Igreja Cristã da Misericórdia Divina e de como nela se matriculou na qualidade de aluno de primeiras letras, no curso de Primeiros Socorros Espirituais.
Importa-nos, neste preâmbulo, informar que os fatos estão ocorrendo ainda agora, de modo que nos hão de perdoar se não soubermos caracterizar com rigor as reações concernentes a determinados processos de conhecimento ou de reconhecimento das realidades em composição ou recomposição. Faça-se de conta que estamos escrevendo um diário e que fazemos espoucar, a cada momento, um flash cuja imagem não foi revelada ainda.
Deus nos proteja a todos, criadores do texto e leitores finais!



1. A PALESTRA

Adonias preparou-se para a aula. Antes de mais nada, quis conhecer os dez alunos que se inscreveram, sabendo que muita gente poderia comparecer na última hora, o que o punha, de certo modo, nervoso. Gostaria de saber a extensão dos conhecimentos daqueles a quem iria demonstrar como é que as estruturas adquiridas em trinta e poucos anos de peregrinação pela carne poderiam nublar a mente, a ponto de oferecer-lhe uma venda tão poderosa quanto a não dar a perceber os fatos mais corriqueiros da realidade.
Mas os que assinaram as fichas eram pessoas extremamente práticas, todas elas, pelas profissões denunciadas, voltadas para as ciências ditas exatas: mecânicos, professores de física e de matemática, organizadores de empresas, contabilistas e um geógrafo dedicado à cartografia.
Num esforço de penetração no cérebro etéreo ou perispiritual do sacerdote, agora dominando perfeitamente os impulsos da vontade, de sorte a elaborar pensamentos lúcidos com extrema velocidade, podemos dizer que ele assim se manifestou de si para si mesmo:
“Esses estão em busca de uma realidade supra-sensível que talvez hajam desleixado vivos. Mas não posso partir de uma base preconceituosa, porque pode ser que algum deles se tenha dedicado, também, aos temas religiosos com vistas a garantir a possibilidade da existência de uma vida espiritual bem determinada, para o que se premuniram com alguma sagacidade, tanto que, hoje, estão freqüentando cursos nesta instituição, com absoluto domínio de suas condições de desencarnados. Talvez queiram conhecer os procedimentos de um alienado que se proponha a falar dos tempos em que peregrinou pelo etéreo na condição de profeta a falar como messias, com a figura esquálida que imaginava a de Jesus, ele mesmo, trepando em bancos e mesas, alteando a voz para ser ouvido até a décima fileira, estimulando o uso das faculdades morais em estado latente, para que fizessem o bem.”
Esse longo parágrafo não representou para a atividade cerebral do conferencista mais do que dois minúsculos segundos, de sorte que os nossos dignos leitores devem imaginar que as ondas energéticas de que se viu dotado desde que descobriu, três meses antes, que pertencia ao mundo dos mortos, haviam tido um crescimento substancial, no sentido de se integrarem todos os setores cerebrais, como se dispõe a massa encefálica humana com diferentes centros nervosos, uns voltados para o sistema de recepção das informações apanhadas pelos sentidos, outros para a elaboração de raciocínios à luz dos interesses mais lídimos de seus organismos e de suas atividades exteriores, quer pelo sistema simpático, quer pelo parassimpático, sem nos esquecermos de todos os processos de memória como reservatório e como arquivo de pronta consulta.
Chegou Adonias a desejar saber quem foi para ele Alice, a enfermeira em que se transformou a companheira de crença e de votos, porque freira na existência corpórea anterior. Mas viu bloqueada essa recordação, o que não o perturbou, porque sabia que a memória voltaria quando estivesse melhor habilitado a receber os influxos negativos de sua personalidade. Pensava que a perfeição se obriga a dar o ar da graça, mas que existem regras e normas para se efetuar como lei de progresso, artigos a serem cumpridos em seqüência, agora que estava sob o amparo de espíritos mais evoluídos que lhe demonstravam estima e se propunham a guiá-lo.
Ponderou tudo muito bem, imaginou que seus ouvintes teriam enfrentado essas mesmas disfunções espirituais quanto ao conhecimento das existências anteriores, para seu próprio resguardo, porque dificilmente a pessoa, assoberbada por problemas e preocupações, teria a mente aberta para a recepção de novos conhecimentos, já que, sem um equilíbrio relativo, ninguém conseguiria assimilar convenientemente as verdades que se constituíam nos pontos humílimos de sua síntese, e partiu para a elaboração de um esquema bastante simples, para não assustar os prováveis discípulos, porque já se punha na cátedra a ditar conhecimentos etc.
Esse et cetera continha, entre outras coisas, todas as emoções que permitira aflorar quando percebeu que estivera alheio a si mesmo durante mais de vinte anos, recebendo assistência para não descair em processo ainda pior de julgamentos precipitados, quanto aos seres com quem lidou na vida e outros que, provavelmente, existiriam na erraticidade contrafeitos com a sua atuação no campo dos relacionamentos humanos e espirituais.
Quando subiu ao pódio do salão, bem no centro, diante do aparato eletrônico, olhou para o auditório e viu-o totalmente lotado. As cem pessoas ali presentes sorriam-lhe como a estimular-lhe a primeira aula, todos, evidentemente, conhecedores do fato. As paredes ao fundo pareciam ter criado vida e os afrescos que representavam a orla marítima mostravam palmeiras com folhagens farfalhadas pela aragem do mar, cujas ondas vinham suavemente quebrar e se desfazer na areia. Do lado oposto, prédios altos, sobre os quais passavam nuvens, tal qual soía observar em seus sermões de nove anos atrás.
Entre os presentes, dois amigos poderosos, os médicos Adão e Anésio, o jovem estafeta e cicerone Renato, o motorista Valério, o professor de física Vicente, a moça da recepção, cujo nome, Rose, confirmou na ficha que buscou pelo número do assento em que se situava, e sua namorada Alice. Os demais bem poderiam ser conhecidos mas de nenhum se recordou naqueles breves instantes em que se deteve a examinar a lista dos presentes.
Começou comentando a facécia da rima:
— Ao título: Os meus dias de Messias, juntei a informação: Pelo Pastor Adonias, querendo aproveitar a rima e os heptassílabos ou redondilhas maiores. Aí, cometi uma certa imprudência porque, desejoso de efetuar o gracejo, repudiei a palavra padre que reduziria o verso a um hexassílabo não combinado com o verso anterior: pe/lo/Pa/dreA/do/ni-as, disse, batendo os dedos a contar as sílabas métricas, demonstrando a elisão: dreA). Poderia ter dito: Meus/di/as/de/Mes/si-as, pe/lo/Pa/dreA/do/ni-as, o que resultaria em dois versos de seis sílabas, mas achei que os versos de sete são preferíveis aos de seis; então, mantive a decisão, contendo o primeiro informe que desejaria deixar consignado nos seus cadernos de anotações, ou seja...
Antes de prosseguir, Adonias olhou demoradamente em torno de si, dando uma volta completa, a ver se havia olhos atentos a observá-lo, desejoso de decifrar as fisionomias para ministrar seu primeiro ensinamento. Tendo visto todo tipo de expressões e algumas incógnitas, prosseguiu:
— Tudo na existência se encadeia rigorosamente e para tudo existe uma explicação lógica ou psicológica: a primeira, relativa à verdade diretamente apreendida da realidade; a segunda, a fluir das ações mentais, na intenção de consignar um momento particular de cada indivíduo. Quando formos capazes de entender de modo global todos os procedimentos hauridos das profundezas espirituais de cada um ou de nós mesmos, de preferência, estaremos aptos a tornar tais explicações psicológicas em explicações lógicas, transformando tudo em conhecimento, pondo-nos em condições de merecer adentrar a próxima estação existencial, onde os recursos do amor nos darão outros elementos com que investigarmos cada vez mais a fundo quem somos e como iremos continuar evoluindo. Sendo assim, se nos considerarmos, desde já, aptos a entender este raciocínio, que sei de difícil compreensão, também temos de concluir que estamos gozando de boa saúde espiritual, o que devemos atribuir à benemerência do Criador, a quem precisamos agradecer a todo momento, o que me remete ao fato de ter sido um sacerdote, padre ou pastor de almas, não importa, um representante eclesiástico de determinada fé religiosa, considerando-me, assim, privilegiado perante Deus, motivado a ponto de falsear a minha própria vida, querendo trazer as verdades evangélicas ao dia-a-dia das pessoas, sem distinguir direito a diferença entre o fato positivo da vida, como realização pessoal e intransferível, e minha vocação e destinação de guia de consciências. Sendo assim, quero pedir a um de vocês, se possível àquele que eu apontar ao acaso, se estiver disposto e não tiver pejo, que abra a minha primeira aula com uma prece.
No mesmo instante, na tela de seu computador, começou a piscar o número quarenta e quatro, correspondente ao lugar ocupado por Renato, que desejava falar.
Adonias, imediatamente, apontou para o rapazelho de não mais que dezesseis ou dezessete anos aparentes de idade, passando-lhe a palavra.
— Prezado amigo e professor, padre ou pastor, gostei de sua introdução e, ainda mais, pelo fato de estar cedendo a vez para u’a manifestação sagrada de fé a um dos menores da classe. Proponho-lhe, contudo, que não seja por acaso a escolha de quem vá expor-se à turma aqui reunida, porque pode ocorrer que tenha um tipo qualquer de inibição e que não se sinta à vontade, de forma que sua prece não corresponderia às expectativas nem da turma nem dele mesmo. Sendo assim, sugiro que os que estejam dispostos a empreenderem tal iniciativa se inscrevam e, dentre estes, o mestre escolha aquele que julgar o mais adequado para exprimir uma oração em louvor e em agradecimento ao Pai. Antes, porém, de o senhor aceitar esta minha contribuição, ouça o que têm a dizer os meus colegas, porque bem pode estar ocorrendo de estar eu enganado, não por outra razão, por me haver atrevido a tanto e por apresentar-me o mais novato e com menos títulos acadêmicos ou técnicos. Calo-me, porque estou compreendendo que ousei demais.
Adonias, ao contrário do que poderiam pensar muitos dos presentes, divertia-se com a elocução do rapaz, acreditando que o desejo dele era o de colocá-lo à vontade, antes de começar o seu curso propriamente dito. Adonias, portanto, assimilou a indicação e acrescentou:
— Vou dizer-lhes, juntando mais uma razão para não escolher a pessoa da prece aleatoriamente, que, nas minhas peregrinações, encontrei várias pessoas de cabeça no lugar e bom quociente de inteligência que não logravam muito êxito na hora de se dirigirem em oração pública ao Altíssimo, porque ficavam tão envolvidos pelas emoções correspondentes ao fato de que estavam sendo observadas, não pelos circunstantes, mas pelo próprio Criador e pelos seus prepostos santificados e angelicais, que não chegavam a enunciar direito os pensamentos, de forma que os circunstantes, em lugar de concentrarem os pensamentos no fervor da hora sacratíssima, os dirigiam ao orador em dificuldade, deixando de ampliar as vibrações em torno de um desiderato de fé e de esperança. Querem que eu ponha em discussão a proposta ou passamos à votação? Respondam sim para aprovarem a proposta, que o resultado irá sair em segundos.
De fato, houve noventa e oito votos favoráveis e duas abstenções, de modo que a fórmula do Renato estava aprovada. Adonias acrescentou:
— Os que desejarem orar, que se declarem agora.
Vinte e três nomes apareceram relacionados, entre eles o de Renato. Mas nem Adão, nem Anésio, nem Valério, nem Vicente, nem Alice se ofereceram. Então, Adonias declarou:
— Se não houver objeção, recomendo que a classe aceite a indicação do coleguinha Renato para efetuar a prece. Vocês acham que ele deve orar em voz alta ou deve fazer uma vibração, enquanto a gente ouve alguma suave melodia? Um para voz alta; dois, para a vibração.
Ganhou o número dois, de modo que Adonias fez ouvir ao fundo uma doce e harmoniosa peça do mestre Anésio, a qual ele havia conhecido quando tomava conhecimento dos recursos audiovisuais. Ao mesmo tempo, estampou em todos os monitores a imagem de Jesus recolhido em oração, quadro elaborado por um dos artistas que haviam passado pela colônia e que agora pairava em esfera de maior evolução. Insuflou na atmosfera um agreste perfume de flores silvestres e solicitou a Renato que fizesse a sua prece.
O rapaz, que se preparara para a ocasião, ergueu-se da poltrona, levitando levemente, olhos cerrados, irisado como a desprender uma aura que abrangia todos os colegas, e deu início a uma prece que todos sentiram no âmago de seus seres, palavra a palavra, tal era o poder de transmissão telepática do jovem. Ao final, o ambiente estava resplandecente de uma luz que não cegava mas que punha, nos corações, muita calma e, nas mentes, o desejo de aprender com as lições do professor.
Adonias se regozijava por ter entre os discípulos um ser de tantas qualidades. Também percebeu que a turma que ali se reunira era afiadíssima nesse contato com as forças transcendentais que davam amparo às realizações da colônia. Mas não temeu pelo êxito de sua exposição, porque sabia que estava sendo ajudado pela mesma assistência superior, ainda mais que até seus protetores diretos estavam presentes.
Foi com o ânimo absolutamente no alto e com o intelecto assente e equilibrado que pôs em ação o esquema que havia traçado.
— Meus irmãos, penso que a minha experiência, de maneira geral, não contenha nenhuma novidade. Sendo assim, preferi organizar a palestra através de uma série de situações específicas que me envolveram e que poderão oferecer à turma o ensejo de meditar a respeito, segundo um prisma evangélico de nível superior. Começo por lhes afirmar que Jesus, quando disse que, se dois ou três se reunissem em seu nome, ele estaria presente, estava expendendo uma verdade rigorosíssima. No entanto, na qualidade de padre, posso assegurar-lhes que não vale quando a reunião se dá sem interesse algum em que Jesus compareça para a repreensão, de modo que, toda vez que eu com mais outras pessoas pedíamos ao Senhor que cumprisse sua promessa, nunca obtivemos a certeza de que ele estivesse ali conosco. Antes, cada qual de seu lado, todos suspeitávamos de que não fazíamos jus a atendimento tão sagrado, porque tínhamos a certeza de que o nosso pedido jamais se efetuara honestamente. Nem quando eu comparecia com o viático, para atender aos reclamos religiosos dos doentes ou de seus familiares, não percebia ao meu lado, nem no cálice em que levava as hóstias, a presença divina do Nazareno. Hoje mesmo, senti, neste ambiente maravilhoso, a demonstração inequívoca de que espíritos de nível superior estão vivamente interessados em nosso progresso e, por isso, nos estimulam através de sentimentos os mais puros de que somos capazes. Entretanto, para que tivéssemos o ensejo de receber Jesus, ele mesmo, teríamos de suplantar os traços de egoísmo que estamos mantendo conosco. Então, vão perguntar-me, por que Jesus prometeu a seres tão imperfeitos que estaria junto a eles, empenhando-se em iluminá-los para a compreensão do evangelho? Porque Jesus sabia que a inocência da infância viria a transformar-se, lentamente, na malícia da humanidade que devorou o fruto da ciência no paraíso, até fazer desabrochar nas mentes e nos corações a necessidade da pureza e da perfeição. Eis porque, eu lhes asseguro, eu me perdi para o reconhecimento de minha condição de desencarnado, porque não via ao meu derredor nenhuma criatura que, ao se juntar comigo, conseguiria fazer que Jesus viesse atender ao nosso chamamento, porque eu acusava o mundo todo de degeneração moral e não me dava por satisfeito jamais com a humildade de um procedimento regrado pelo amor restrito a alguns familiares, sempre e cada vez mais desejoso de oferecer a cada um em particular e à sociedade em geral os recursos obtidos das passagens evangélicas em que Jesus fazia a sua pregação. Queria eu assumir o livre-arbítrio e a consciência da humanidade, sem, definitivamente, compreender que a fé na misericórdia do Pai é que deveria pautar o meu temperamento, no sentido de restringir o meu serviço público. Em suma e para não cansá-los mais, entreguei-me de corpo e alma ao que julguei ser a minha vocação religiosa, trazendo para o etéreo as minhas estruturas materiais, conforme a minha visão distorcida do fazer o bem e de praticar a caridade. Devo avisá-los de que, por recomendação do meu amigo e protetor aqui presente, o Doutor Adão, vou reservar uma parte do tempo para algum debate esclarecedor, levando todas as questões que se registrarem para estudar e responder individual ou coletivamente, conforme julgar que seja o interesse do consulente ou a oportunidade do tema.
Imediatamente, choveram sugestões e perguntas na tela do computador, endereçadas de todos os pontos.
Chamou desde logo a atenção de Adonias uma questão levantada pelo Doutor Anésio, que rezava:
“Como ocorre muito freqüentemente o fato de que os sacerdotes chegam ao etéreo buscando os anjos que os conduzirão ao paraíso, a que o amigo atribui o fato de ter sido resguardado das imprecações que em geral se dão nessas ocasiões, tendo permanecido por tanto tempo na condição de ignorante da própria desencarnação?”
Era como que o elo de sua corrente temática, de modo que assinalou que iria responder àquela pergunta, levando toda a classe a ler, cada qual na sua tela, a questão em pauta. Depois explicou:
— Esse foi um dos problemas mais sérios com que me defrontei ao reconhecer minha atual condição. De fato, nestes últimos três meses, precisei sair um pouco desta esfera e, com muito cuidado, levado por uma guarnição de protetores, fui visitar um mosteiro ou algo que o valha, para onde se recolhem muitos religiosos ávidos de passarem logo a integrar as hostes do Senhor. Lá me deparei com esse sério problema de quem se julga injustiçado por haver destinado grande parte da vida à Igreja e agora tem de esperar pela boa vontade dos mensageiros do Pai, que demoram para os vir pegar. E esses são os que praticaram o bem, deram aulas, cuidaram de pessoas enfermas, aconselharam e orientaram, ministrando o conforto da palavra do Cristo aos que se desesperavam ou se agoniavam. Outros, segundo me contaram, exasperados pelo infortúnio de se reconhecerem egoístas e com outros graves defeitos morais, se perdem nas trevas, procurando o paraíso e resvalando abismo abaixo, para as regiões de maiores sofrimentos. Estou contando-lhes isso para dar relevo ao fato de que a minha longa permanência na ignorância de meu trespasse foi um recurso de meus protetores, para evitar que eu me deixasse penetrar pelas falácias da perfeição só porque me entreguei às mãos da Santa Madre Igreja. E por que fui apaniguado com tal deferência? Porque, desde os últimos tempos que passei no mundo, já vinha, de certo modo, renegando o fato de que muitos sacerdotes estimulavam a sociedade a se manter do jeito tradicional, para não correrem o risco de perder suas regalias. Por outro lado, desde algum tempo, vim observando que outra parte do clero, sub-repticiamente, vinha gerando muito descontentamento entre os mais pobres, dando-lhe razão aos atos de violência, apoiando o desalojamento de famílias de suas terras, para incrementar nelas o que chamavam de reforma agrária, mas que, na verdade, mais não era que o desejo de manter sua ascendência religiosa também sobre aquela parcela da população, à vista, evidentemente, de que, se não fizessem isso, outros fariam, em nome de outras instituições religiosas, políticas, econômicas etc. Ora, para mim, uns e outros perdiam de vista a pregação de Jesus, que, tendo vivido em época em que seu povo se subjugava a outro mais forte, porque os judeus estavam sob o tacão dos Império Romano, mesmo assim pregava o amor pelos irmãos e pelos inimigos, numa reação pacífica exemplar, mandando dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, fomentando o altruísmo e alimentando o sacratíssimo fogo da união de todos em torno dos ideais das virtudes elevadas à quinta-essência da tolerância, da abnegação e da distribuição das responsabilidades, segundo o poder de exercer cada qual seu livre-arbítrio. Está claro que, a partir dessa tese, que eu pretendia puríssima, passei a censurar toda atitude que gerasse um distanciamento entre as pessoas, como no caso de se concentrar a renda em cofres cada vez mais recheados, tornando cada vez maior a faixa dos miseráveis. Essa postura, graças a Deus, granjeou a antipatia das autoridades eclesiásticas, que me afastaram de meu núcleo de atuação, e facultou a meus protetores a saudável condição de me manterem, após a morte, iludido com o meu poder de auxiliar através de simples pregações, que era o que me havia formado o caráter, de sorte que, acredito, ao responder à questão, preciso esquecer que errei em muitos sentidos, em quase todos eles, mas acertei em me dedicar honestamente à busca, no evangelho de Jesus, dos preceitos mais legítimos de seu ensinamento. Isso fez de mim, não uma criatura ingênua, mas alguém desprendido dos bens materiais imediatos, satisfazendo-me com muito pouco, preparado para ceder a quem aparecesse, os dons de minha inteligência e de minha cultura, que eram os únicos que possuía. Sei agora que fui beneficiado grandemente pelos meus protetores, mas compreendo perfeitamente que eles fizeram por mim exatamente como eu teria feito, e pretendo fazer em breve, para quantos necessitados de auxílio me procurarem. Mais ainda, se corresponder aos anseios dos meus mentores, especialmente os que regem o curso de socorrismo para o qual me inscrevi, logo requisitarei um alvará para peregrinar à procura de quem esteja à espera de um coração amigo que possa aliviar-lhe o sofrimento. Sei que este meu curso roça perigosamente pela pretensão de trazer algum benefício aos inscritos, mas, como pretendo não expender conceitos próprios, preferindo contar meus casos para que vocês tirem suas conclusões, atrevo-me a prosseguir, prometendo-lhes, para a próxima sessão, orientar as minhas palavras pelas questões que tenho diante de mim. Meu amigo Adão faz-me sinal que devo encerrar, mas, antes, quero saber se minha resposta satisfez a pergunta.
Anésio não se fez de rogado e comentou:
— Faltou apenas ressaltar que a sua busca do paraíso vai prosseguir, muito embora, fazendo o balanço dos anseios e das perspectivas atuais, você devesse ter confirmado que está passando, rigorosamente, por uma fase de bom equilíbrio espiritual, porque está realizando algo em função dos outros e de si mesmo. Sei que está condicionando-se para enfrentar certos dissabores históricos, bem ainda que precisa decifrar os mistérios dos relacionamentos familiares, já que, em relação a seu pai, existe um sério entrave emocional, mas isso está sob controle, ou melhor, queda como em estado latente, aguardando que chegue a primavera para desabrochar. Peço permissão para indicar a sua pessoa, caro Adonias, para orar a prece de encerramento, oportunidade que estamos propiciando-lhe para nos encher com suas vibrações positivas, ainda que, conforme nos expôs de início, possa pertencer ao grupo dos que estão lutando com as dificuldades de elaboração de uma prece que não deixe transparecer sua sensibilidade à flor da pele. Nós todos, sabendo que quem se dirige ao Senhor se sente constrangido pelos olhares dos seres superiores, imaginando que Jesus mesmo possa estar presente, vamos esquecer do expositor, concentrando-nos na alocução, cientes de que seremos todos aquinhoados pelo maior saber e sensibilidade daqueles que já experimentaram todas estas vicissitudes e as suplantaram. Por favor, Adonias.
Em lágrimas, Adonias limitou-se a dizer:
— Pai de infinito amor e bondade, olhe por todos nós, seus filhos.
Em seguida, repetiu um velho Padre Nosso, adaptado para o linguajar moderno da colônia, em que a segunda pessoa do plural se substituía pela terceira do singular, tornando o vós em senhor, sem qualquer vestígio de diminuição do respeito que devia ao Criador:
— Pai nosso, que está nos céus, santificado seja o seu nome, venha a nós o seu reino, seja feita a sua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dê hoje. Perdoe as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores. Não nos deixe cair em tentação, mas livre-nos do mal, porque seu é o reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.
Adonias não percebeu, mas, tal como Renato, volitou um pouco acima do solo e resplendeu em luz, enchendo de júbilo o coração dos amigos e granjeando a simpatia dos novos companheiros.
Após a palestra, o orador foi cumprimentado efusivamente por todos os amigos, tendo auferido conceito máximo pela avaliação espontânea que a direção da colônia solicitou da classe.
Isso o encorajou a prosseguir na mesma linha de confessionário, pensando seriamente em que tanto Renato quanto Anésio haviam colaborado, fazendo-o dar um passo à frente, como se a participação deles fosse imprescindível.
Havendo revisto a lista dos alunos, notou que, dos cem ouvintes, noventa e oito mantiveram seus nomes, todos agora devidamente inscritos, com as obrigações inerentes à matrícula oficial. Os dois que não se registraram foram exatamente Adão, seu protetor, e Anésio, aquele ser superior que tratara de seus problemas mentais cientificamente, eliminando o antigo tumor no cérebro, dando-lhe vazão aos recursos intelectuais que se encontravam obstruídos. Mas havia, nas fichas correspondentes aos dois, uma explicação uniforme: deixavam de se matricular para darem oportunidade a dois outros novos alunos, quem sabe com maior necessidade de ouvir as ponderações do ex-sacerdote.



2. ADONIAS VAI À AULA

Dois dias depois do evento, após haver lido e respondido a todas as questões propostas, Adonias deveria comparecer a sua primeira aula na condição de aluno. Dirigiu-se, pois, à sala correspondente e se postou, meio espremido entre dois colegas, para receber o mestre, professor Maciel, de larga nomeada na instituição, célebre por dirigir a assim chamada Escolinha de Evangelização, instituição educacional de uma colônia próxima, convidado para um curso de socorrismo a um pessoal neófito mas escolhido, porque só se admitiram para inscrição quem estiva quite com os débitos auferidos nas encarnações, havendo apenas a possibilidade de alguns deslizes pessoais. Refletiu Adonias, na ocasião, que, se não fosse assim, não haveria alunos em condições de aprender nada, porque tudo já saberiam.
Quando deu por si, Adonias percebeu que o salão era bem diferente daquele em que estava a ministrar seu curso. Neste, não havia computador nenhum, nem painéis desenhados nas paredes, nem mesa ou estrado para o professor. Também se apinhavam no auditório para mais de dois mil estudantes, todos em grande expectativa.
Sobrava um corredor estreito, a partir da porta de entrada até o fundo do salão. Foi por ele que caminhou a iluminada figura do mentor, belíssima imagem de um senhor de não mais que quarenta anos de idade, alto e forte, de traços suavíssimos, num rosto impecavelmente barbeado, enquanto os cabelos, cortados rentes, ofereciam uma belíssima coloração prateada puxando para o azulado. O que mais impressionou Adonias foi o sorriso que o mestre pousava nos olhos de todos os alunos, como a absorver deles as informações completas de suas personalidades.
Havia também uma aura cor de rosa a esplender com reflexos azulados, como quando Adonias tinha alterada sua visão por excessos de fluidos energéticos, em condição de quase êxtase, durante seus transes em busca do equilíbrio de seu organismo perispiritual. Mas esse reflexo não impressionou Adonias, que se estava acostumando a eles em seus encontros com os seres mais grados da instituição.
Maciel deu a sua aula sem abrir a boca, vamos dizer assim, passando todas as suas informações telepaticamente e recebendo a suma de todos os alunos mentalmente, deixando, aí sim, boquiaberto o nosso amigo. Mas a palestra foi extraordinariamente simples, resumindo-se num único ensinamento que exigia um trabalho de reflexão ponderabilíssimo para a próxima sessão, dentro de quinze dias.
Pedia Maciel:
— Os meus discípulos devem concentrar esforços no sentido de caracterizarem o mais fielmente possível a razão de estarem interessados em exercer as funções de socorristas, sabendo que, fora da caridade, não existe salvação. Sendo assim, razões meramente formais, como atos de agradecimento por favores recebidos ou exemplos nobilitantes de quem tenha tirado da aflição uma ou mais pessoas de seus relacionamentos afetivos, não haverão de ser levadas em conta. É preciso que cada um dos meus amigos se compenetre de modo definitivo de que sua existência ficará incompleta sem o diploma que irão receber, se vencerem galhardamente todas as etapas de estudos e de trabalhos que lhes serão exigidos. Em outras palavras, se fosse Jesus quem os convidasse, vocês atenderiam ao chamado do Mestre para se constituírem em seus apóstolos ou discípulos? Estariam dispostos a enfrentar todos os sacrifícios, até mesmo, se preciso fosse, uma reencarnação expiatória de dúbio resultado quanto a prevalecerem as boas intenções destes momentos sublimes de desprendimento, em harmonia com os conhecimentos que vocês estão a pique de receber? Caso se sintam em dificuldade, recomendo que se juntem em pequenos grupos, formando círculos de debates e de pesquisas, porque as experiências pessoais devem somar-se à dos maiores, sugerindo-lhes eu que busquem nos arquivos da casa os históricos dos socorristas que se formaram e que se encontram atuando aqui ou mais além, para conhecimento dos obstáculos que encontraram e das fórmulas que lhes serviram de antídoto para o veneno do desânimo e das frustrações. Também recomendo que leiam, até saberem de cor, todas as obras espíritas que foram ditadas até o presente para os encarnados, a começar das principais, quais sejam, as de Allan Kardec. Para quem me está impondo a questão do fato de haver muita informação desatualizada nesses livros, eu exijo que estabeleçam um princípio crítico, rigoroso a tal ponto de rescreverem os trechos com os quais não concordam, pondo em dia os aspectos em descompasso com os seus conhecimentos específicos dos diversos ramos das ciências, em seu duplo aspecto terreno e etéreo. Enfim, caso precisem, basta sintonizar o pensamento em minha pessoa e logo receberão o influxo de meu saber, mas dentro da faixa de suas preocupações e apenas para nova orientação quanto a que rumo dar ao seu trabalho. Fiquem na paz do Senhor!
Imediatamente, todos compreenderam que era chegada a hora da prece de agradecimento e encerramento, sendo tangidos emocionalmente para uma zona de superior paz e bem-estar moral, como se a força do orador ainda ganhasse os subsídios energéticos de outras entidades das esferas mais elevadas, o que transportou todas as atenções para um feixe de luz que desceu da abóbada da classe e se distribuiu uniformemente por todo o ambiente, engolfando todas as criaturas ali reunidas. Sem pensamentos ou sentimentos elaborados ou percebidos, Adonias se viu, de repente, perante uma figura angelical, que compreendeu ser o seu anjo guardião, entidade que lhe sorria e lhe mostrava, como se estivessem à beira do mar, um caminho ascendente que se perdia no espaço azulado do céu. Foi quando ouviu um coral de muitas vozes a entoar um cântico de louvor a Deus, em língua desarticulada mas cujo significado se desdobrava em sensações dulcíssimas de amor universal. Quando Adonias teve a intuição de que havia uma integração de todas as consciências, despertou para a realidade da aula e tudo se desvaneceu, restando as impressões inefáveis de um momento de plena felicidade.
Nesse instante, percebeu que na sala estavam apenas os alunos, todos mais ou menos alheados de si, envolvidos por sentimentos efusivos por pertencerem àquela classe, cada qual buscando, o mais possível, relacionar-se com os outros, numa afeição que crescia a cada apresentação. Antes de Adonias mergulhar naquela vibração de puro companheirismo, passou-lhe pela mente a idéia de que estavam ali reunidos os espíritos irmãos que rigorosamente deviam ocupar faixas muito próximas dentro da escala geral dos espíritos.
Adonias procurou inutilmente algum conhecido. Só havia entidades que jamais se cruzaram com ele. Mesmo assim, muita gente deu mostras de identificá-lo, alguns dizendo que haviam ouvido falar a respeito de um sacerdote que se iludira com a aparência de vida durante os últimos anos, outros referindo-se a certo interesse em determinado curso que fora anunciado na colônia, outros ainda por ouvirem falar bem de sua primeira aula. Notícias da vida na Terra, ninguém lhas deu.
Por sua vez, Adonias não encontrou ninguém de quem sequer tivesse ouvido falar. Como, entretanto, não teve tempo de contatar todos, deixou em suspenso a possibilidade de alguma antiga amizade ou encontro casual.
Como Maciel houvesse instado quanto à formação de pequenos grupos, Adonias se pôs à disposição de alguns colegas, à espera de se ver integrado numa equipe de estudiosos. Espera infrutífera, porque ninguém dentre aqueles a quem se apresentara o chamou, de sorte que esse iria tornar-se em mais um ponto sobre que dedicar suas reflexões.



3. ADONIAS MEDITA

Recolhido a seu modesto quarto de um cômodo com banheiro, mais o indefectível terminal eletrônico ligado aos computadores centrais e daí em relação com todas as colônias próximas, Adonias passou em revista todas as questões a que havia respondido, encafifado com o fato de que as suas organizações didática e programática, em comparação com a conferência de Maciel, estavam absurdamente primitivas.
Havia juntado as perguntas parecidas em blocos, para facilitar suas respostas, mas percebeu que cada qual oferecia nuanças interrogativas que deixara de levar em conta e que poderiam fazer enorme diferença quanto ao ponto de vista dado à resposta. Assim, entre: “Por que o ex-sacerdote não preconiza um estudo das causas de nossos interesses por Jesus?” e “Por que o ex-sacerdote não se interessou por que nós mesmos levantássemos os motivos que nos trouxeram à sua classe?”, acabou por constatar que o primeiro tinha uma nítida linha religiosa cristã, eivada, à primeira vista, de certas dúvidas ou das suspeitas delas, enquanto a segunda, com certeza, estava centrada, não no interesse temático, mas na descoberta da motivação do conferencista.
“Como responderei a cada uma delas?”, foi seu primeiro pensamento. Depois mudou a formulação da pergunta: “Como Maciel se haveria diante de cada questão?”
Chegou à conclusão de que o seu mestre talvez não se interessasse nem em responder ele mesmo, nem pelas resposta em si, mas se concentrasse no estímulo a que cada qual respondesse às próprias indagações, talvez levando a solução provisória à discussão pelo grupo, antes de apresentá-la definitivamente como equação espiritual a que se aplicaria esta ou aquela fórmula algébrico-psicológica.
Pensa que pensa, resolveu dar uma resposta a cada pergunta, sem ser taxativo, mas eqüidistante, como a fomentar novas interrogações. Mas não foi muito longe, havendo embatucado na primeira:
“Por que o mestre atribuiu à classe a decisão a respeito de como escolher a pessoa que iria realizar a prece e não determinou previamente que fulano ou sicrano tivesse tal incumbência?”
Maciel havia realizado ele mesmo a prece, certo de que sua capacidade religiosa preponderava sobre a de todos os estudantes matriculados. Não seria o caso — Adonias coçava o couro cabeludo quase raspado — de adotar uma linha de procedimento diferente, buscando entrevistar todos os inscritos, com cuidado, para definir-lhes a extensão dos conhecimentos e a ênfase que davam aos temas de sua programação? Mas, se Maciel não chamara ninguém...
O nosso herói achava que era o bastante para caracterizar que a categoria do seu professor eclipsara completamente o seu entusiasmo em ministrar conhecimentos evangélicos. Mas assumira um compromisso e, como jamais, fugira de suas responsabilidades...
Nesse ponto, punha em dúvida essa certeza. Desde que lhe voltara a consciência da realidade circunstante, a todo momento, via-se diante de pequenas crises de procedimento, porque lhe fugiam os nexos entre causas e efeitos de cada atitude tomada em vida. Quanto às reminiscências de que dedicara uma existência corpórea ao monastério, onde exercera as funções de copista, isso na Idade Média, e outra vida como usuário da língua francesa, provavelmente na própria França, não passavam disso mesmo, e ainda assim por informação de passagem de seu protetor e amigo, o Doutor Adão, facultativo que tinha à porta do consultório a informação de que se tratava de um especialista em correção cirúrgica facial.
Passava longas horas na companhia de Alice, cuja meiga recordação da derradeira vida, ambos com votos respeitados de castidade, ele sacerdote, ela freira, quando se olhavam olhos nos olhos, numa atitude perfeitamente platônica, toda a estrutura eclesiástica católica a lhes pesar sobre os sentimentos, fazia que suspeitasse de encontros anteriores bem menos inocentes, Kardec a lhe assoprar na consciência de que era uma provação ou uma expiação mutuamente escolhida e aceita, para ser vencida exatamente como o foi. Mas a lembrança do fato em si não se despertava, restando o receio de que a namoradinha tivesse conhecimento de tudo e que o perdoava por algum desconhecido desconcerto ou malfeito sentimental, tanto que fora ela a dedicadíssima enfermeira que lhe prestou socorro por tantos anos de internação no hospital da Igreja Cristã da Misericórdia Divina.
Repassou os momentos vividos com os pais e a irmã; reviu Dona Genoveva, a contrair segundas núpcias após o falecimento do marido, Seu Fernando; perpassou os poucos momentos de convivência com a irmã Clarice; mas ficou imerso em grandes problemas relativamente à pessoa do pai, que fizera tanto gosto quando ingressou no seminário e que se injuriara quando Adonias se rebelou e sofreu a punição preventiva da reclusão no convento, enquanto corria o processo de dispensa dos votos e exclusão da ordem, até o acidente em que o pai lhe causou a morte, para culminar na terrível situação de tê-lo como suicida por causa da tragédia do filho-padre.
Mas nenhuma emoção foi maior do que a lembrança de que se iludira por alguns anos, errando pelo mundo denso, crendo-se vivo, a pregar a palavra de Jesus, para pessoas absolutamente indiferentes e cuja influência social jamais alcançaria sanar os graves problemas que preocupavam o seu espírito, quanto à miséria do povo e à ganância dos ricos. Investira contra os consumidores de drogas e os traficantes, responsabilizando o governo em particular e a sociedade em geral, sem, contudo, oferecer uma única solução de caráter científico, tendendo para uma visão meramente romântico-sentimental das condições humanas, como se fosse possível ao próprio Messias arrastar as multidões para efetuarem as transformações morais que redundariam numa sociedade mais justa e mais digna.
Achou que não concluiu a pesquisa íntima solicitada por Maciel, porque não chegou a caracterizar o porquê de seu desejo em tornar-se socorrista, mas definiu sua vontade de trabalhar pelos semelhantes, mesmo porque não se sentia muito bem a vasculhar os meandros de sua personalidade espiritual. Considerou que tinha mais tempo para as reflexões e se entreteve com a idéia que lhe borboleteava em torno de seu amor-próprio, qual seja, a idéia de não haver sido selecionado para se filiar a nenhuma equipe de trabalho.
Desde logo percebeu que não se encontrara com nenhum ex-religioso, padre ou pastor, o que o fazia, de certa forma, um pouco incompatível com os demais, ao menos quanto aos ideais sustentados em vida. Isso também poderia ser um empecilho, porque lhe dava alguma preeminência cultural, muito embora esta idéia lhe causasse muito desconforto.
“Por que não atino logo com uma grave acusação da consciência, eu que vivi tanto tempo a ruminar as diretrizes cristãs para descobrir em mim os descompassos dos defeitos e dos pecados? Terei feito crescer o orgulho, eu que, a todo momento, estou considerando que sei isto e aquilo melhor que ninguém, por força de ter tanta coisa de cor e à disposição? Será que o próprio tempo dedicado ao recolhimento e à descoberta dos fundamentos morais de minha psique terminou por encobrir, e mesmo a fermentar, exatamente o que tanto buscava eliminar através das preces e dos sacrifícios?”
Ajustou, então, os pensamentos no sentido de buscar entender as reações alheias, não mais pelo temor de enfrentar uma inteligência melhor dotada, mas pelo medo de conviver com uma pessoa cheia de defeitos, intransigente e impertinente.
“Se for isso, como é que teriam tido conhecimento de minha íntima composição de caráter, quando eu mesmo me considero totalmente incapaz de perceber como pensam e sentem os meus alunos, quanto menos os meus colegas? Que indícios de inferioridade lhes terei passado?...”
Suspendeu o pensamento na metade, imaginando se sua história não estaria consignada nos arquivos da instituição, à qual, sendo assim, teriam todos acesso através dos processos computadorizados. Imediatamente, acionou o aparelho e consignou o seu nome. De fato, registrava-se a sua biografia, mas unicamente o que ele mesmo havia ditado, sem nada que pudesse desaboná-lo.
Foi aí que lhe veio a idéia de chamar para a tela a figura de seu professor Maciel. A primeira informação era de que se tratava de um professor emérito, cuja atuação na tal Escolinha de Evangelização, de que era diretor, datava de sua fundação. No alto da página, o dado surpreendente de que haveria duzentas e setenta e duas páginas a serem lidas, consignando-se uma biografia múltipla das últimas doze encarnações, a partir da última até a primeira, em ordem decrescente, portanto, como a caracterizar primeiro as qualidades como efeitos provenientes de causas que se descobririam depois.
Adonias achou estranha essa disposição, pensando que fosse para resguardar a boa memória das condições atuais, e tentou invadir o passado do professor, adiantando-se para o fim da descrição psicológica, mas o programa não respondeu, fixando-se na página de rosto que deveria ser assinalada através de algumas perguntas e respostas que indicariam que a leitura fora completamente realizada.
Essa dificuldade fez que Adonias se desinteressasse pela história do mestre, a qual lhe pareceu situar-se exatamente no ponto em que estava a sua, já que não conseguia retroceder sequer para a sua penúltima peregrinação carnal. Chegou, inclusive, a pensar em desistir de dar seu curso e de freqüentar o outro, achando que deveria candidatar-se a alguma tarefa humilde, conforme se acostumara no convento, onde prestava inúmeros serviços braçais, benigno suor que lhe dava o direito de pensar em que estava sendo útil à comunidade e, por tabela, ao conjunto dos seres humanos.
Foi com essa intuição que adormeceu, ainda lhe perpassando pela mente a perquirição sobre a razão de necessitar desses momentos de restauração física, quando seu corpo era fluido e suas energias tão facilmente recarregadas, tanto que sua alimentação era frugalíssima e até esporádica.



4. ENTREVISTA COM O PROTETOR

Na manhã seguinte, acordou decidido a consultar o seu particular amigo e consultor, o Doutor Adão, a quem tanto devia em termos de se manter emocionalmente equilibrado.
O que tinha em mente era uma imediata submissão aos processos de restabelecimento da memória, porque estava perdendo sua identidade como sacerdote, sem a devida substituição como pregador evangélico nem como discípulo aplicado para o aprendizado do socorrismo. Em suma, pensava estar alheando-se de si mesmo, esfumaçando, como pensou, em uma nova personalidade fluida e amorfa.
Antes, porém, de procurar o médico, resolveu que deveria contar tudo a Alice, a qual lhe daria o primeiro conselho e, com certeza, o primeiro conforto moral, para que mantivesse sua paz de espírito e seu bom humor, justamente no sentido de poder encarar uma situação insólita dentro de todo um arcabouço perfeitamente estruturado. Como ele mesmo imaginou, não seria esse o caso de perder as estribeiras.
Alice, contudo, mandou dizer-lhe, por via telefônica, que estava tão ocupada naquele instante que nem atendê-lo poderia. Esperasse até o horário da próxima refeição. Isso fez que Adonias se imaginasse perdido, principalmente porque teria de passar não sabia quanto tempo vagando, sem ânimo para criar interesse fosse no que fosse.
Ia passando pelos longos corredores, quando ouviu gemidos numa das alas hospitalares.
“Será que haverá algo que eu possa fazer pelo infeliz sofredor?”
Não deu curso a semelhante raciocínio e se imaginou enfermeiro ou socorrista, alguém que tivesse por dever atender os irmãos em apuros, encaminhando-se rapidamente na direção de onde provinham, cada vez mais intensos, os reclamos por ajuda.
Era um petiz que soluçava nos braços da mãe e que se contorcia em dores. Os gemidos eram dela, que não sabia o que fazer para atenuar o sofrimento do filho.
Adonias chegou perguntando:
— Que foi? Que aconteceu? Que tem a criança?
E logo foi colocando a mão na testa do menino, a constatar a temperatura. Mas ele estava absolutamente gelado, como sem vida, embora se agitasse, debatendo-se, lamuriando-se sem articular palavra.
— A senhora já avisou os médicos? Algum enfermeiro já veio atendê-la?
Mas a mãe permaneceu em seu mutismo, como se nem percebesse a presença de Adonias.
Nesse momento adentrou uma equipe de médicos e paramédicos que, imediatamente, examinaram a criança, diagnosticaram o mal, medicaram e puseram o menino sob observação, enquanto um dos médicos dava instruções à mãe, que lhe agradecia sensibilizada, com palavras em que havia uma fartura de bênçãos, de Jesus, de Virgem Maria e de Pai de Infinita Misericórdia.
Só então um dos de branco observou a presença de Adonias e se dignou pedir-lhe:
— Padre, por favor, concentre-se numa prece pelo nosso irmãozinho que acaba de chegar.
Era o que Adonias melhor fazia. Por isso, recitou uma oração em que reunia o êxtase de um momento de lucidez com a mais absoluta compreensão de que havia uma utilidade em seu desenvolvimento espiritual, porque, ao derredor da mãe com o filho, se criou uma tela fluida protetora, que formou uma espécie de campo energético, como um cobertor que resguarda o calor e impede sua dissipação no frio do ambiente externo. Suas palavras estimularam muito especialmente a esperança, a fé e a caridade; esperança em que o futuro imediato dos pacientes lhes prometia muita paz e tranqüilidade; fé em que o Pai sempre lhes enviaria seres de superior qualidade para a ajuda consoladora e retificadora dos desvios de procedimento; caridade porque Adonias fazia questão de que essa virtude transcendesse as duas figuras visadas e dessem resplendor aos membros da equipe ali reunidos em compungida atitude de respeito e colaboração com os sentimentos do sacerdote.
Quando percebeu que ficara sozinho é que Adonias recobrou a consciência da hora e do lugar, imaginando que Alice já deveria estar esperando por ele no refeitório.
Mas, ao lá chegar, ao invés de Alice, encontrou Adão, de quem recebeu um prolongado abraço, como de uma amizade que lançava raízes em profundezas da alma que ele não conseguia penetrar.
— Com que, então, o meu jovem palestrante deseja conversar comigo. Pois estou à sua inteira disposição. Antes que me esqueça, Alice me pediu para avisá-lo de que vai atrasar-se um pouco, chamada que foi a auxiliar em uma adaptação espiritual de risco.
As palavras não causavam mais em Adonias o empecilho do entendimento, de sorte que soube interpretar corretamente que se tratava de um caso de ajuste às circunstâncias existenciais de alguém que se imaginava ainda no plano terrestre. Por outro lado, esses problemas também não lhe provocavam entusiasmos de principiante, como se toda situação aflitiva merecesse imediata atenção. Desde que despertou para sua condição de espírito, colocou todos os problemas nas mãos de Deus, ciente e consciente de que o Pai sempre protege as criaturas, na justa medida em que estas correspondem ao seu divino amor.
Tais pensamentos correram pela mente ágil de Adonias em átimos de segundo, de modo que, sem transição, pôde dar uma resposta à observação de Adão:
— Entre o momento em que manifestei o desejo de conversarmos até este instante, ocorreu um fato que me deixou absolutamente enlevado com as minhas possibilidades terapêuticas, por assim dizer, na qualidade de pastor de almas ou, melhor dizendo, de sacerdote afeito às preces e, portanto, apto a integrar qualquer equipe socorrista para apoio meramente fluídico ou energético, que me faltam as palavras mais adequadas, no sentido, mais precisamente, da criação de um anteparo vibratório para introdução no ambiente de algumas forças emanadas dos espíritos superiores, como uma capa de chuva é capaz de impermeabilizar um pequeno trecho exposto, para que as vestes e a pele não sofram o impacto das águas. Então, eu, que temia pelo curso que comecei a ministrar e pelo fato de me ter visto sem equipe para as aulas do Professor Maciel, agora já posso considerar-me bem encaminhado, pronto para enfrentar os segredos de meu passado, pois utilidade já vislumbro para minha humilde personalidade. Será que meu amigo e protetor, meu mestre e companheiro, meu instrutor e mentor, meu excelso orientador...
— Diga logo que você quer que eu lhe abra a mente, ou melhor, a memória, para os fatos passados que possam favorecer-lhe sua imersão espiritual em um universo todo seu, para que sua personalidade se reconstrua por inteiro, mesmo que haja muitos problemas a serem resolvidos e que você corra o risco de profunda desilusão quanto, inclusive, aos feitos últimos na Terra e cá no espaço.
— Se for possível e recomendável, porque, quando você coloca esses muitos problemas como algo tão concreto, parece que está a me sugerir que irei frustrar-me a ponto de precisar de internação, se é que não vá cair, definitivamente, na erraticidade das profundezas do Umbral.
— Você não se esqueça de que os bloqueios são muito mais naturais do que provocados por nossos especialistas em implante de microchips inibidores das reminiscências mais pesadas, que poderiam pôr em alvoroço todo o sistema mental, causando desequilíbrios tais que se impediria o discernimento relativo ao apanhado gradual do acervo de conhecimentos que promovem um verdadeiro escudo intelectual para os assaltos da emotividade inferior. Vamos dizer que você descubra, por exemplo (e isso é apenas um exemplo), que, na peregrinação terrena anterior, tenha assassinado, por razões difíceis de compreender agora que está em paz consigo mesmo e com todas as criaturas de Deus, uma pessoa que, atualmente, tem estado com você, tem tratado de você, demonstrando não só que o perdoou como que criou uma afeição bem maior do que se poderia suspeitar depois de tão grave cometimento criminoso. Será que seu coração não irá acusá-lo de nada? Será que sua inteligência não quererá vasculhar o passado, até encontrar as razões que o levaram ao ato de loucura? Será que, uma vez imerso em uma realidade que se perdeu no tempo mas que a mente é capaz de reproduzir com tantos pormenores, não irá você se deixar embalar por aqueles sentimentos inferiores e infelizes, numa busca inconsciente de justificar, inclusive, o seu ato pelo concurso das circunstâncias? Será que você terá suficiente domínio de si, de suas emoções e de suas reações psíquicas, para compreender que aquela figura com quem você estava identificando-se já não existe e que agora, em seu lugar, se encontra uma pessoa capaz de praticar o bem, de refletir sobre os acontecimentos, relacionando causas e efeitos, e de perdoar incondicionalmente, abrindo perspectiva de muito amor para aquela pessoa que soube superar tão criativamente, tão evangelicamente, um transe fundamental para o relacionamento que se abalou de maneira tão intensa? Se tal estiver ocorrendo com você, saiba que a sua memória se abrirá naturalmente, ainda que os procedimentos de resguardo artificiais estejam implantados em seu cérebro. Terá você pensado que tenho o domínio de sua existência anterior e que partiria de mim a descoberta de quem você sempre foi, ou melhor, de quem você vem sendo nessa evolução psíquica pela qual todos estamos avançando?
Adonias, que se embebeu em todas as palavras de Adão, surpreendeu-se afirmando:
— Eu acho que, para exercer minhas funções nesta instituição, preciso enfrentar algumas dificuldades maiores e não apenas um certo alvoroço de ineficácia, tendo em vista a comparação que realizei entre a minha pobre apresentação e a fulminante demonstração de capacidade do Mestre Maciel. Eu acho que tenho escondida nas dobras de minha memória uma personalidade muito perversa, para estar a merecer resguardo tão grande. Mas se é como você diz, ou seja, que vou despertar naturalmente para a pessoa que sou como resultante da que fui, posso demonstrar que aprendi a ter paciência, pelo menos inconscientemente, dado que foram tantos os anos que passei iludido quanto a estar ainda vivo e quanto a estar trabalhando pelo bem das pessoas.
— Então, fiquemos assim: se você julgar que tudo por quanto venha passando na existência tenha importância, vamos começar por eliminar os fatos repetitivos, como sejam os tantos dias em que a gente nem nota, porque iguais uns aos outros, com um pouquinho a mais de elucidação cultural, um tiquinho a mais de melhoria ou de degeneração de desempenho físico, um nadinha de afeição que se recebeu ou que se deu a mais às mesmas pessoas, uma emoçãozinha mais caprichada quando se encerra algum ciclo de aprendizado ou de trabalho...
— Já entendi, preclaríssimo mentor. Você está a me sugerir que a minha preocupação está centrada em fatos expressivos, algo como as decisões que mudam o rumo de nossas vidas, como no exemplo do assassinato que você me deu ou do recebimento dos votos como sacerdote, ou do dia em que, de certo modo, renunciei a eles. Mas não é bem assim. O que eu gostaria mesmo de saber, voltando milênios atrás, é quem tenho sido eu e o que tenho feito, para me ver agora guindado a uma posição da mais alta responsabilidade...
— Responsabilidade relativa, porque o número de seus alunos, como você sabe muito bem, é reduzido e, mesmo assim, seu corpo discente se constitui de espíritos de certa evolução que não vão deixar-se embair, caso você lhes tente passar conhecimentos viciados por opiniões pessoais sem base nos princípios evangélicos, em desacordo com a programação que você anunciou e se propôs a ministrar. Conclua o meu pensamento: isto quer dizer que a pessoa mais ricamente...
Adonias não titubeou:
— ... mais ricamente aquinhoada com essa oportunidade de crescimento espiritual é o próprio expositor. Devo, por uma questão de lógica de raciocínio, acrescentar que, quanto a Maciel e sua aula, o proveito que ele possa estar extraindo reside justamente no ganho de novos discípulos para o plano da verdade, de sorte que seu número de amigos se amplia e isto vai constituir-se em mais focos de felicidade. Sendo assim, o mérito do meu mestre está em crescer objetivamente e o meu ainda se situa no estreito círculo do subjetivamente.
— No entanto, meu querido sacerdote ou pastor, não é de pouca monta essa arguta exposição exploratória dos fatos de uma realidade que lhe interessa tão de perto. Por que, pois, dedicar-se a um passado misterioso, que só pode ter sido um cadinho de complicados sentimentos, desde que tão rigorosamente vedado ao conhecimento imediato, ainda que você se esforce por suplantar as deficiências de sua organização mental. Você entende que a lei de progresso vale para todos nós e que hoje sempre somos melhores do que antes? Responda-me como leitor das obras de Kardec.
— Claro que sim! Já foi o tempo em que eu esperava que a cada pequenina ação em prol dos meus semelhantes se acenderia mais uma estrelinha no céu de minha ditosa condição de bem-aventurado, merecedor de todas as regalias do reino do Senhor.
Nesse instante, desenhou-se claramente no campo de visão íntima de Adonias, um quadro meio apagado em que sua mão se erguia munida de um punhal e se abatia contra um corpo que mantinha preso entre as pernas. Era um retrato esfumado, como se de sua fúria partisse em ondas de ódio uma vibração que enegrecia todos os seus meios de contato com a realidade, como se todos os seus sentidos estivessem concentrados nessa atitude mental que lhe parecia obstar, com a morte do espírito, toda possibilidade de futuro, muito mais do que o decesso daquele que se contorcia nas vascas da morte.
Adonias apertava as mãos do amigo, indicando-lhe que algo estava acontecendo consigo, justamente no campo de memória que se abria. Mas não se surpreendeu que tudo se apagasse repentinamente, quedando a forte impressão de que o relato do amigo lhe provocara a reminiscência dolorida. Ao invés, no entanto, de mergulhar no passado a ver se descobria algo mais relativo à situação crucial do assassinato, preferiu volver ao plano presente, descobrindo que estava no refeitório, ao lado do médico, onde muitas pessoas se alimentavam alegremente, conversando, sem darem atenção a seu drama pessoal, como se o universo não se tivesse afetado por tão graves descobertas.
Foi quando o incentivou o protetor:
— Vamos orar, porque a misericórdia de Deus é infinita.



5. AFLORA O PASSADO

Adonias passou o restante da tarde bastante eufórico, dando vazão a uma alegria quase inconveniente para os locais por onde andou, visitando pacientes na ala hospitalar, conversando com os atendentes nos diferentes setores a que tinha acesso, no refeitório, na portaria, na biblioteca e até no necrotério. Falava do tempo, estendia-se a respeito do sucesso da apresentação do Professor Maciel, introduzia algum tema da moralidade bíblica, buscava decifrar os segredos da dedicação dos que trabalhavam nos setores tecnológicos, principalmente em relação à central de computadores. Até com os técnicos da manutenção dos elevadores foi conversar.
Mas levava um objetivo dentro de si que não revelou sequer através das perguntas que fez, porque estava buscando medir se o empenho de cada entidade emendava o presente ao passado, com vistas a um futuro almejado. Sendo assim, prestava atenção, sobretudo, quanto às referências a passagens pessoais, acontecimentos sociais, funções, cargos e profissões exercidos e, mais que tudo, quanto às notícias dos familiares que ficaram para trás, na Terra, na erraticidade, ou que se encontravam reunidos na colônia ou fora dela. E punha tento em qualquer indício de planejamento arquitetado em relação aos alvos existenciais a serem conquistados em futuro próximo ou remoto.
Recolhido ao seu quartinho mais cedo que de costume, pôde rememorar todos os passos do dia, percebendo, em minúcias, todas as informações diretas ou indiretas que lhe haviam chegado. Pensou em que tudo se iluminava em seu cérebro, bastando enfocar o momento passado como área de interesse, como se os fatos estivessem desenrolando-se naquele justo instante.
Imaginou que esse exercício poderia ter sua utilidade para uma crítica sagaz ou para novas observações relativas às pessoas envolvidas nesse verdadeiro álbum de fotografias ou nessa cinemateca particular, penetrando um pouco mais fundo em suas considerações a respeito do papel da memória como acervo indispensável para a criação de uma personalidade voltada para a imagem ideal de ser humano, correspondente à figura ímpar e superior de Jesus de Nazaré.
Riu nesse momento, recordando-se dos tempos em que assumira uma postura exterior de messias, mas buscou enfronhar-se um pouco mais na intuição de que Jesus, embora considerado perfeito como ser humano, não serviria como modelo a todos e se punha a cavar nos textos arquivados na memória qual o que corresponderia a um Jesus dando curso à lei de reprodução, porque todos os seres vivos têm a obrigação de procriar, agora ele bem o sabia, para propiciar a outras entidades espirituais a oportunidade de uma nova imersão na carne, com vistas às realizações vitais para o progresso, em certos fatores específicos da personalidade.
Viu-se sacerdote e casto. Juntou ao seu retrato os de seus pais, o de sua irmã com o filho, o de Alice e deixou a imaginação avançar solta, unindo e desunindo as pessoas, fazendo as mulheres assumirem outras maternidades, juntando aqueles seres na formação de novos casais, dando um aspecto absolutamente moral a tudo, porque ia pondo cada par em uma nova existência carnal, até que se viu diante de Dona Genoveva em segundas núpcias.
“E agora?”
Perguntou em voz alta sem encontrar uma resposta que correspondesse exatamente à sua idéia de fidelidade matrimonial, ele que oficiara tantos casamentos declarando que a união dos casais se dava até que a morte os separasse.
“E depois da morte? Depois da morte, não existe amor? Se existe, é possível que se encontrem aqui para seguirem juntos dois ou mais cônjuges? Terei eu mesmo me casado em encarnações anteriores? Onde estarão as minhas esposas? Ou os meus maridos, caso eu tenha revestido o organismo feminino em alguma delas? Ou terá sido na maioria delas? Por que mantenho esta figura decalcada em um momento da derradeira vida?”
Ocorreu-lhe observar-se no espelho. Foi ao banheiro e se pôs diante de sua imagem, a decifrar as possíveis mutações desde o decesso. Sua mente fervilhava com todos os retratos desde que se vira e se identificara pela primeira vez. Foi-lhe fácil organizar, em ordem cronológica, as lembranças desde a primeira infância, correndo célere cada fisionomia entrevista, imprimindo à visão interior um movimento cinematográfico, de sorte que a sua fisionomia se modificava rapidamente, mantendo as características fundamentais, mas ganhando ou perdendo ingredientes externos ou internos, como quando se machucava ou engordava e emagrecia. De repente, sustou a marcha das recordações e se fixou no retrato definitivo, aquele que se lembrara de ter visto no dia de sua morte. Foi essa imagem que fez questão de comparar com a presente.
“Se me tivessem perguntado, eu diria que minha aparência é a mesma desde o acidente fatal. Vejo agora que dei andamento, inconscientemente, às alterações faciais, como se vivo tivesse permanecido, envelhecendo fisiologicamente. No entanto, pelo pouco que li da biografia de Maciel, por exemplo, sua figura atual está paralisada numa idade aproximada de quarenta anos, enquanto faz mais de cem que está de volta ao etéreo da última peregrinação terrena. Quer dizer este fato, evidentemente, que ele resolveu todos os problemas e que agora caracteriza sua pessoa da forma que julga a mais conveniente para sua apresentação pública. Certamente, indo a outras plagas, a sua imagem se adaptará às novas circunstâncias, podendo ser um jovenzinho de vinte ou um velho de oitenta, conforme as necessidades. Quais seriam essas necessidades? Imagino que ele possa estar cursando algumas aulas avançadas, curso superior, em esfera de maior luminosidade espiritual. Aí vai com a aparência dos vinte anos. Depois, para impor respeito a uma assembléia de austeros senhores recentemente reintegrados à erraticidade, como no caso do mosteiro onde os sacerdotes ficam no aguardo dos anjos que virão tirá-los do purgatório, ele vinca a pele com sulcos profundos, branqueia os ralos cabelos e...”
Ia falar que daria menos brilho aos olhos mas espantou-se ao observar que sua própria visão estava perfeita e que havia deixado de se utilizar de seus óculos há bastante tempo.
“Estarei apto a executar essas metamorfoses? Se bem me lembro, houve um momento em que perdi completamente o domínio de meus recursos mecânicos. Isso se deu no instante em que descobri que não pertencia mais ao mundo dos vivos. Agora estarei habilitado para forçar uma transformação?”
Passou-lhe pela mente a idéia de que, tal como a memória mais antiga, também esse domínio adviria naturalmente, conforme fosse evoluindo. Mas não viu mal nenhum em realizar um exercício bastante simples. Pôs-se de novo diante do espelho e concentrou-se em sua imagem dos vinte anos de idade. Não deixou que sua mente vagasse pelo passado mas desejou ver no espelho as alterações pleiteadas. O que viu deixou-o estarrecido: estava diante de outra fisionomia. O retrato espelhado era de outra pessoa. Observou suas vestes e elas estavam também transformadas. Passou-lhe pela lembrança o quadro em que assassinava alguém e reconheceu-se o criminoso. Olhou com atenção para sua vítima, mas não obteve nenhuma reminiscência que a identificasse. Mas estava assustado, tanto que desejou volver ao estado presente, transmutação que se operou de imediato.
Demorou um pouco para restabelecer-se, mas terminou por considerar que, um dia ou outro, haveria de enfrentar-se no passado, perspectiva que achou agradabilíssima, tendo em vista que era capaz de sair dessas experiências sem grandes prejuízos.
Então, dispôs-se a regredir a memória para antes de sua última encarnação.
Ao olhar, porém, para o painel do terminal de computador embutido na parede, percebeu que piscava a luzinha do chamado interno. Ligou o aparelho e logo a imagem de Alice apareceu na tela, ao vivo, com quem estabeleceu a seguinte e rápida conversação:
Alice: Querido. Precisamos conversar. Eu soube pelo Doutor Adão que você teve uma visão retrospectiva de uma existência anterior e gostaria de estar presente, quando você voltasse a rememorar fatos tão importantes de seu, ou melhor, de nosso passado. Será que poderíamos encontrar-nos agora?
Adonias: Claro que sim! Onde você marcar. Estou disposto. Aliás, tenho algo mais para lhe dizer.
Alice: Estou no refeitório. Se você quiser, nós nos encontramos aqui e depois vamos para um lugar mais propício para o despertar dos fatos antigos.
Adonias: Você sabe que eu estava preparando-me para uma regressão à vida anterior, ou melhor, aos acontecimentos que entremearam as minhas duas últimas encarnações?! Pois a sua intervenção chegou na hora. Pensando bem, é sempre útil ter alguém de confiança do nosso lado, pessoa mais capacitada para sofrear problemas e elidir respostas...
Alice: Cuidado, querido, que as suas expressões estão ganhando um cunho fortemente misterioso para mim. Que quer dizer com sofrear problemas? Será que eu teria condições de evitar que os fatos relembrados causassem transtornos a você? É isso? E elidir respostas significa obstruir algum processo psíquico que seria oneroso para o equilíbrio de seu sistema emocional?
Adonias: Sabe que tais palavras me surgiram na mente como que vindas do nada? Eu apenas caminhava em certa direção e meus pensamentos se anteciparam até a meus próprios raciocínios. Você saberia dar-me uma explicação a respeito?
Alice: Eu não, mas, lá no Departamento de Regressão Assistida, existem irmãos habilitados a dar todo tipo de explicação. Se nós nos encontrarmos com o Doutor Anésio, ele já conhece bem os meandros de sua consciência, vamos dizer assim, para você receber, não uns ensinamentos de caráter geral, mas um diagnóstico efetivo de sua condição.
Adonias: Enquanto você falava, ocorria-me uma visão estranha, um ato de contínua perturbação, como se eu estivesse adentrando uma fase de esquecimento, mas do avesso, ao contrário. Suponho que minha natureza esteja concordando com minha ansiedade em descobrir o que fui e o que fiz, de sorte que estou passando desta última encarnação para a fase imediatamente anterior de perturbação crescente para a implantação de meu espírito no ventre de minha mãe. Não sei onde, mas me lembro de haver lido algures que se trata de um período de constrição perispiritual, de miniaturação ou miniaturização, terminologia que não me provocou uma boa reação... Você não acha melhor que eu leve estes problemas diretamente ao Departamento que você citou, onde nós nos encontraremos em alguns minutos?
Alice: Acho bom, porque você está em franco processo de descoberta de si mesmo.
Desligado o aparelho, Adonias pôs-se a suspeitar de que Alice, de algum modo, recebera mensagem telepática que ele transmitiu ou que ela foi capaz de estabelecer um vínculo energético qualquer com as preocupações que ele não fizera menção alguma de resguardar.
De repente, sem que tivesse saído do lugar para atender à sugestão da amiga, desencadeou-se em seu cérebro um processo incoercível de rememoração anterior à barreira de sua última encarnação, de sorte que se viu, numa seqüência inversa, sendo implantado no útero de Dona Genoveva, tendo uma reunião com o Seu Fernando, seu pai, e com a mãe, ambos em espírito, mas com uma faixa luminosa a configurar sua condição de encarnados, havendo, no círculo, outras entidades, entre as quais reconheceu, apesar das diferenças fisionômicas ponderáveis, a amiga Alice, o Doutor Adão e a irmã Clarice. Em seguida, viu-se imerso num sono profundo, até que sua consciência se aclarou, estando no centro de um grupo muito estranho de seres envoltos em trajes como de escafandristas ou de astronautas. Mais um pouco e se deparou numa clareira obscura, ajoelhado, clamando por socorro, pedindo perdão por um crime hediondo, reconhecendo a culpa e julgando da justiça das leis que lhe tinham sido aplicadas. Então se viu correndo por entre espíritos tão desesperados quanto ele, até que teve um momento de trégua, enquanto a sua mente fervilhava de acontecimentos que lhe pareceram conhecidos, mas que se embaralhavam quando tentava fixá-los.
Adonias entendeu que era a rememoração dos fatos da vida pregressa, logo após haver perecido. Tentava sustentar as reminiscências nesse ponto, a ver se sofria, mas os sentimentos apenas se reproduziam para o seu testemunho, como numa película cinematográfica em que as personagens atuam e o espectador observa, participando com pensamentos e eflúvios emocionais isentos de verdadeira identificação.
Mas não foi capaz de ir além, porque, conforme percebeu, havia parado para examinar as ocorrências segundo um prisma atual.
“Se eu me tivesse deixado ir, com certeza, estaria agora recapitulando a penúltima existência do começo para o final. Mas não tem importância, vou ter muito mais que contar à minha amiga.”
Mas a luzinha voltou a piscar:
Alice: Que aconteceu, Adonias? Faz um tempão que estou esperando por você. Até já preveni o pessoal, que me garantiu que o Doutor Anésio virá. Que houve?
Adonias: Não se preocupe comigo. Tive uma avalanche de recordações, mas acho que venci as diferentes circunstâncias, tendo em vista que o meu poder intelectual agiu com soberania sobre os estremeções sentimentais. Apenas estou sentindo-me um pouco zonzo, nada, porém, que me possa causar transtornos. Já estou de saída. Espere por mim. Obrigado pelas providências. Com o Doutor Anésio aí, ficarei absolutamente tranqüilo e seguro do resultado de minha regressão...
Alice: Quer que eu mande um grupo paramédico para atendê-lo?
Adonias: Acho que seria muito bom, porque assim eu teria a certeza de que conseguiria achar o caminho do Departamento de Defesa do Patrimônio Espiritual...
Nesse momento, Adonias escorregou da cadeira e caiu desmaiado. Um minuto depois, era retirado do quarto e conduzido para uma sala de restabelecimento e energização.
Ali estavam Adão e Anésio, que diagnosticaram uma recaída quanto ao antigo processo de obstrução cuidado anteriormente. Nada que uma injeção específica não tivesse o condão de contornar.
Em dez minutos, Adonias estava perguntando aos amigos se podia contar para aquela hora com uma sessão de restauro da memória.



6. UMA LIÇÃO INOLVIDÁVEL

Em torno de Adonias, juntavam-se também uns quinze técnicos do Departamento de Regressão Assistida, de modo que Anésio se sentiu à vontade para questionar a proposta do enfermo:
— Com que, então, meu caro, você está disposto e preparado para novos desmaios?
Adonias incomodou-se com o tom irônico da pergunta, mas ficou firme em sua decisão:
— Claro está que não depende tanto de mim, porque tudo me vem ocorrendo à revelia de minha vontade consciente.
Daí pra frente o diálogo foi assumindo um caráter do maior respeito, interessando a todo o auditório.
— Peço-lhe que me desculpe, padre, por tê-lo provocado de modo pouco reverente. Em todo caso, a sua proposta me pareceu sumamente despropositada, tendo em vista que um simples vislumbre de algumas cenas antigas, conforme me contou Alice, o pôs em pânico, sem, entretanto, pelo que posso ver, ter-lhe causado um trauma de monta. Vamos falar a respeito?
Adonias percebeu que a hora era oportuna para alguns esclarecimentos que não vinha conseguindo obter sozinho. Então, perguntou:
— Posso expor qualquer pensamento, com toda a lealdade, esperando encontrar receptividade aberta a todas as exposições, sem que o meu querido mentor, nem qualquer outra pessoa presente, queiram velar-me as respostas, acreditando que possam encontrar-me cheio de dedos, ou melhor, suscetível a melindres?
— E você responderia da mesma forma, por exemplo, se lhe perguntasse o que acha que o tem levado a se manter alheio às vidas passadas?
— Perfeitamente. Aliás, penso que a minha mente esteja agindo ainda segundo os padrões da encarnação na crosta, quando o meu organismo espiritual, vamos dizer assim, permanecia submetido às condições de um corpo material que me suprimia, como faz a todos, quase completamente, a liberdade de atuação, ainda que eu possa aceitar o fato de que, durante o sono, os encarnados como que se desprendem de suas amarras carnais.
— Vejamos se eu entendi o seu ponto de vista. Quer dizer que você acha que existe dentro de você uma pessoa que corresponderia ao seu espírito propriamente dito, cuja formação moral, filosófica, científica, religiosa etc. esteja sendo inibida pelos contornos de seu perispírito, segundo um critério de contenção fundamentado num possível desempenho contrário à sua própria segurança ou a de seus parceiros de existência? Em outras palavras, quer dizer que você gostaria de recuperar suas vidas passadas para melhor compreender o porquê dessas presilhas atuais, já que, tendo lido nas obras de Kardec que, após o desenlace da vida, os espíritos recuperam totalmente o domínio sobre si mesmos, reconhecendo-se como uma individualidade espiritual, está a considerar que os espíritos superiores, ou deveriam refazer suas mensagens aos mortais, ou acorrer para cumprimento de suas promessas em relação a você?
— Vamos dizer que eu esteja bastante decepcionado comigo mesmo, porque, tendo buscado a biografia do meu mestre nos arquivos da instituição, vi que ali se assinalavam suas passagens existenciais desde um ou mais milênios, enquanto me vejo limitado a apenas uma derradeira vida. Mas essa fase começa a mudar, tanto que me vi antes de ser implantado no ventre de minha mãe, até o momento em que passei por uma revisão, ao inverso, dos fatos de minha vida imediatamente anterior.
— Então, meu caro, algo deve tê-lo desgostado profundamente para que seu inconsciente, com perdão do termo, já que você gostaria que eu dissesse Espírito, talvez dando ênfase à inicial maiúscula, como registrou Kardec, se indispôs de tal forma que o obrigou não só a regressar ao momento presente, como ainda a desfalecer...
Adonias interrompeu-o meio afoito:
— É isso aí! Eu não sou eu, às vezes, porque o meu eu profundo age em discordância com a minha vontade, independentemente de desejar utilizar-me de meu livre-arbítrio, em favor de uma integração global da personalidade. Que sistema absurdo é esse que admite um conhecimento perfeito de si mesmo e que, ao mesmo tempo, considera absolutamente viável uma fenomenologia restritiva de meus direitos naturais? Veja, querido mentor, que não estou rebelando-me; apenas manifesto uma dúvida íntima das mais ponderáveis, tendo em vista que me mantenho firme intelectual e emocionalmente.
— Adonias, querido, será que você está ciente de que um conhecimento perfeito da gente mesmo só adquiriremos quando adentrarmos o reino de Deus?
— Perfeitamente...
— Então, raciocine comigo no sentido de perceber que os ganhos que vamos adquirindo, com o passar dos eventos em que vencemos as dificuldades de nosso caráter, vão assimilando-se à nossa personalidade aos poucos, ou melhor, num crescendo mais ou menos rápido, segundo a nossa atuação haja privilegiado pontos mais ou menos positivos do código das virtudes superiores. Na verdade, uma abertura completa de nosso passado não nos satisfaria, porque teríamos de eliminar, por conta de nosso consciente, uma série de acontecimentos em que fracassamos inúmeras vezes, até que conseguimos vencer as dificuldades, ao mesmo tempo que nos pomos de bem com os seres que conosco vão tendo suas experiências evolutivas. Isso seria mera perda de tempo, porque a recordação se refaria, estando a memória completamente aberta.
— Posso interromper?
— É justo que o faça.
— Apenas para observar que eu compreendo que nos pródromos de minha criação o mais certo é que eu tenha batido bastante a cabeça até iniciar uma curva evolutiva de ganhos reais e definitivos. Então...
— Então, permita-me inferir, você não está entendendo a razão de ter passado (como consigo perceber de suas informações telepáticas, as quais, devo avisá-lo, todos aqui estamos em condições de decifrar), há tão pouco tempo atrás, por uma fase de tremendo sofrimento nas trevas, quando sua expectativa era de que, desde há muito, vinha trocando de vestimenta carnal, flauteando na erraticidade, como lhe aconteceu nos tempos em que pregava na praia, exaltando a necessidade de se cumprirem os ensinamentos de Jesus. Não se trata exatamente disso?
Adonias não queria perder a serenidade, mas não podia fugir do compromisso de enfrentar as reações mesmo perturbadas por insidiosas, embora benignas, acusações de imperfeição. Então, limitou-se a acenar com a cabeça, confirmando a assertiva incrustada na pergunta do médico.
Anésio é que não quis malhar no ferro em brasa, fazendo longa pausa, dando tempo a que Adonias se refizesse das descobertas desagradáveis de sua forma de considerar a existência e de se ver a si mesmo como a um ser de alta capacidade de absorção das divinas leis. Foi por isso que o ex-sacerdote manifestou o desejo de bloquear o que lhe passava no íntimo, de sorte que os demais não fossem capazes de entender seus exatos sentimentos, embora lhe ocorresse que, em sentido genérico, havia ficado absolutamente claro a todos que ele estava necessitado de auxílio.
Concentrou-se na sugestão mais séria quanto a se considerar com méritos superiores aos reais e definiu uma nova questão:
— Doutor Anésio, com quem estou cada vez mais empenhado, explique-me por que, tendo regressado do mundo tão cedo da última jornada e não tendo realizado algo de alta significação espiritual, mereci permanecer em paz, iludido embora, por estas plagas, sem perseguições e sem maiores desesperos ou angústias, senão os de desejar reformar o mundo pelo paradigma cristão que, de resto, eu havia, de certo modo, confrontado com uma atitude de rebeldia, porque investi contra os preceitos religiosos que jurara defender e respeitar.
— Você, meu caro, está reconhecendo em sua atitude de então um certo defeito de visão do mundo, seja no sentido de se rebelar, seja no sentido de não haver concretizado algo de valor transcendente, como, por exemplo, ter deixado herdeiros que usufruíssem os dons da vida. Em suma, você gostaria de não ter sido padre, para não ter tido experiências tão amargas, como a desilusão de seu pai, que acabou suicidando-se, e como o engodo das pregações inúteis depois do decesso. Gostaria de superar essa crise de identidade, caracterizando-se, e também conhecendo a história de seus relacionamentos pessoais, através de rigorosa revisão de todas as suas atividades relativas ao resultado desalentador de uma vida inoperante quanto à lei da reprodução, para falar o menos. Você se encontra num beco, mais ou menos encalacrado pelo fato de se lembrar de que Kardec não deixou prole, muito menos Jesus e, no entanto, são seres exponenciais. Como você me responderia se eu lhe perguntasse quais foram os pontos positivos de seu desempenho vital na derradeira peregrinação terrestre?
— Primeiro, eu lhe agradeceria o alívio das pressões dos malefícios e, depois, eu lhe diria que tudo o que me deixou satisfeito foi ter encontrado certas entidades que me reconheceram e me forneceram indícios de que algum bem eu lhes fiz, não tanto por tentar realizá-lo, mas por firmar, como ponto primacial de um procedimento superior, o evangelho de Jesus.
— Muito bem, meu caro! Vamos concentrar-nos num aspecto fundamental para a sua compreensão de quem você é, qual seja, o de que todo espírito só merece adentrar o reino de Deus quando em plenitude de felicidade. Você é feliz?
Adonias bambeou. As suas ânsias de realização em todos os setores de seus interesses demonstravam-lhe, peremptoriamente, que sempre havia algo para fazer, a estimulá-lo a ir em frente, pois satisfeito mesmo com tudo que possuía não estava. Então, expôs, com o coração na mão:
— Meus amigos, se eu me desse o devido respeito como criatura de Deus, filho diletantíssimo, não me acusaria de nada, nem superestimaria as pequenas conquistas de meu intelecto e o mínimo domínio sobre minhas reações emocionais. No entanto, a todo momento, desejo compreender isso mais aquilo, dominar todos os conhecimentos, sem destinar uma correspondente...
Suspendeu a frase em meio, com o medo de estar enunciando um tema sobre que não se dedicara inteiramente, formulando apenas intuições, ou, ainda pior, meras conjeturas aleatórias construídas naquele justo instante, sem a reflexão que se deve propiciar aos pensamentos mais sublimes, os tendentes à expressão da verdade.
Como ninguém dissesse nada, aguardando a conclusão da frase, Adonias prosseguiu, desviando-se um pouco do ritmo dos pensamentos anteriores:
— Peço-lhes que me desculpem. Se me pedem para declarar meu estado de felicidade, acredito que esteja em uma espécie de modorra ativa, com perdão da incoerência da expressão, sabendo que tenho obrigações e deveres, para que adquira condições de atingir certos objetivos mais elevados, quais sejam, os de ajudar efetivamente as pessoas, conforme me forem sendo dadas as oportunidades, sem me sentir exatamente em estado de euforia, enquanto não resgatar meus débitos em relação a meu pai e a outros seres a quem devo ter ofendido e que aguardam pela minha exposição de motivos e correspondente pedido de perdão. Ao mesmo tempo, devo adverti-los de que um dos pontos que me determinam colocar alguns óbices à revelação de meu passado é justamente o fato de que, atualmente, não tenho nada a cobrar de ninguém, situação que julgo muito cômoda, porque, evidentemente, dada a natureza dos relacionamentos humanos e mesmos espirituais na erraticidade, é justo configurar que alguém tenha realizado algo contra a minha pessoa e que esteja mesmo aguardando para me pôr a par de que já evoluiu o suficiente para reconhecer seus erros e receber o meu abraço confraternizador. Por outro lado, também não quero constituir-me em pedra de tropeço, para o escândalo de nenhum ser que possa estarrecer-se pelo fato de eu não me posicionar de acordo com as diretrizes evangélicas, cujo comentário pleiteio junto a um grupo de discípulos interessados em conhecer um pouco mais do vigor dos textos do Novo Testamento. Não sei se consegui caracterizar uma espécie de contradição íntima de quem se aproximou tanto das palavras de Jesus e também se vê em palpos de aranha para resolver alguns problemas pessoais que envolvem soluções absolutamente conhecidas, digo mais, sabidas de cor. Serei feliz quando me for revelado integralmente o meu passado? Quem foram, durante toda a existência, as pessoas que receberam muito do meu afeto, inclusive minhas irmãs de ficção, Marta e Maria, duas entidades do etéreo que me ajudaram a manter a minha ilusão messiânica? Como fazer para ajudá-las, do mesmo modo que sinto estar recebendo tanta ajuda de vocês todos, fazendo-as refletir a respeito da existência e de todos os valores morais superiores que fluem das palavras e dos atos de Jesus? Mesmo depois de integrar todos os elementos de minha personalidade e de exercer sobre a realidade o domínio relativo de quem conhece e avalia todos os problemas a serem equacionados, poderei dar-me por satisfeito, na expectativa de suplantar todos os anseios que não cessam de se criar, às medida que vou aprofundando a análise das circunstâncias do meu existir? Se não for aleivosia de minha parte, posso perguntar-lhes, de coração e de mente aberta, se vocês são felizes e, se são, se é possível passar-me sua experiência psíquica, para que eu aprenda a agir em consonância com todas as leis naturais estabelecidas pelo Senhor para este recanto do universo? Cuidem de me suspender o chorrilho de idéias mal alinhavadas, porque, caso contrário, desandarei a revelar-me em todas as facetas de minhas exaustivas meditações, o que equivaleria a uma demonstração ao vivo e em cores de como o egoísmo pode ressumbrar de modo tão capcioso, por me considerar suficientemente habilitado a resolver de imediato cada pequenina aspiração de pôr-me no centro das atenções.
Anésio fez questão de interrompê-lo:
— Não pense que essa avalancha de frases irá impressionar-nos positivamente. Se você se compenetrar de tudo quanto fizemos em relação à sua pessoa, tornará evidente o pensamento de que agimos mais do que falamos; e de que planejamos bem mais do que agimos. A nossa felicidade, portanto, provisoriamente, pode assentar-se no princípio de que estamos realizando tudo quanto desejamos, conforme nosso entendimento do que seja a realidade em transformação para nós, quer dizer, colocamo-nos numa perspectiva de contínua evolução, algo bastante parecido com a sua atitude, com a diferença substancial de que os nossos interesses se concentram em áreas específicas do conhecimento científico, onde cada pequenino aprendizado se reflete de imediato na configuração do todo, enquanto, no seu caso, você está buscando decifrar o contexto, para depois introduzir nele cada aspecto analisado de seu sistema particular. É como se você estivesse diante de um painel, desejando conhecer-lhe os limites, ao passo que nós, mal e mal, vamos construindo um pequeno quadro, compondo-lhe a pouco e pouco a estrutura de significações. Nesse caso, fica bem mais fácil para nós atingirmos um certo equilíbrio dentro do sentimento geral de felicidade; para você, esse equilíbrio se torna um desejo de conquista, uma finalidade, um objetivo, um alvo, em suma. Para nós, a felicidade é o resultado de um trabalho; para você, a felicidade é a elaboração em si desse trabalho, que se põe como a espiga de milho dependurada diante do burro, que ele persegue e que jamais alcança. Então, volto a perguntar-lhe, mudando um pouco a questão: você, meu querido amigo, está feliz?
Adonias ainda ruminava os conceitos mais sutis, observando que Anésio não lhe poupara o ato do raciocínio por meio de uma exposição didaticamente constituída, seja porque não quisesse, seja porque julgasse que nem tudo ele teria condição de assimilar, seja, ainda, porque o assunto deveria merecer outros desdobramentos mais complexos. De qualquer modo, resolveu responder, não sem antes tomar fôlego, porque achou que iria deslanchar novamente:
— Você me pergunta e eu devo responder, porque a sua exposição me revelou que vocês estão todos contentes com este momento que passa. Se eu for delimitar as minhas sensações pelo mesmo padrão referencial, devo dizer que a minha felicidade nem pode ser considerada, porque eu me encontro sendo argüido justamente no tópico a que me referi quando disse que, no mesmo instante em que sinto o fluxo existencial tão intensamente, não posso reflexionar a respeito das sensações em si, ou seja, ou me preocupo em estabelecer um prisma intelectual para enfrentar...
Anésio percebeu que Adonias, com certeza, iria estancar de vez a fonte de suas intuições, porque se encaminhava, de novo, para o discurso do momento. Então, interrompeu-o de novo, gesticulando significativamente como quem vai mudar de assunto e lhe perguntou de chofre:
— Vamos iniciar o processo de restabelecimento induzido da memória? Você se considera apto a desvendar de vez todos os segredos que se ocultam de seu consciente? Ou, antes, gostaria de questionar algum tópico que lhe pareça confuso e que poderia causar algum problema quando da descoberta dos fatos e dos relacionamentos antigos?
— Gostaria muito de perguntar, desde logo, por que a gente necessita de tantos rodeios para atingir determinados fins, quando, na Terra, sabendo que a vida possui um conjunto de regras físicas, dentre as quais a correlação entre idade cronológica e idade psíquica, as pessoas vão dando prioridade a certos aspectos, segundo interesses que resguardam, e se abstêm de maiores filosofias, bastando-lhes a rotina das realizações concretas. Eu sentia isso e não chegava jamais a entender como é que algo tão importante quanto a vida futura era deixado nas mãos e sob a responsabilidade dos que se diziam representantes de Deus na Terra. Terei eu, eis a questão, deixado contaminar-me por esse tipo de estrutura mental, de modo que as minhas ânsias e expectativas residam justamente no fato de estar sendo obrigado a assumir completamente a responsabilidade pelo meu crescimento ou aperfeiçoamento espiritual?
— Não é bem isso, bom amigo, mas também isso. As coisas vão adquirindo cada vez maior complexidade no âmbito das reflexões, como quando a criança se desenvolve e seu aparato cerebral ganha desenvolvimentos físicos para dar guarida a novos raciocínios, como na mais célebre fase da passagem da mentalidade concreta para a abstrata. Também nós, no etéreo, e com maior razão, vamos incrementando ao acervo sempre mais elementos extraídos do inexaurível escrínio de nosso espírito. Sendo assim, é justo raciocinar de maneira mais simples quando o nosso adiantamento é pouco. O censurável se situa na faixa dos defeitos transformados em sutilezas, como a preguiça, por exemplo, a se pôr sob o escudo dos protetores, dos mentores, dos profissionais das diferentes áreas humanas, no caso que você citou, do sacerdócio, e assim por diante. Mas não se tem como fugir do auxílio especializado dos médicos, por exemplo, porque não podemos pleitear a todos os indivíduos que tenham freqüentado os exaustivos cursos médicos, como ainda tantos outros que nos enfadaria citar agora. Uma criança que tenta ser autodidata quase sempre esbarra com a alfabetização, fundamento de todo o conhecimento, ou melhor, de quase todo o conhecimento sistematizado em ciências e tecnologias. Quanto à vida futura, especialmente, todas as existências se abrem para a verdade, independentemente do volume de preconceitos que tragam arraigados em sua estrutura psíquica. Neste caso, o tempo de espera na espiritualidade, padronizado de forma diferente daquele que se vive no planeta, se torna um auxiliar importante para as descobertas sucessivas que encaminham os indivíduos para a assimilação integral das leis que regem o universo físico e o universo moral. Existem resgates a serem realizados? Tanto pior para as ânsias de progresso, porque a reconciliação é obrigatória, uma vez que, cada vez mais, a nossa felicidade, ou melhor, o nosso conforto e bem-estar espirituais dependem do esforço que dedicarmos à conquista das mesmas bem-aventuranças, neste caso provisórias, de nossos irmãos adversários, que têm de ser transformados em amigos, para que a gente consiga ascender, dado que, sem paz, isso jamais se realizará. Quanto a você, acho que se dará por satisfeito com o nosso empenho, mesmo porque não haverá de exigir de si mesmo, de imediato, a apreensão de toda a sabedoria.
Adonias arriscou ainda um palpite:
— Anésio, você está querendo dizer que não estou em condições de apreender todo o meu passado, porque teria de conhecer muitos outros princípios existenciais que desconheço ainda?
— Não estou dizendo isso, ou não lhe perguntaria se está disposto a fazê-lo. No entanto, cabe-me adverti-lo de que a sua memória irá desvendar-lhe muitos segredos para a decifração dos quais você terá de se aplicar com denodo, porque vão exigir-lhe um poder de perspicácia muito aguçado, já que a integração das causas a seus efeitos necessita de outros conhecimentos da realidade que não se encontram guardados em seus depósitos de memória, pelo simples fato de que todos nós sofremos o influxo dos acontecimentos gerados por outras entidades, cujos intentos nem sempre acabam sendo de nosso conhecimento. Daí a dificuldade de restauração da verdade dos entreveros, quando ela se dá após o decesso, valendo a palavra de Jesus, que pedia a reconciliação o quanto antes, tendo em vista, evidentemente, que as pessoas envolvidas têm a possibilidade de restabelecer todos os pontos de vista, ainda que fiquem devendo, muitíssimas vezes, o exame correto dos fatos psíquicos a que dão vazão mas cujos impulsos não dominam.
— Entendi, caro mestre. Se a pessoa é capaz de ter em conta o que na verdade aconteceu, há de ter também o cuidado de deslindar todo o processo que resultou naquele desfecho. Mesmo assim, penso que seja, no meu caso, quer dizer, sem generalizar, porque outras pessoas poderão estar pior preparadas que eu, penso que seja melhor que me lembre de tudo, esforçando-me, em primeiro lugar, por atribuir a cada pequenina interpretação que der aos acontecimentos os conceitos evangélicos superiores do perdão, do amor e do respeito pela condição de irmãos de todos os seres; e, em segundo lugar, abrindo o coração aos seres que se interessarem em me ajudar, para que possam sugerir soluções onde eu mesmo estiver em dificuldade. Assumo, solenemente, o compromisso de não perturbar a ninguém, caso as minhas deficiências se situem num plano demasiado superior, prometendo buscar equacionar por mim mesmo todos os problemas, mas sem a prévia concepção de que esteja superiormente dotado para isso. Também, respondendo à sua advertência telepática, prometo manter-me dentro da esfera formada como campo de força pelos responsáveis por esta colônia de espíritos em fase de reconhecimento das forças existenciais necessárias para passarmos adiante no ciclo evolutivo. Não pretendo colocar mais nenhum ponto específico de reflexão, antes dos trabalhos de restauração assistida de minha memória.
— Vamos para as questões de ordem prática. Você daria preferência para uma recuperação do passado em estado consciente, permanecendo desperto, conversando conosco a respeito do que for descobrindo; ou gostaria de permanecer como que em estado sonambúlico, ou seja, adormecido mas apto a conversar conosco, passando referências sobre o que vai percebendo, tendo como recurso a recordação da regressão de memória a posteriori, por força de incitarmo-lo a reagrupar o acervo recuperado?
— Quais as vantagens e desvantagens de um e de outro método?
— O processo em vigília vai fixando todo o desenrolar dos trabalhos na hora; o sonambúlico peca por não oferecer esse tipo de controle imediato. No entanto, estando acordado, é bem mais fácil uma interferência emocional de caráter deletério, já que, dormindo, os eflúvios sentimentais quedam em suspensão.
— No meu caso, o que sugere você? Não seria bom iniciar de um modo, digamos, acordado, e terminar, se fosse preciso, através da indução hipnótica?
— Podemos começar com você consciente, é óbvio. Contudo, a violência das reações nervosas sempre haverá de obstar o trabalho de hipnose. Nesse caso, controlaríamos as suas sensações mais penosas através de nossos recursos de sedação, mas isto nos bloquearia o efeito do sonambulismo. Quanto a sugerir, eu acho que você está demonstrando que não se apressa, pela paciência em ouvir tantas explicações. Já tivemos casos de irmãos que não se derem ao esforço de ouvir nenhum arrazoado complementar, de sorte que, para esses, estar conscientes não se recomendava. O fato de você não ter tanta pressa poderá ser útil para, estando desperto, poder solicitar que suspendamos a sessão em determinado ponto, para volvermos a trabalhar na recuperação do passado noutra oportunidade, porque, afinal de contas, como você está a ruminar, o nosso tempo se conta sem a precipitação provocada pela constante presença da morte no âmbito mental dos humanos.
— Aceito a sugestão. Vamos dar início aos trabalhos.
Adonias foi convidado a entrar no salão em que se achavam os aparelhos e demais petrechos para aquele tipo de serviço especializadíssimo. Foi quando Anésio explicou:
— Teremos de adormecê-lo por algum tempo para medição completa do funcionamento de todos os seus órgãos, particularmente do seu cérebro, tendo em vista as dificuldades recentemente vivenciadas. Tudo bem? Devo dizer-lhe que, acordado, você criaria interesses paralelos que iriam desconcentrá-lo para a finalidade desta nossa contribuição para o seu processo de crescimento espiritual. Sugiro-lhe que faça uma prece de agradecimento ao Senhor pelo alimento espiritual que você está em vias de receber, como ainda para rogar que nos ampare em nossa tarefa.
Ao mesmo tempo em que Adonias começava sua oração, sentiu um odor adocicado que lhe provocou uma irresistível sonolência. Em breve, estava adormecido.



7. UMA SESSÃO BEM SUCEDIDA

Assim que Adonias acordou, percebeu que estava cercado de instrumentos cheios de mostradores com ponteiros, com escalas, com luzes a piscar, para os quais ele fornecia diversos pequenos cabos, que se lhe prendiam à cabeça, ao peito, aos braços e até aos pés.
Um olhar de Anésio fez que permanecesse em silêncio, a ouvir a mensagem telepática que lhe era transmitida pelo médico:
— Nós vamos proceder ao início da regressão através do que você foi capaz de recordar-se naturalmente. Eu vou fazendo-lhe perguntas e você irá respondendo. À medida que formos despertando as lembranças, você irá sentir uma ligeiríssima descarga elétrica no cérebro, uma espécie de vibração que poderá causar reações de audição, de visão, de qualquer outro sensor da realidade externa. Não se preocupe, porque as sensações serão agradáveis. Aliás, conforme as suas emoções aflorarem, você nem sentirá mais esses estímulos. O que você precisa entender é que o nosso sistema é misto, ou seja, algumas vezes sou eu que aciono o mecanismo elétrico, outras vezes é o programa que orienta o funcionamento da máquina. Você está deitado mas tem dentro do seu campo de visão esta tela onde poderá observar, se quiser, os reflexos dos quadros que lhe perpassarem pela memória. Este recurso é secundário. Serve para subsidiar as informações quando o seu vocabulário se restringir e você se tornar incapaz de narrar os fatos que estiver presenciando. Já diziam os chineses, se não me engano, que mais vale uma imagem que mil palavras. Por último, saiba que todos os instantes ficarão registrados, mas nem sempre teremos condições de reconstituí-los, dada a possibilidade de compactação da inteligência humana, o que os aparelhos ainda não conseguem captar com perfeição, mesmo porque, se tudo se desse em tempo real, por quantos séculos deveríamos ficar observando o desenrolar de sua existência?! Você não ouvirá a minha voz. Nem você deve exprimir-se a não ser através do pensamento. Se estivéssemos trabalhando com um encarnado, evidentemente, faríamos que descrevesse tudo quanto lhe fosse possível referir. No etéreo, nesta colônia, o nosso estágio de adiantamento científico nos permite sermos um pouco mais precisos. Aqui vai a primeira pergunta. Quem estava com você no momento em que você se desprendeu do corpo, na penúltima existência corpórea?
Adonias fez um esforço para lembrar-se, tendo viva na memória aquela hora, por força de tê-la recordado há tão pouco tempo. Então, quando ia responder pela negativa, sentiu um estremecimento íntimo, uma agitação estranha, um choque no cérebro, até que se viu num quarto de hospital, cercado por dois médicos e duas enfermeiras ao lado da cama. Olhou na direção dos pés e lá havia mais três pessoas que ele reconheceu de imediato: eram seus pais e um irmão. Os médicos não eram outros senão Anésio e Adão, e uma das enfermeiras era Alice. A outra não reconheceu mas se lembrou de seu rosto e foi essa fisionomia que lhe chamou a atenção para os episódios anteriores.
O paciente olhava para o monitor mas este permanecia sem denunciar nenhuma figura.
Anésio lhe transmitiu outra pergunta:
— De que foi que você morreu?
— De insuficiência cardíaca, aos sessenta e cinco anos de idade.
— Qual é a idade de seus pais? É possível avaliar?
— Eles não têm mais do que cinqüenta, o que me indica que estou abrindo meu campo de visão para os dois planos da realidade. Isso é possível?
— Abstenha-se de perguntar. Seus pais aí representados são os mesmos da última encarnação?
— São outros.
— Como é que você pode saber?
— Eles têm uma contextura fluídica que me transmite vibrações muito diferentes daquelas que recebi de meus pais mais recentes.
— Isso lhe causa algum tipo de mal-estar?
— Acho que não. Penso que se estivesse verdadeiramente diante deles, eu me comportaria de maneira mais sensível. Apesar de o quadro ser muito nítido e de me parecer estar vivenciando tudo agora, tenho clara a noção de que se trata tão-só de uma passagem que quedou no passado.
— Muito bem. E quanto aos três que se encontram presentes: Alice, Adão e eu?
— Eu sinto vocês como entidades de grande benemerência, porque me reconheço em débito mais antigo.
— Você nos considera presentes em espírito ou julga que estávamos encarnados?
Adonias se concentrou, mas não percebeu a realidade. Foi quando recebeu outro impulso elétrico que o fez recordar-se do mesmo quadro, sob outra perspectiva, restando nele apenas uma pessoa, qual seja, a enfermeira desconhecida, o que o levou a inferir que as três pessoas citadas não se encontravam vivas.
— Agora você já sabe que lhe dávamos assistência a partir do plano espiritual. Avance a sua lembrança para depois do decesso. Que acontece agora?
— Vejo-me nos braços de minha mãe a me debater, desejoso de me afastar da vista dos presentes.
— Há mais alguém nesse ambiente?
Adonias hesitou em buscar ao derredor, mas se viu arrebatado dos braços da mãe por uma entidade malfazeja, com quem se pôs a lutar, gritando impropérios. Jogou para longe uma seringa que Adão buscava utilizar em seu braço e saiu gritando pela escuridão, ansiando por encontrar-se com a personagem misteriosa que o atacara, que parecia atraí-lo para o sofrimento, incitando-lhe o desejo de vingança.
Anésio voltou a interrogá-lo:
— Você mergulhou numa fase muito ruim de seu passado, mas os nossos instrumentos não estão registrando nenhuma reação ameaçadora para sua estabilidade psíquica. Quer caminhar na direção do presente ou prefere volver mais para trás, elucidando como é que foi sua vida anterior?
— Eu acho que gostaria de recapitular os sucessos anteriores, pois acredito que, com um pouco de esforço, vou despertar sozinho para os acontecimentos que medeiam aquela imersão no Umbral até o momento em que fui acolhido no ventre de Dona Genoveva.
— Estamos indo muito bem. Concentre-se, pois, naquela visão corrida de seu passado às avessas. Vamos ver se conseguimos voltar à sua infância. De que é que você mais gostava de brincar?
Adonias ia dizer que era de pegador, mas logo percebeu que se encontrava numa roda de crianças maltrapilhas, mão estendida à comiseração dos passantes.
— Recordo-me nitidamente de que essa visão me era muito dolorida e que busquei recalcá-la no fundo da consciência. Existe algum jeito de acelerar o processo?
— A velocidade depende só de você. Você está pedindo esmola. Passe para um quadro de menor sofrimento.
Adonias verificou que crescera e que se encontrava aos cinco anos de idade. Uma senhora se aproximou dele e o agarrou pelo braço, como a desgrudá-lo do corpo inerte da mãe. Foi como que uma revelação completa. Imediatamente, foi capaz de se situar no tempo e no espaço. Viu-se no ano de l862, em Paris. Daí por diante, sua vida desfilou integral e ele pôde contar que estivera internado num orfanato e que foi adotado por uma família abonada, filho substituto de um rapazelho que morrera e que deixara a família desolada. Viu-se cercado de carinho e estimulado a corresponder aos anseios de progresso no campo da educação. Percebeu que os pais que vira ao final de seus dias eram justamente aqueles que o haviam acolhido e não os naturais, de quem não guardara lembrança.
— Anésio, por favor, terei como recordar-me dos meus pais verdadeiros?
— Sem dúvida, mas apenas quando tivermos superado esta fase de rememoração, em função dos arquivos que você manteve vivos. Imagine que você estivesse no mundo e que sua memória fosse seletiva, ou seja, só lhe fornecesse ao consciente uma parte do que lá se registra. Não é assim que ocorre ao comum dos mortais? Não é verdade que a gente não se lembra de tudo e que, o mais das vezes, temos vagas lembranças de fatos passados há dez, vinte e mais décadas? Vamos estipular algo de importância no contexto de sua formação espiritual, para definirmos as causas que produziram os fatos que o condenaram ao ostracismo.
— Antes, gostaria de referir-me ao meu mais acendrado orgulho por me formar em Direito e por me tornar magistrado. Também devo dizer que a minha família era espírita e que me deu várias obras de Kardec para ler, o que explica o fato de eu me recordar do texto de O Livro dos Espíritos em francês. Também preciso assinalar que não acreditei em nada daquilo e que defendi idéias materialistas, julgando que a vida terminava no túmulo. Veja, caro amigo, que estou apto à análise e à crítica, mas não me magôo com o fato de ter perdido aquela magistral oportunidade de progresso espiritual. Antes, até agradeço os mal-entendidos que me propiciaram a oportunidade de me ver perseguido por inimigos nas profundezas do Umbral, inimigos que criei por força de havê-los condenado a sentenças terríveis, ainda mais severas do que mereciam, vários deles à perda da vida, sem compaixão, crente de que era um fiel cultor do Direito. Sem perspectivas religiosas, embora freqüentasse algumas sessões de incorporação para, de certa forma, retribuir aos cuidados de que fui alvo por parte de meus queridos pais, no mais deixava o lar para gozar do que julgava de meu direito como pessoa abonada. Também me vejo acompanhando a cara consorte...
Nesse ponto, um forte refluxo de dor fez que Adonias interrompesse a descrição para rogar, aflito, pelo perdão daquela mulher que reconheceu ter feito sofrer até a morte.
Anésio avaliou as oscilações dos marcadores e fez questão de dar prosseguimento ao estudo daquela vida, unicamente injetando um calmante de pouco alcance, mantendo a condição de consciência do paciente. Mas foi incisivo quanto à observação que solicitou de Adonias:
— Busque, rapidamente, dentro do painel de suas recordações do Umbral, se você pediu e recebeu o perdão dessa criatura.
Foi como um refrigério para aquele momento pungente. Imediatamente, Adonias se viu perante Alice, requerendo-lhe a devolução de sua afeição, prometendo-lhe nova experiência carnal de respeito e estima e recebendo um imenso influxo de carinhosa vibração de compreensão e amor.
Naquele exato instante, Alice se aproximou de Adonias e afagou-lhe os cabelos que haviam crescido e que lhe davam até uma aparência mais juvenil. Ambos apenas sorriram e se entenderam, podendo Adonias retornar ao processo de rememoração do passado.
Mas o enleio sentimental foi interrompido pelo comando de Anésio:
— Adonias, existe algo que você desejasse especialmente recordar; alguma fugidia lembrança, algum mistério que lhe pareça importante?
— Gostaria de prosseguir um pouco mais atrás, para caraterizar em que pontos eu fui pior nas encarnações anteriores.
— Muito bem. Vamos até o período anterior entre as vidas. Que você vê no fundo das trevas?
— Você fala em trevas porque a situação anterior o obriga a pensar assim ou porque está lendo em meu cérebro?
— Ambas as coisas. Mas fique sereno pois, quanto mais antiga a regressão, menos transtornos causa para o momento de equilíbrio presente. Então?
Adonias estremeceu com a escuridão em que imergiu e com os quadros que se sucederam rapidamente. No entanto, foi capaz de transmitir as imagens para a tela, de sorte que foi mais um espectador do que um agente das visões projetadas. Ali se desenrolaram batalhas campais de pessoas armadas que sofriam os embates dos balázios contra seus corpos, caíam como mortas e se levantavam em frangalhos de carne sangrenta para volver à carnificina.
— Adonias, vamos à vida anterior.
A ordem se cumpriu quase imediatamente. Foi fácil para ele entender que havia sido militar da ativa, comandante na frente de batalha.
— Você morreu na guerra?
— Não. Eu ainda, apesar de mutilado, exerci importante missão diplomática, após ter sido atuante político e congressista, na Inglaterra.
— A que você atribui as angústias posteriores ao desenlace?
— À crueldade com que mandava os soldados à morte. Como se viu na animação, eu fui perseguido pelos próprios comandados, mais do que pelos inimigos.
— Quer ir adiante ou prefere elucidar os clarões de memória que lhe estimulam a curiosidade?
— Mais uma vida e depois eu o atenderei.
— Concentre-se de novo nas trevas.
Imediatamente, Adonias se viu entre uma gentalha miserável, imunda, pestilenta, nauseabunda. O que dava um contraste evidente era o fato de que as roupas que vestiam eram de bom corte, como de gente rica e nobre. As imagens projetadas eram mais nítidas quanto às fisionomias, mas não causavam nenhuma sensação agradável, como se todas as pessoas estivessem a se acusar e a se defender, jogando a culpa uns nos outros.
— Qual é a culpa em questão, Adonias?
— Acho que fomos todos solidários nesta fantástica queda. Mas estou vislumbrando a encarnação que provocou tantos transtornos e na qual me vejo como rico comerciante, dono de extensas propriedades e de grande quantidade de servos, vamos dizer assim, sem vínculo empregatício, ou seja, escravos, verdadeiramente.
De repente, Adonias se viu ajoelhado sobre um corpo que se debatia, com um punhal encravado na garganta. Era a recordação que o intrigara e que fora sugerida por Adão. Quando tentou reconhecer a vítima, a imagem se desvaneceu, como se houvesse interferência no processo de regressão da parte de alguém que estivesse manejando os aparelhos.
Adonias ameaçou reclamar, mas Anésio deu-lhe mais uma oportunidade, a última, para relembrar de alguma situação que lhe causara interesse.
O paciente logo se sentiu induzido a regressar à Idade Média, na qualidade de copista. Na tela, as imagens passavam numa velocidade impossível de ser fixada pela visão comum, até que se viu ele redigindo o texto de São Jerônimo que lhe despertara a suspeita de que teria sido a pessoa que efetuara a transcrição. Era um texto em latim. Aí apertou-lhe a vontade de decifrar o mistério de um interregno de paz. Que maldade poderia conter o coração de um monge dedicado a uma tarefa monástica em recolhimento?...
Não chegou a concluir o pensamento indagador. Logo lhe surgiram na lembrança as ações da mais profunda descompostura intelectual de quem deveria preservar a tradição. Adonias se viu adulterando certos textos sagrados, dando-lhes feição própria, interpretando-os à luz de seus interesses religiosos. E recebia os elogios de seus superiores. E se via guindado a funções de maior responsabilidade. E dava conselhos aos subalternos para procederem segundo sua malfadada diretriz. Evoluiu para após a sepultura e se viu na chefia de um grupo de elementos anárquicos que só se congregavam sob suas ordens porque era ele quem imaginava as piores atividades de obsessão e de possessão. Passou-lhe pela mente o desejo de colocar chifres e rabo na personagem, mas o máximo que conseguiu foi apagar o monitor e devolver-se ao momento presente, em lágrimas, profundamente agradecido a Deus e aos amigos por ter evoluído de maneira tão inteligente nestes últimos mil e tantos anos de existência. Sobravam-lhe inúmeras questões que começavam a despontar mas que Anésio fez que se interrompessem, com energia que pareceu ao sacerdote até despropositada:
— Meu irmão, contenha os ímpetos de querer tudo dominar de um jato. Seja cordato para com esta equipe que se exauriu para dar-lhe sustentação fluídica e atenda ao que lhe vou determinar em seguida. Você terá abertos os canais de percepção perispiritual da realidade, meios que você estranhará sobremodo quanto a enxergar além da capa externa de contenção do interesse alheio, para que não haja mal-entendidos de interpretação quanto às verdadeiras personalidades em contato conosco. Contudo, esse processo não se efetuará de uma hora para outra, mas paulatinamente, à medida que você for incorporando ao acervo mental as principais virtudes que lhe estão despontando. Fique à vontade para perguntar o que quiser aos amigos presentes, mas, antes, vai ser preciso que realize um trabalho preliminar de introspecção, para ver que atinja o fulcro dos conhecimentos por mérito próprio. Isso evitará uma série imensa de diálogos e lhe dará um estímulo suplementar quanto a ir desenvolvendo métodos próprios de investigação, nos quais irá apoiar-se daqui para a frente, caso deseje com ardor, com veemência, suplantar as deficiências de caráter que esse conjunto de realizações carnais evidenciou. Por exemplo, como é que você explicaria o fato de haver merecido esta clara intervenção de espíritos mais iluminados pela verdade, tanto que, desde o último decesso, você ainda não visitou os horrores das catástrofes da consciência, onde se situa o verdadeiro inferno e o pandemônio das lutas e sofrimentos? Mas não responda agora. Haverá de ser preciso que medite profundamente nesta descoberta que lhe proponho como prioritária, dada a minha própria experiência justamente nesta fase do enredo em que os seres passam de um estágio a outro de forma definida e evidente. Agora, para que possamos desligá-lo dos aparelhos, vamos adormecê-lo de novo, mas não sem antes adverti-lo de que você já é dono de seu passado, integralmente. Parabéns. Quer orar em agradecimento ao Pai?
Adonias já tinha a percepção de que era a atitude de submissão à autoridade científica demonstrada por Anésio e equipe que o punha em estado letárgico, mas não se importou em sentir de novo aquele odor adocicado com que desfalecera anteriormente. Desta feita, porém, foi capaz de se manter lúcido o suficiente para contemplar todo o desenvolvimento dos trabalhos de refazimento de suas condições normais. Sentiu como que um prazer enorme em se perceber mais habilitado a dominar o próprio organismo, porque sabia que estava em uma fase do sonambulismo natural, como se recordava de ter lido em Kardec.
Quando recebeu ordem para despertar, abriu os olhos, percebendo que todas as entidades presentes emitiam suave luminosidade, provinda de um fulcro interno, como uma aura a envolver a figura antiga, dando-lhe uma condição de transparência mais afinada com seu velho conceito de anjo da guarda.
Foi de Anésio a iniciativa das congratulações, verdadeira festa que se prolongaria por um tempo indefinido, até que Alice o convidou para recolher-se e iniciar o exame de si mesmo.



8. MONTA-SE UMA PARTE DO QUEBRA-CABEÇA

Adonias sentia-se cansado mas eufórico, como nunca se lembrara de haver estado. Se bem que todas as vidas estivessem mal esclarecidas, havendo ficado muitos fatos importantes na penumbra, sabia que era simples a maneira pela qual deveria realizar o esforço de recuperação da memória. Pôs-se, então, a meditar, fechado em seu dormitório, na proposta de descoberta da ponta do fio da meada do Doutor Anésio, porque lhe parecia importante saber que méritos demonstrara na derradeira romagem carnal para ter sido apaniguado pela deferência de uma proteção de luz, já que, apesar de ter dado algumas cabeçadas e de ter estado imerso numa ilusão de vida por tantos anos, ainda assim nem resquício de sofrimento de consciência lhe perpassara pelas fímbrias da emotividade. Angustiara-se, é verdade, porque não alcançava fazer frutificar o seu intento de auxiliar as pessoas, principalmente os miseráveis, os explorados e os infelizes, mas fora uma dor moral de caráter externo, nenhuma acusação a enfrentar, nenhum remorso a curtir, nenhum arrependimento a amainar.
“Terei sido bom e cortês para com os meus semelhantes, em sendo ministro religioso atuante junto aos paroquianos? Terei amealhado um pouco da virtude da paciência, aturando as eternas solicitações de perdão pelos pecados veniais que ouvia, sem preguiça, cônscio da importância do sacramento da penitência? Terei afastado as ânsias do egoísmo, ao aceitar as ordens religiosas, apesar de tê-las enjeitado justamente porque cheguei à conclusão de que a Igreja se afastava da pregação puríssima de Jesus? Terei contido a vaidade de orador, abrindo mão do púlpito para o aconselhamento pessoal de meus irmãos e irmãs de fé, já que ia de convento em convento, buscando atender aos reclamos íntimos das criaturas ainda não totalmente convencidas de sua vocação? Terei recalcado o orgulho de me haver formado com certo brilho, ofuscando alguns colegas mais modestos quanto ao intelecto, embora eu sempre reconhecesse neles qualidades que me faltavam? Terei sofreado os impulsos de minha formação erudita, eliminando de meu jargão particular todos os termos com que poderia diminuir os meus ouvintes, em todas as circunstâncias da vida? Terei sabido conduzir, inclusive, a minha rebeldia, acatando a superior determinação de me recolher à cela, enquanto o processo contra mim tinha andamento? Respeitei, certamente os mandamentos do decálogo mosaico e mais os da Santa Madre Igreja, jejuei e refleti durante a leitura de meu breviário, jamais faltando um só dia ao dever eclesiástico. Principalmente, honrei meu pai e minha mãe e lhes respeitei o gravíssimo desejo de que eu servisse ao Senhor. Toda vez que me senti em débito para com certos princípios, particularmente no início de meu sacerdócio, dispus o problema com a maior fidelidade ao meu confessor e lhe roguei pelos conselhos de sua larga experiência.”
Adonias suspendeu essa linha de reflexões para ver se era capaz de repetir todos os pensamentos na mesma ordem que lhe ocorreram. Surpreendeu-se com a facilidade pela qual o fez, parecendo-lhe que a sua já imensa capacidade de reprodução dos textos que lia e dos episódios que vivera havia ainda recebido um incremento significativo. Buscou reproduzir os últimos livros que lera e observou que a mente lhe evidenciava página a página como que fotografada no cérebro, onde podia ler como da primeira e única vez em que se dedicara a cada obra. Sabia os evangelhos e os atos dos apóstolos de cor. Imaginou, então, sua derradeira leitura do Apocalipse e ele se abriu com a maior singeleza, permitindo-lhe que o folheasse até pelo número impresso das páginas.
“Uma beleza! Uma beleza!”, ficou a repetir, extasiado diante de si mesmo. Ocorreu-lhe, então, que, como magistrado, havia tido em mãos inúmeros processos e pareceres jurídicos, tudo passado na França dos fins do século XIX e inícios do século XX. Nesse caso, porém, nem tudo se ofereceu à sua memória com a mesma nitidez. Interrogou-se a respeito do fato e levantou uma hipótese que considerou muito plausível:
“Enquanto os textos que sou capaz de reproduzir se encontram no domínio do público em geral, tudo bem, não há nenhum ser humano envolvido na qualidade de possível personagem de algum episódio que poderia desmerecê-lo perante a minha própria consideração. Já quanto aos dossiês dos suspeitos, se bem me lembro, todos condenados, a história envolve questões de melindres e de susceptibilidades, talvez até de atos de coragem, de bravura, de enfrentamento das lutas obrigatórias, como ocorreu comigo até recentemente, de sorte que as minhas vibrações, apesar de não serem inteiramente negativas, poderão causar transtornos psíquicos a essas entidades, que gostariam de receber apenas o apoio da boa vontade, da comiseração, do respeito como seres humanos que são, de quem tanto orou e vem orando pelos que sofrem. Mais vale pensar nas pessoas e menos nos processos. Vejamos se me recordo dos nomes de todos.”
Aí a mente se abriu para um extenso rol de nomes completos, filiação e datas, assinaladas seja nas pastas dos arquivos, seja nos dias de encontro do antigo juiz com os réus. A cada nome, Adonias oferecia uma ligeira prece, mais ou menos nestes termos:
“Senhor, tenha piedade dessa alma! Que essa criatura possa estar tão ou mais feliz que eu, recebendo as suas bênçãos de muito amor!”
A cada nova personagem, Adonias registrava um número, de sorte que, ao chegar ao primeiro milheiro, obrigou-se a avaliar quanto tempo havia destinado à sua meditação. O relógio do computador indicava-lhe que haviam passado cerca de dez a doze minutos, no máximo. Então Adonias foi forçado a concluir que também sua capacidade intelectual havia aumentado, no sentido de um maior poder de concentração. Desta feita, porém, não se entusiasmou com a descoberta, julgando que o fato de estar mais veloz não indicava, necessariamente, que havia melhorado a qualidade dos raciocínios, tanto que, para a descoberta da razão de ter merecido um acolhimento mais iluminado após o acidente automobilístico que lhe tirou a vida, considerou que estava desconcentrado e lento.
Com esse pensamento, tendo concluído que seria capaz de se recordar de todas as pessoas da vida na França, reuniu todas as que faltaram num bloco só e orou por elas em conjunto. Depois, refez o início de suas observações, quando vasculhara a derradeira existência carnal, e se surpreendeu com a quantidade de frases na primeira pessoa do singular, como se todo o mérito da conquista fosse seu.
“Por certo, muito devo a todos os que me incentivaram, direta e indiretamente, para a minha carreira sacerdotal. Aos meus pais fiz referência, embora dirigida ao meu ponto de vista filial e não segundo o sacrifício que fizeram desde antes da minha concepção, aceitando-me em sua família, como encargo sublime da paternidade e da maternidade.”
Ia prosseguir recordando-se dos avós e demais membros da parentela, rapidamente recordando-se de seus professores em todos os níveis de ensino, dos médicos que trataram de sua saúde em todas as idades, dos membros da sociedade que trabalhavam na produção dos bens que consumia, colegas de escola e de batina, quando lhe ocorreu que existia uma outra categoria a quem, em vida, jamais atribuiu qualquer importância, apesar de saber de sua existência através da leitura de O Livro dos Espíritos, em que não acreditara, ou seja, dos espíritos amigos e benfeitores que agora conhecia e respeitava. Apesar daquela sua disposição contrária, tinha a certeza de que foi acompanhado em todas as fases de sua vida pela benemerência desses seres, que o protegeram de todos os ataques dos que desejavam vê-lo decair dos propósitos evangélicos.
Foi então que estabeleceu o princípio básico de haver sido resgatado no etéreo sem que fosse preciso perpassar de novo pela escuridão do Umbral:
“Tive a sustentação de todos os que comigo conviveram em corpo e em espírito. Por isso, superei as minhas graves deficiências, impondo-me uma disciplina que não me afastou dos meus irmãos. Vim para cá na qualidade de ser humano em ascensão, porque respeitei o Criador em todas as criaturas, evitando, o mais possível, cair nos mesmos erros de meu passado, eximindo-me de julgar. Antes, busquei justificar a todos, rogando ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, bem como à Virgem Santíssima e a todos os santos, que sei agora que são espíritos evoluídos, residindo em esferas de maior perfeição, para me auxiliarem a compreender os dramas das pessoas, para oferecer a melhor solução possível para cada problema, incluindo, nas minhas preces, sempre, um pedido de bênção e de graça para cada uma delas.”
Havendo encerrado esse trabalho de pesquisa, avaliou que não havia mérito algum em se dedicar tanto a si mesmo. Se, anteriormente, ficara pendente de sua ressurreição quanto ao passado, agora estremecia com a visão do futuro, parecendo-lhe que, em pouco tempo, tinha de suplantar inúmeros defeitos, se quisesse fazer jus à confiança da administração da Igreja Cristã da Misericórdia Divina, que o convidara a participar de suas atividades na qualidade de palestrante.
Agradeceu ao Pai em comovida prece e se pôs a planejar as próximas atividades, tendo em vista que lhe faltava preparar a exposição seguinte, já que se determinara a não comentar os resultados da consulta que levara a efeito junto aos alunos. Iria passar por cima de seu desejo anterior de atender aos reclamos imediatos daquelas mentes, para oferecer-lhes, ao invés de uma satisfação de caráter pessoal através de suas próprias experiências, um ponto objetivo do evangelho, recordando-se logo do episódio das tentações de Jesus, que sempre o empolgou.
Nesse momento reviu a pergunta proposta pelo Doutor Anésio ao final de sua palestra, reproduzindo-a na íntegra, palavra por palavra, porque lhe parecia que não se tratava de uma questão, mas de sutil sugestão:
“Como ocorre muito freqüentemente o fato de que os sacerdotes chegam ao etéreo buscando os anjos que os conduzirão ao paraíso, a que o amigo atribui o fato de ter sido resguardado das imprecações que em geral se dão nessas ocasiões, tendo permanecido por tanto tempo na condição de ignorante da própria desencarnação?”
Adonias, em lugar de levantar alguma suspeita, simplesmente elaborou uma pergunta direta para apresentar ao amigo:
“Que papel você vem desempenhando na minha existência?”
Em seguida, adormeceu.



9. O SONO

Estranhamente, Adonias adormeceu como quem abandona o corpo e mergulha em águas profundas, consciente de que o faz rigorosamente seguro de si, porque a ausência de oxigênio não causará qualquer transtorno, como ainda nada que possa surpreendê-lo irá alcançar feri-lo ou sequer estremecê-lo. Sendo assim, movimentava-se livremente, examinando cada sutil escaninho de seu perispírito, como se estivesse pronto para abandoná-lo, exatamente do mesmo jeito que se recordava de haver sucedido toda vez que deixava para trás uma carcaça a caminho de deterioração, volvendo ao plano da espiritualidade.
Mas a sua curiosidade não lhe afetava a imaginação, de sorte que, em lugar de se dedicar a um exame acurado de cada órgão em correspondência com sua função, bastava-lhe perceber que manobrava à perfeição o conjunto de suas fibras energéticas, com o fito de satisfazer tão-somente o princípio da liberdade com que sua vontade se dispunha a realizar as reações necessárias para o conhecimento exato de sua participação no conjunto dos seres que lhe enviavam mensagens, as quais agora era capaz de captar, descodificar e responder.
Contudo, esse dom maravilhoso, que se processava sob o domínio do consciente, precisava ser melhor estudado, já que a recepção devia ajustar-se a uma determinada faixa de onda, como nos simples receptores de rádio se exige que haja um dial em que as freqüências são escalonadas, e atingidas segundo um trabalho mecânico do operador. Por isso, Adonias interessou-se em fixar certa freqüência, que lhe pareceu de fácil captação, havendo imaginado estar recebendo mensagem de Dona Genoveva, sua mãe amantíssima, que ele havia deixado, na última visita, um tanto desgostoso por saber que contraíra segundas núpcias.
Toda a extensão dos sucessos desse episódio se desenrolou perante a sua mente, como se estivesse ocorrendo naquele justo instante. A novidade era que, agora, Adonias tinha conhecimento de que toda a sua conversa com a mãe se dera espiritualmente, por contato perispiritual, ele transmitindo e ela recebendo na qualidade de médium mecânico, sem definição externa, para registro alheio, nem sequer interno, para fixação na memória corpórea. Foi como se alguém tivesse a capacidade consciente de entrar na aura de abrangência das emanações físicas mais sutis, onde poderia obter alguns dados, desde a temperatura, que seria a comunicação mais grosseira e material, até o influxo dos pensamentos e sentimentos que fazem vibrar os plasmas energéticos de que se compõe essa massa transparente e só perceptível pelo sensório humano se as pessoas treinarem à exaustão esse tipo de leitura extra-sensorial.
Pois bem, naquela época, ele não sabia de sua condição de entidade errante na espiritualidade, de modo que tudo interpretou como se acontecesse estando vivo entre os vivos. Recordou-se de que a mãe o havia atendido enquanto realizava as tarefas domésticas, ignorando a sua presença ou disfarçando a sua vergonha por haver casado uma segunda vez. Também fez perpassar por aquele quadro vivo a penúltima ao lar, quando a mãe o atendeu de maneira bastante mais afetiva, conseguindo estabelecer a distinção entre as duas acolhidas, ao definir que ela estava adormecida e que colaborava com a sua fantasia de ser que se engodava quanto à realidade em que se estabelecera.
Nesse estado de contemplação onírica, Adonias não se preocupava em efetuar nenhuma espécie de apreciação crítica, mas limitava-se a caracterizar seu nível perceptivo, em função da reconstituição da verdade como algo que devesse agilizar como processo de reconhecimento, uma vez que, imergindo nas cenas que o passado mais distante iria desvendar-lhe, precisaria estar seguro de como se estavam dando os relacionamentos em que se envolvera.
Mas havia a presunção de que estava recebendo uma mensagem de Dona Genoveva naquela faixa em que se detivera, novidade absoluta para sua mente, apesar de manter-se alerta quanto à possibilidade de sempre ter emitido e recebido comunicações alheias à sua vontade, ou seja, no plano do inconsciente. Pôs tento no teor das informações que estava recebendo e percebeu que era uma irradiação sentimental de caráter genérico, sem exigência de resposta, como alguém que lhe dissesse que estava pensando nele e que pedia para ele o amparo de Deus, nobre emoção envolta em prece, plena de amor e de saudade, numa promessa imanente e tácita de que se juntariam assim que se desligasse ela das peias que a prendiam ao corpo denso da matéria.
Adonias imaginou que poderia corresponder-se com a mãe no mesmo diapasão de fraternidade e de solidariedade universal e agradeceu a ela todos os sacrifícios que fizera por ele em vida e na espiritualidade, pedindo-lhe que o perdoasse pelas dificuldades que seu caráter imperfeito e tantas vezes intempestivo lhe causara. Achou que não era hora de enviar um influxo desequilibrado, de forma que obstou qualquer manifestação que pudesse induzir o espírito da mãe de que havia algo fora do lugar dentro do nível de expectativa dela quanto ao além-túmulo.
Notou que as vibrações que vinha recebendo da mãe ganharam a suavidade de quem se tranqüilizava, até que desapareceram. Adonias precisou admitir que esse tipo de percepção estava eivada de pressupostos, como se tudo estivesse ocorrendo em torno de si, sem que pudesse efetuar verdadeiro controle da realidade. Como, de fato, havia adquirido a convicção de que conversava a distância com a mãe, se não tinha nenhuma medida confiável de que era verdadeiramente dela a emanação recebida? Claro que todo o conjunto das sensações conduziam para aquela conclusão, mas lhe pareceu óbvio que, em outras circunstâncias, por razões específicas que se justificariam de acordo com os eventos em andamento, alguém poderia ocupar o lugar de Dona Genoveva ou de qualquer outro ser, interferindo na recepção através de algum processo que tanto poderia provocar reações positivas quanto negativas.
“Terei algum recurso de acompanhamento visual, ou coisa assim, que pudesse assegurar-me de que a pessoa que estou contatando seja exatamente aquela que se declara como tal?”
A elaboração do tópico em forma de pensamento coordenado pôs Adonias alerta para o fato de que poderia estar emergindo do sono, dado que o registro da questão deveria efetivar-se em área de atuação do consciente, para tornar-se produtiva no aspecto do acrescentamento de informações do mundo espiritual, tendo em vista que precisava progredir em todos os sentidos, mui particularmente no do domínio de si mesmo, para fazer jus a um convite que lhe chegaria em tempo hábil de algum irmão habitante das esferas superiores, da mesma forma que recebera o de Adão, há alguns anos atrás.
Toda essa reflexão se deu em pleno domínio da realidade circunstante, percebendo Adonias que acordara como que tangido por uma necessidade íntima de absorção de novos conhecimentos. Passou a refletir a respeito de tudo o que ocorrera enquanto dormia, para ver se podia confiar em que sua memória mais profunda lhe seria fiel na indicação de um passado recentíssimo, sem omissão ou acréscimo; omissão por solução de continuidade no fluxo da investigação a que se dera; acréscimo por estabelecer como boa alguma produção mental dentro dos padrões da realidade dos sonhos, sobre o que não exerceria controle. Mas o resultado de seu exame redundaria satisfatório e Adonias passou a imaginar se não teria desenvolvido já a faculdade de dormir e de acordar sob o comando de sua vontade.
Deu a ordem de adormecer e entrou de novo no ambiente de seu perispírito, como dentro de um tanque ou piscina em cujas profundezas nadava sem respirar e sem nada temer.
Imediatamente lhe veio à lembrança uma das páginas de instruções que mais o haviam impressionado dentre todas as obras que lhe foram recomendadas por Adão, para que pudesse dominar melhor o perispírito. Dizia-se no texto que havia várias fórmulas de entrar em contato com todos os seres em disponibilidade de comunicação, nas esferas logo acima ou abaixo da que em que se situa o indivíduo. Recordava-se de que havia uma nota esclarecedora quanto à terminologia precária do acima e do abaixo, insistindo o autor que a localização espacial era mero ponto de referência para a compreensão do tema.
Dentre os tipos de realização desse contato, havia o que ele acabara de realizar, qual seja, a mera transmissão dos pensamentos, e outros mais complexos em que, além das idéias, há também som e imagens, formando uma espécie de quadro vivo, segundo o poder de quem transmite e de quem recebe, precisando-se, portanto, que haja integração das vibrações através de um padrão uniforme ou uniformizado pela capacidade do espírito mais desenvolvido em ajustar seus recursos de captação aos do transmissor.
Consciente de que dificilmente iria alcançar sucesso, tentou elaborar um contexto em que se integrasse alguma das entidades amigas que ele sabia que deveriam estar recolhidas àquela hora. Mas aí lhe ocorreu que as sensações que ele mesmo poderia transmitir eram quadros arquivados na memória, nada como a visão da realidade externa. Se os seus amigos estavam adormecidos como ele, não teriam outro tipo de quadros a oferecer-lhe. Pensou na irmã, Clarice, formulou um pensamento de muita benquerença, adicionou uns ingredientes extraídos de suas mais amáveis lembranças dos tempos em que, jovenzinhos, brincavam juntos, embrulhou tudo numa prece de bom sentimento e enviou o pacote via vibração afetiva do mais puro desejo de efetuar um contato positivo, para passar a impressão de que existe vida após a morte física, no desejo de dar-lhe tranqüilidade, acima de tudo.
Esperou um bom tempo por uma resposta, mas seu aparato perceptivo nada registrou e Adonias ficou sem saber se o intento havia ou não sido coroado de êxito.
Aí recordou-se, também, de que, além de pensamentos, sons e imagens, os espíritos podiam abandonar o perispírito no local do repouso e, como os seres vivos que deixam para traz o corpo em suas viagens astrais, mantendo contato fluídico sempre visível para os desencarnados, que se traduz numa espécie de cordão luminoso, sair em visita a paragens mais adiantadas, sempre sob a tutela de um ser superior a eles.
No livro estava escrito que não era o espírito, simplesmente, que se deslocava, porque ficaria vulnerável às condições adversas das atmosferas em que seriam envolvidos. Ele poderia ter desenvolvido um perispírito mais sutil, veste que irá trajar no plano existencial subseqüente e mais elevado, estando, portanto, a pique de passar adiante um passo na escala evolutiva. Poderia ser agasalhado no perispírito de seu acompanhante, caso este tivesse desenvolvido essa técnica, a qual não se encontrava descrita no capítulo. Poderia receber um perispírito de empréstimo, adequado para a região mais depurada que iria visitar para cumprir alguma tarefa de imensa responsabilidade perante a própria consciência e perante a administração da colônia. Poderia ter acoplado a seu perispírito um aparelho transmissor das impressões alheias, de sorte que seu espírito não sairia do lugar mas teria toda a sensação de estar volitando no sentido na esfera contígua de maior ou de menor densidade fluídica, vendo com os olhos do outro, podendo comunicar-se livremente, porque estaria utilizando o aparelho correspondente do perispírito do protetor. Poderia, ainda, receber todas as informações por telepatia, inclusive as impressões térmicas, olfativas, tácteis e demais, como se estivesse integrado ao ambiente e não se mantivesse numa atividade meramente virtual.
Sabia da existência de roupas específicas, espécie de escafandros ou vestimentas de astronautas, para quem se aventurasse nas regiões abismais, o que mais não era que um resguardo perispirítico, considerando-se que sua função era justamente de proteger a sutileza do corpo espiritual apropriado a climas mais amenos.
Nesse ponto de suas reflexões, pôs-se alerta para o fato de que a única entidade de seus relacionamentos que lhe parecia pairar mais além era o seu anjo guardião a quem vira ao final da palestra do Professor Maciel e a quem não tinha como explicar seu interesse em contatá-lo, sem lhe causar nenhum transtorno absolutamente inútil pela futilidade de sua pretensão, à vista das preocupações afetas a seu guia, as quais ele nem ao menos era capaz de imaginar.
Foi quando ficou vermelho até os refolhos mais íntimos da alma, se não fora uma transgressão da doutrina espírita chamar de alma ao espírito propriamente dito, porque desencarnado em relação ao plano material da Terra. Essas reflexões paralelas como que atenuaram a vergonha que sentiu ao se lembrar da patética figura de seu pai a increpá-lo de intolerância religiosa e de falta de decoro religioso, por pretender o filho, primeiro, mudar as estratégias eclesiásticas; segundo, altercar-se moralmente com toda a cúpula administrativa da Igreja; terminando por bater o carro e lhe tirar a vida.
Mas Adonias se equilibrou ao perceber que, sendo seu pai um espírito sofredor, conforme não poderia deixar de pensar já que se suicidara, ofendendo, ao mesmo tempo, várias leis superiores consignadas em O Livro dos Espíritos, de Kardec, estaria necessitado mais que a mãe e a irmã de suas preces, muito embora ele se dedicasse a elas, regularmente, duas vezes ao dia.
“Será que o Senhor Fernando seria capaz de receber um influxo de bons sentimentos da minha parte, à frente dos quais vou postar o meu amor por ele, para demonstrar que nem perpassou pela minha cabeça nenhuma recriminação pelo fato de ter-me, acidentalmente, tirado a vida? Se ele está na escuridão do Umbral, como penso, talvez tenha recobrado a memória dos tempos anteriores ao último período vital, de forma que há de saber, ainda melhor que eu, quais foram os nossos relacionamentos durante toda a existência. Sendo assim, não será melhor orar, sem a intenção de receber uma resposta, para, em seguida, efetuar um mergulho no passado em busca de reconhecer quem fomos um para o outro, desde épocas imemoriais?”
Adonias se sentiu incomodado com as possíveis revelações que deveria enfrentar com paciência, fleumaticamente, com sentimento bem mais depurado de quando lhe foram abertas, de par em par, as portas de todo o passado, porque agora as lembranças iriam repercutir expressivamente no presente, podendo afetá-lo em sua presunção de que já não tinha inimigo nenhum para enfrentar.
“Manterá meu pai para comigo aquele azedume que o desvairou tão gravemente?”
A pergunta iria perder-se numa série de pensamentos desencontrados, imagens que se cruzavam incompreensíveis, esforço de memória baldado por uma sonolência que lhe escapava ao controle. Adonias entrou numa fase de sonho, tal qual teria ocorrido se estivesse encarnado e se deparasse com a necessidade de dar repouso ao corpo e à mente. Ainda com certa lucidez, formulou a seguinte questão, que julgou de uma acuidade de inteligência superior: o homem dorme porque precisa sonhar, ou sonha porque precisa dormir?



10. ALICE

Adonias acordou preocupado com um fato novo desde quando se internou na Igreja Cristã da Misericórdia Divina, ou seja, acordou mal-humorado. Mas não atinava verdadeiramente com o motivo desse sentimento de desajuste emocional, atribuindo-lhe a causa a um problema de caráter íntimo, como se estivesse a ponto de rebelar-se contra a instituição que o acolhera e lhe dera tratamento, da mesma forma que o fizera em relação à Igreja Católica Apostólica Romana.
Havia um fator diferente no caso atual, porque não punha nenhuma culpa nos outros, senão que denunciava a si mesmo como causador de tudo, razão para se conceber ainda muito primário no domínio de sua personalidade, pensando pela cabeça dos outros, sempre que desequilibrado emocionalmente.
Foi com esse pensamento que se lembrou de pedir auxílio a Alice e logo arrepiou caminho, porque não estaria dando suficiente importância ao caráter, que via moldado pelas falhas milenares de seu passado infeliz. Toda vez que se recordava de uma atitude pessoal e destemida, tinha agora o retrato exato das péssimas conseqüências de seus atos, porque sempre fundamentados nos piores defeitos, sendo que se via egoísta, orgulhoso, vaidoso, ciumento etc. etc. Estendia a lista dos defeitos até cansar, incluindo alguns de que reclamava a consciência, porque julgava que esse exagero era um vilão maior que seu mau humor.
“Será que os meus fracassos desta noite, quando tentei entrar em contato com Clarice e com meu pai, é que estão a me perturbar, como gota d’água a transbordar o copo? Será que foi o desafio de me manter lúcido, contrariando a natureza, que exigiu de mim que dormisse completamente? Será que foi a pergunta final sobre o que é mais importante, se o sono, se o sonho, que me fez ver o quão tolo sou considerando inteligente a pergunta, quando o que realmente importa é a resposta?”
Certamente Adonias iria ficar entretido por muito tempo nesse tipo de devaneio meio filosófico, meio intimista, meio neurótico, meio qualquer outra coisa, que quatro metades jamais irão completar só um inteiro, conforme ia concluindo ainda azedo, quando a tela de seu terminal de computador se acendeu, revelando a figura sorridente de Alice, que lhe pedia para se encontrarem imediatamente, pois ela havia reservado a manhã para conversarem sobre os últimos sucessos, uma vez que, disse ela taxativamente:
— Eu acho que você deve estar passando por uma crise de identidade, igualzinha àquela que me surpreendeu quando despertei para a realidade de minha ignóbil pessoa. Vamos encontrar-nos na biblioteca.
Não se passaram nem dois minutos e já estavam ambos de mãos dadas, sentados num banco rústico num jardinzinho de inverno artificialmente iluminado, onde as flores recendiam perfumes variegados e deliciosos.
Alice tomou a iniciativa:
— Pense vigorosamente em tudo quanto se passou por sua imaginação, estando adormecido, pois agora eu sei que você começa a ter domínio sobre o sono ou não teria me mandado um recado tão claro quanto à necessidade de ter alguém de confiança para quem confessar os distúrbios que tanto o desagradaram.
— Quer dizer que o meu desejo de falar com você se transformou numa mensagem telepática?
— Perfeitamente, meu amigo. Mas vamos tentar outra vez, via-à-vis, como diríamos na encarnação em que fomos mulher e marido na França.
Adonias estaria disposto a prosseguir naquela linha de recordações, mas Alice, apertando-lhe fortemente as mãos, comunicou-lhe tacitamente que fizesse o que ela havia solicitado.
Foi mais um teste bem acabado do poder de rememoração do ex-sacerdote. Sendo assim, em menos de dez minutos, tudo se gravou no cérebro da amiga, até mesmo os raciocínios mais recentes.
Alice logo foi fazendo algumas considerações:
— A partir de seu parecer, se fôssemos censurar a criação por ter feito o homem, ou melhor, o espírito, simples e ingênuo, não chegaríamos a resultado algum, porque temos de admitir, como ponto de partida, que os caminhos se abrem a poder do livre-arbítrio, caso contrário não haveria necessidade de nenhuma espécie de criação, permanecendo Deus sem suas criaturas, o que não lhe modificaria nenhum dos atributos. Teve ele a iniciativa de criar. Muito bem, quem somos nós para investigar suas supremas razões?
— Não vejo a relação entre esses seus comentários e meus pobres...
— É simples: você acha que pouco sabe e gostaria de saber muito mais. Ora, para que isso suceda, é preciso considerar o fato da perfectibilidade dos seres. Sendo assim, é justo aguardar que o bem nos chegue depois que tomarmos uma iniciativa justa e adequada para o recebimento do dom correspondente. Se me fosse dado lembrar-lhe, deveria dizer-lhe que a natureza só dá saltos de acordo com premissas claramente definidas, não havendo jamais um resultado de transformação cujas causas, mesmo distantes, não possam ser estabelecidas. Você, no entanto, está pleiteando um estágio de mutação sem vínculo com nenhum esforço correspondente de sua parte. Aliás, sua reclamação quanto a não chegar sozinho a nenhuma conclusão importante se alinha com este último pensamento, porque você está desejoso de evoluir sozinho, quando nós sabemos que, em todo lugar, os seres se congregam para ajuda mútua em todos os setores de suas personalidades, o que uns chamam de afinidade vibratória, outros de solidariedade fundamental, outros de humanitarismo avançado ou superior, outros, simplesmente, de amizade ou de simpatia ou de amor. Ou você acha que o amor pregado por Jesus era simples figura de retórica, para convencer os homens de que deveriam ser bonzinhos, para que o Pai os perdoasse de todos os pecados e os agasalhasse no reino, reservando para eles uma quinta com água corrente, ensolarada, povoada de pássaros canoros, com uma casinha sempre limpinha por mãos misteriosas, que fariam o serviço automaticamente, sem despertar sequer nele o desejo, o interesse, muito menos o labor de um pensamento?
— Ou muito me engano ou estou recebendo uma raspança em regra. Não deveria a minha querida amiga, que tanto me perdoou na existência, levar em consideração o meu noviciado...
Alice levou ambas as mãos de Adonias aos lábios e as beijou carinhosamente. E concluiu:
— Você pode pensar o que quiser, mas saiba que sou eu quem está aqui a lhe lembrar alguns pontos a serem considerados, quando se dedicar a descobrir as verdades escondidas nos fatos antigos e quando se dispuser a realizar novas conquistas, tendo em vista os desastres revelados por uma crítica bem elaborada dos procedimentos estruturados e ainda vigentes em sua maneira de ser. Você já perlustrou o nosso relacionamento existências afora? Se o tivesse feito, iria perceber que nós estamos atraídos um pelo outro desde sempre e que, por causa de nossos defeitos, nos temos afastado cada vez que uma união mais feliz está prestes a se dar. Combinamos não nos ferir diretamente na derradeira encarnação. Então, você achou que o sacerdócio celibatário seria a fórmula mais adequada para essa realização idealizada; eu concordei e fui na condição de pleiteante a freira. Nós nos encontramos e o amor se despertou no seio de nossas almas. Fomos fortes, porém, até que eu me definhei, numa expectativa de sofrimento moral que me conduziu a uma doença incurável. Abandonei logo as vestes carnais. Você se rebelou contra as normas seculares da Igreja, sem consciência, verdadeiramente, de que o fazia impulsionado por razões ponderabilíssimas encontradas numa obra que refugou, O Livro dos Espíritos, que lhe sedimentou algumas diretrizes, malgrado seu, ainda mais porque tinha repercussões num passado impossível de reaver naquele instante. Vamos dizer que o Espiritismo tenha herdado alguns ideais da Revolução Francesa, para dizer o mínimo, e teremos um fulcro sobre que fazer girar alguns pensamentos...
Adonias impacientava-se com tanta circunspeção e interrompeu Alice:
— Minha querida, quem está dando saltos nos raciocínios é você. Não seria mais tranqüilo referir-se à minha personalidade como a de alguém que sempre teve vidas regaladas na Terra e que agora estava fadado, por conta de um compromisso cuja origem eu não estava em condições de analisar, a viver uma vida de sacrifícios, muito particularmente quando me condoí com a situação dos mais miseráveis, entre os quais situava os indigentes da carne e os falidos da moralidade?
— Vamos, então, falar do problema mais grave dentre os que perpassam por sua consciência: vamos falar de seu pai, o Senhor Fernando. Você já o caracterizou como personagem de sua história desde sempre?
— A dizer a verdade todinha, estou com receio de realizar um reconhecimento completo.
— Terá sido ele a pessoa que você assassinou com uma arma branca, quando era um rico comerciante na Itália?
— Mas eu tive a impressão de que alguém que estava presente durante a minha reminiscência do fato e que me obstou o reconhecimento é que seria aquela criatura.
— Eu obstei, com o apoio dos outros, porque era um problema a mais para resolver num momento crucial para o seu despertar. Além disso, eu estava lá e vi tudo ocorrer. Portanto, se você não conseguir reviver a cena, eu posso ajudá-lo.
— Quer dizer que você sabe que era exatamente o meu pai?
— Quer dizer que, naquele tempo, ele era seu tio e você investiu contra ele por haver descoberto que ele o enganava de várias maneiras, o que não vem ao caso porque... Conclua.
— São águas passadas e renovadas. Estou recordando-me agora das circunstâncias e não desejo reavivar os aspectos negros de um episódio completamente ultrapassado. Se nós estivéssemos elaborando um roteiro de romance, talvez nos interessássemos em ativar a curiosidade dos leitores. Mas, como estamos enfronhando-nos no nosso passado para reaver uma conduta que merece ser analisada, para configurarmos se ainda resta algo a remir...
— Muito bem. Eu mesma não estou à vontade para me apresentar naquela situação, quando eu não passava para você de uma pessoa, vamos dizer assim, avulsa.
As mãos de ambos se apertaram significativamente, como a comprovar que tudo aquilo só não estava esquecido completamente porque estava sendo útil para o momento de reintegração da personalidade de Adonias.
— Querida, passando adiante, vendo-me na escuridão do Umbral, antes de me encarnar de novo, percebo que meu espírito ainda guardava muito rancor contra aquela figura. Quem terá sido ele para mim, quando estive metido nas armas, na diplomacia e na política? Ei-lo que surge em meu campo vibratório: era um oponente de outro partido. Tivemos alguns entreveros, até que me desafiou a um duelo. Tirei-lhe a vida no chamado campo da honra, mas, dessa vez, ele teve condições iguais de me atingir. Tanto que, no negrume de minha nova passagem pelo Umbral, não me preocupei com esse fato, recordando-me daquele adversário mais como o da passagem anterior, desconhecendo que nosso relacionamento havia evoluído para uma situação mais amena, menos agressiva. Juiz na França, essa mesma figura se juntou ao meu destino como um infortunado criminoso, talvez mais vítima do que agente do assassinato que efetivou de maneira acidental, de baixo intelecto e de rude aspecto, que me enojou e que eu condenei de forma injusta e brutal aos trabalhos forçados. Soube que morreu no cárcere. Outras notícias obtive de novo na escuridão das trevas, onde desenvolvi um espírito crítico muito mais rigoroso, porque constatei que todo o auxílio que recebera ao ser adotado ficou no olvido e que, como a compensar o abandono de que fui vítima muito novo, com os conseqüentes maus tratos na rua e no orfanato, me tornara ferrenho catão da Justiça, imagem que gostava de configurar para justificar o excessivo rigor de minhas sentenças. Foi quando me veio a necessidade de clamar por perdão, arrependido que estava por haver entendido, além do direito humano, que eu estudara e que levara a efeito no tribunal, que havia uma justiça absoluta e eterna distribuída pelo Criador. Recordo-me do momento em que meu pai se dispôs a receber-me em seu novo lar, impondo-me a condição de que cumpriria a promessa de ressarci-lo dos débitos antigos. Entendo, agora, a razão de ele querer mandar em minha vida, forçando-me o ingresso no seminário.
— Não vá com muita sede ao pote, querido, que ele é de barro e você irá abalroá-lo com tanta fúria. Não havíamos nós acordado que iríamos ter um amor platônico? Não havíamos chegado à conclusão de que o melhor seria um afastamento de caráter moral e religioso? Então, seu pai, com suas exigências, simplesmente corroborou com o nosso plano, talvez sob a influência de nossos protetores e dos dele.
— De que vale possuirmos um livre-arbítrio que se submete às adversidades de um destino elaborado à nossa revelia?
— Você acaba de derrubar o pote. Deixa ver se eu o salvo ainda, pelo menos um pouco da água derramada. Veja que ele está inteiro: na verdade, bastava você dizer não à vocação deficiente, para que sua rebeldia transparecesse mais cedo. Concorda comigo?
— Concordo.
— Então, de qualquer modo, a sua situação na vida lhe era até confortável, tendo em vista que a instituição a que pertencíamos era e é muito rica e que nada falta a nenhum de seus componentes. Certo?
— Certo.
— Sendo assim, era mais uma vida de regalias, caso você não sofresse uma transformação substancial, com certeza pelo influxo dos ideais de justiça que havia desenvolvido e que aplicava aos que você chamou de indigentes da carne e falidos da moralidade. É isso?
— É.
— Ora, deu-se o acidente e você pereceu, vitimado por um descuido de seu pai. Quer analisar agora a razão dessa tragédia?
— Vamos lá, mas com cuidado, porque estou vendo que você já refletiu muito sobre o assunto.
— Certamente, porque é preciso que a gente entenda de tudo, muito especialmente a respeito das conseqüências aparentemente motivadas de modo injusto por situações críticas anteriores. Assim, vamos raciocinar pelo avesso e dizer que seu pai precisava, veja o termo que vou usar, descontar em você o que de você havia recebido, aplicando-lhe a famosa lei de talião: dente por dente, fratura por fratura, lesão por lesão, nesse caso no campo do sangue e da carne, da vida, enfim. Mas você não havia pedido perdão?
— Com o coração na mão.
— Ele não lhe havia dado uma oportunidade em que demonstrava ter aceito o seu pedido?
— Creio que sim.
— Como, então, arrumou um modo sutil e engenhoso de descarregar o fel de seu mau caráter, provocando-lhe um decesso estúpido?
— Nunca o acusei de revide, mesmo porque eu não sabia o que ele representava para mim, quando tive conhecimento de meu acidente nem quando soube que se suicidara, demonstração evidente de que se arrependera, inclusive (isto estou concluindo agora) pelo fato de haver buscado esse modo sutil e engenhoso de descarregar o fel de seu mau caráter, causando-me um desfecho trágico.
— Então, você concorda comigo que o motivo de ele haver ocasionado a sua morte deve ser procurado em outros fatores?
— Posso levantar uma hipótese?
— Deve.
— Alice, querida amiga e companheira, eu acho (e aqui o achismo calha perfeitamente) que o Senhor Fernando tinha de provar o mesmo gostinho amargo (perdoe-me o eufemismo), a mesma sensação tremenda de quem se vê o vilão da história, acusado principalmente por sua própria consciência, talvez porque ele me houvera condenado e perseguido sem analisar direito uma das leis primordiais na natureza e de nossa formação espiritual: a lei de ação e reação.
— Penso que tenhamos liqüidado o problema quanto às sugestões que podemos dar para seu equacionamento. Quem sabe, assim que tivermos um contato tão lúcido quanto este com seu pai, possa ele configurar para nós, definitivamente, o que ocorreu na realidade. Que devemos fazer agora?
— Primeiro, eu quero que você se junte a mim numa prece que deixei passar e que sei que terei condições de efetuar com maior sensibilidade e boa vontade, muito embora ainda não me haja refeito completamente das emoções destas descobertas desagradáveis. Sei que você irá dizer que vão transformar-se e que acabarão esquecidas por terem sido superadas através de realizações de bom quilate. Mas, que fazer, se a evolução, como você me ensinou, caminha a passos de tartaruga, jamais ensaiando um pulinho sequer?!
Alice se divertia com o intento do amigo de melhorar seu humor e se pôs a acariciar-lhe o rosto, fazendo-o mergulhar num passado em que fora feliz no mundo, sem desencadear-lhe as reflexões a respeito dos acontecimentos infelizes posteriores.
Sem que percebessem, uma onda de paz os envolveu e eles puderam, em conjunto, observar que aquele era, verdadeiramente, o primeiro instante no etéreo em que conjugavam todas as suas emoções, realizando o ideal dos seres que se completam, como se pudessem fundir-se numa única entidade do Senhor. Foi assim que dedicaram uma linda prece pela restauração de Fernando e que se encheram de questões para serem resolvidas isoladamente. No primeiro impulso de solução diferenciada, Alice e Adonias se separaram e se identificaram consigo mesmos, ambos reconhecendo que não estavam ainda preparados para tal simbiose afetiva.



11. AS TENTAÇÕES DE JESUS

Adonias e Alice se separaram com muita vontade de prosseguirem em suas produtivas reflexões, mas haviam perdido a noção do tempo, de modo que, de repente, estava na hora de ela render o plantonista da enfermagem.
Despediram-se prometendo manter-se em contato telepático, caso houvesse alguma brecha em seus quefazeres, porque Adonias tinha, entre outras coisas, de preparar a sua próxima palestra, para o que era obrigado a comunicar aos alunos o tema e a bibliografia correspondente, para que fossem à aula preparados.
Recolheu-se, portanto, em sua minúscula vivenda particular, pôs-se diante do computador e começou a tomar notas, a ver se elaborava uma página de informações sobre o que desejava explanar.
Logo lhe veio à idéia o episódio das tentações de Jesus. Então, assinalou na tela que os textos de estudo se encontram em Mateus, IV: 1 a 11; Marcos, I: 12 e 13; e Lucas, IV: 1 a 13.
Referiu as passagens de cor, recordando-se do inteiro teor de cada evangelista. Foi quando levantou a suspeita de que esses textos poderiam estar entre os que sofreram adulteração, até mesmo de sua parte, nos tempos de São Jerônimo.
“Será que poderei enfrentar as críticas que serei obrigado a ouvir da consciência, caso descubra que mexi nos originais dos evangelistas?”
Passou a refletir a respeito de como se poderiam contornar os problemas desse naipe, porque, evidentemente, não estava ele sozinho quanto à responsabilidade das mudanças.
“Quais interesses poderiam mover os primeiros cristãos graduados na nascente igreja? Sem dúvida, tinham de realizar uma pregação que arrastasse as multidões, muito embora Jesus lhes tivesse ensinado que os meios eram os de cura, os de aconselhamento, os de afirmação do amor universal...”
Passou pela mente de Adonias que, se levantasse suspeitas quanto à autenticidade dos Evangelhos, poderia afugentar os alunos, como se estivesse tirando de si mesmo a própria autoridade sobre o assunto.
“Kardec comentou a respeito desses problemas, asseverando que havia necessidade de sério levantamento histórico e filológico para restauração dos primitivos narrados. Por outro lado, buscou o codificador da doutrina espírita firmar o princípio de que todas as palavras poderiam ser explicadas cientificamente, até mesmo os milagres mais esquisitos e espantosos. E quando se encontrou com a passagem das tentações, como a considerou? Disse que se tratava de mais uma de suas parábolas, porque não acreditou no fato de Jesus estar submetido à vontade de um ser, o diabo, que, para Kardec, não passava de uma entidade mitológica, fundamentada, evidentemente, nas aparições ou manifestações dos seres mais infelizes, como no caso das possessões tratadas e curadas por Jesus. Mas os textos afirmam taxativamente que Jesus foi conduzido para aqui e para acolá. Eis a intervenção dos que lidaram com os manuscritos e que fixaram a lição definitiva, cabendo ainda a hipótese de que os próprios evangelistas tivessem ouvido já essas versões, o que preservaria a idoneidade dos copistas. João não escreveu a respeito. Terá sido porque não visse nenhuma lógica em que Jesus, filho de Deus, Deus ele mesmo, segundo a concepção da Santíssima Trindade, se sujeitasse ao demônio? Ou teria imaginado a realidade do fato, considerando inverossímil que tivesse sido Jesus mesmo quem fosse o narrador de algo em que precisaria enaltecer-se para demonstrar que vencera as tentações e seu autor? Ou conheceria histórias bem mais antigas, referentes a outras pessoas divinizadas em outras culturas, principalmente as orientais, de modo que percebeu que a narrativa envolvendo Jesus não passava de mera adaptação de outros textos sagrados? Teria conhecimento de que o próprio Nazareno, em suas andanças durante as épocas em que seu paradeiro permanece desconhecido, teria realizado a assimilação do mito, incorporando-o à sua pregação?”
Nesse ponto, Adonias levantou outro tipo de problema, qual seja, o de que tudo quanto se omite na história pode ser resgatado para os homens encarnados e para os espíritos na erraticidade, através da restauração da verdade histórica pelo despertar da memória dos interessados ou de testemunhas esclarecidas e idôneas. Concentrou-se a relembrar as obras mediúnicas de caráter memorial e ajustou sua suspeita a fatos verídicos, porque muitas descrições se encontram de épocas históricas, mas relativamente a episódios que os documentos oficiais não registram.
“Qual o nível de fidedignidade desses escritos? Terão seus autores discernimento para pintar quadros realistas, a ponto de oferecer indícios de que estão revelando fatos verdadeiros, aos quais se poderá chegar rastreando certas pistas documentais ou pelo conhecimento monumental dos peritos desta ou daquela civilização, de sorte que suas apreciações se tornem peças perdidas do quebra-cabeça ainda não completamente montado? Vamos imaginar que eu me lembre de acontecimentos importantes da época em que fui juiz na França. Parece-me óbvio que certos fatos quedaram no esquecimento, pelo menos na filigrana dos usos e costumes, na maneira de pensar e de se apresentar das pessoas na sociedade, segundo o estrato a que pertenciam.”
Rapidamente, Adonias fez configurar na mente uma série de pequeninos eventos que só ele ou poucas pessoas mais poderiam revelar. Mas não sentiu nenhuma necessidade de transmiti-los, porque se perdiam nas brumas da mera curiosidade, desaparecendo rapidamente engolfados pelas recordações de maior extensão e profundidade, essas, com certeza, levadas em consideração nas obras dos historiadores, antropólogos e outros estudiosos das civilizações. Por outro lado, pareceu-lhe que o fenômeno mediúnico não teria atingido ainda o grau de universalidade que lhe desse confiabilidade em todos os setores culturalmente produtivos da humanidade, o que não redundaria em definitiva descoberta de caráter científico, sempre a pairar dúvida sobre essa fonte de informações. Concluiu que essas lucubrações estavam conduzindo-o a pontos importantes para a decisão de freqüentar as mesas mediúnicas com o fito de esclarecer a respeito da verdade, só que essa verdade se limitaria a uns poucos interessados, entre os quais, talvez, não se contassem os seus discípulos.
“Acho que preciso concentrar-me nos pontos da moralidade e da religiosidade superior dessa passagem, deixando as considerações circunjacentes para alguns que possam levantar o problema. De qualquer modo, foi muito bom meditar a respeito disto tudo, porque estarei preparado para a eventualidade aventada.”
Então, Adonias refez, de memória, os três textos, pondo logo de lado aquela simples referência de Marcos, dois simples versículos que faziam parte do conjunto apenas por constar. Mas lhe chamou a atenção o fato de Jesus ter sido levado ao deserto pelo Espírito: “E logo o Espírito o impeliu para o deserto”, como também se registrou em Lucas: “E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto”; e em Mateus: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo.”
Adonias levou esse Espírito, que as edições registravam com inicial maiúscula, em alta consideração, em primeiro lugar, por ter o poder de conduzir Jesus; em segundo lugar, segundo Mateus, por prever que seria ele tentado pelo diabo.
“Ou muito me engano, ou meus alunos terão a atenção despertada para o fato de que alguém teria o poder de conduzir Jesus. Em Lucas, consta que tal ser era o Espírito Santo. Ao menos dá uma importância suprema a uma entidade que acaba sendo a mais misteriosa dos Evangelhos, porque suscita enorme quantidade de perguntas. Mas, se, do ponto de vista tradicional da Igreja Católica e mesmo das reformadas, Jesus participa da natureza de Deus, estando encarnado, seria lógico considerar que o Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade, tivesse o poder ou a força moral de levar Jesus aonde quisesse, claro, com o seu consentimento e na confiança de uma perfeita identificação com o elemento transcendental que o estimulava a uma performance de subido valor humanitário, desde que se considere Jesus o messias aguardado pelo povo judeu, aquele que se transformaria, dada a pregação universal que se fez, em Salvador da Humanidade. No entanto, esta minha concepção de sacerdote integrado numa linha filosófica de eminente tendência religiosa, puxando para a fé cega, que admite a existência de dogmas que não se discutem, não pode prevalecer agora, quando descortino, deste lado da existência, que estavam corretos os pensadores de fulcro científico que investigaram, com critérios racionais, a possibilidade de contato entre as esferas, através de pessoas com dons específicos de interpretação das mensagens da espiritualidade.”
Adonias considerou que se afastava da necessidade premente de organizar a palestra. Achou que era suficiente explicar aos discípulos mais atentos que a citação do Espírito era para atribuir aos textos uma aura de sacralização, tornando ainda mais misteriosa a passagem em que Jesus se viu tentado por três vezes.
“A bem da verdade, é muito mais interessante investigar o que paira além do contexto, do que o significado, propriamente dito, das propostas levadas a efeito pelo diabo. De fato, considerar o demônio ignorante da condição de Jesus de ser filho de Deus e, a partir daí, fazer-lhe um desafio para que Jesus demonstre seu poder, propondo-lhe que os anjos transformem as pedras em pães, é até desmerecer a inteligência arguta que comumente se atribui ao anjo decaído. No mínimo, podia levar uma terrível reprimenda, não fora Jesus cordato a ponto de lhe ministrar a lição do pão e da palavra de Deus. Lá em cima do templo, em tese, a cena se repete e o desafio é praticamente o mesmo: Jesus, se fosse quem dizia ser, seria amparado pelos anjos, caso se jogasse do telhado. Mas o Mestre limitou-se a confirmar sua condição de filho de Deus, generalizando a necessidade de que ninguém fosse tentado, porque o desafio recairia sobre a própria Divindade. A terceira tentação se desviou para um aspecto de menor expressão filosófica. Talvez convencido de que Jesus tinha algo de superior, quis o diabo provocá-lo com as riquezas materiais. Com certeza, não esperava ser despachado com a sublime e definitiva lição de que todas as criaturas têm de adorar e servir apenas ao Criador, ao Senhor seu Deus, o que significava dizer que a vida é transitória e os bens do mundo nada representam diante da grandiosidade da vida espiritual.”
Adonias repassou as reflexões mais três vezes, como a configurar as apreciações num quadro mais extenso, exigindo de si mesmo maior rigor no exame das passagens bíblicas. Reconheceu que os evangelistas Mateus e Lucas escreveram textos baseados na mesma tradição oral, havendo a possibilidade de Lucas ter, simplesmente, transcrito Mateus. Como Marcos já estava de fora, restava apenas uma versão. Sendo assim, não achou necessário aprofundar-se na extração das conseqüências religiosas específicas de cada tentação, julgando de utilidade concentrar sua energia na discussão da distância de concepção da existência das duas personagens envolvidas no episódio. Nesse aspecto, Jesus adquiria a estatura de um ser superior, absolutamente consciente de si mesmo e da realidade como móvel das ações humanas e das reações no plano espiritual. Enquadrou sua conclusão no âmbito da verdade histórica dos leitores a que se destinavam os textos e definiu a posição dos evangelistas segundo uma perspectiva de enaltecimento da santidade de Jesus, do que deveria resultar o ato de adoração dele, na qualidade de filho de Deus, com poderes de contato com o Espírito Santo, comandando ele mesmo os anjos — lembrava-se de Mateus “e eis que chegaram os anjos, e o serviram” —, com o fito mais ou menos evidente de proclamar Jesus como Deus, para dar força à crescente estimulação do povo, no sentido de tornar aquele movimento de caráter religioso em uma verdadeira instituição, em uma igreja.
Adonias se surpreendeu levantando críticas fundamentais ao valor da religião a que pertencera. Refletiu que poderia estar sob o impacto ainda de sua apostasia pela metade e resolveu que era melhor encarar o entrecho sob outro prisma, o da visão espírita.
Mas a visão espírita precisava ser definida para quem estivera raciocinando até aquele instante segundo prisma eminentemente terreno. Caso volvesse as considerações para um ponto de vista espiritual, propriamente dito, quer dizer, expressando pensamentos e sentimentos relativos ao plano da espiritualidade, haveria de perguntar se os textos evangélicos ainda podem exercer influência sobre os espíritos da erraticidade.
“Quando Jesus passou por aqui a caminho da Terra, teria realizado alguma espécie de pregação anotada por eminentes companheiros, vamos dizer assim, escritores ou jornalistas, definindo como se daria a salvação dos que não precisavam cuidar de um corpo denso e excessivamente material, porque não existe mais o fantasma da morte a rondar as nossas existências? Provavelmente, louvando-me no meu próprio exemplo de entidade que fui sem percepção da própria realidade do etéreo, muita gente em círculos inferiores, crente de que age segundo princípios humanos, deve estar recordada das lições que leu ou que aprendeu por ouvir dizer, de modo que sua consciência cresce em arrependimento, ao observar que tão pouco realizou em função do cumprimento das ordenações do Cristo. Mas, esses, coitados, se não aprenderam o mais rasteiro, uma vez que devem situar-se entre os que Jesus atendeu através das parábolas, como é que iriam observar as diretrizes mais elevadas segundo prismas de maior profundidade moral, religiosa, científica, cultural...”
Adonias surpreendeu-se ainda completamente voltado para os valores dos seres encarnados, tanto que se havia proposto a desenvolver suas palestras no sentido de elucidar os discípulos a respeito dos textos sagrados da humanidade ocidental, sem maior vínculo com o que se aguarda dos espíritos compenetrados de seu estado atual de entidade a pairar em esfera de superior entendimento quanto aos benefícios do trabalho altruísta e do sacrifício absoluto de todo sentimento egocêntrico, com a conseqüente anulação de todos os defeitos morais, abandonando-se, por conseguinte, todos os vícios, os quais, uns mais outros menos, tendem a obstar a penetração dos conhecimentos na tecitura íntima das células do organismo perispiritual.
Atrapalhou-se um instante com sua linha de raciocínios, precisando o seu problema em área a que jamais se dedicara, qual seja, a da natureza do ser-espírito que se incrusta em cada criatura.
“Será que algum dos meus alunos terá tido algum tipo de discernimento para eliminar dos textos evangélicos tudo que se refira aos interesses exclusivos dos encarnados, mantendo o cerne dos ensinamentos no que diga respeito à formação de cada um de nós, ou seja, para aproveitamento integral nos planos existenciais mais elevados, aquilo tudo que nos mantém estruturados de forma o mais sublime possível, a ponto de sermos aceitos na companhia dos espíritos purificados pela prática incondicional do bem? Acho que preciso enfronhar-me mais no conhecimento de cada elemento matriculado em meu curso, porque saber que se dedicam ainda às ciências ditas exatas, de maneira geral, talvez me faça, ingenuamente, ditar-lhes umas lições por demais singelas.”
Nas próximas duas horas, Adonias concentrou-se no estudo biográfico de cada aluno, tendo sempre muito de que se admirar quando da análise das razões que deram para justificar a sua inscrição. Desejoso de encontrar um elo que pudesse uniformizar uma conclusão de caráter geral, deixou de lado as informações concernentes às áreas profissionais e fixou a atenção num dado estatístico secundário, qual seja, quantas horas cada um dedicou à prece e à freqüência aos cultos religiosos. Assustou-se um pouco com o resultado do cotejo entre os seus dados e a soma de todos os outros, porque ele, sozinho, tinha mais tempo dispensado ao contato com a Divindade e seus assessores que a classe inteira.
“Eis a razão de sua escolha, afinal. Não que não tenham praticado o bem, nem que suas auras não brilhem com fulgor de seres mais completos que eu. Trata-se de outra coisa bem diferente. Trata-se de conhecer algo que lhes possa fazer falta em um novo trilhar pela esfera densa da carne, porque sabem enfrentar muito bem os problemas teóricos através das sínteses científicas que continuam desenvolvendo por aqui, enquanto não conseguem atribuir com perfeição os devidos valores morais a cada postura com repercussão isolada ou no conjunto da sociedade.”
O orador percebeu, então, que havia algum proveito no estudo dos Evangelhos tais quais se dispuseram para a coletividade encarnada, qual seja, o de preparar os irmãos para um entendimento mais global do que possam representar aqueles textos, tratados de maneira objetiva e lúcida, através de uma fé raciocinada, conforme queria Kardec.
“Acho que achei algo bastante concreto para a minha exposição teórica, sem considerar, realmente, se o diabo da passagem das tentações poderia ser apenas a sinédoque ou a metonímia (a figura metafórica) dos fariseus, dos saduceus, dos doutores da lei, dos sacerdotes ou dos pseudo-sábios que o atormentavam, tentando-o de todo jeito, inclusive buscando implicá-lo com o poder romano, através do pagamento, sim ou não, dos impostos a César. Até que solicitar que as pedras se transformassem em pães, que os anjos o amparassem na queda do cimo do templo e que adorasse a figura do tentador, não era algo de muita astúcia e de muita consistência, ainda mais porque o que haveria de lucrar o pobre diabo, tendo em vista sua eterna condenação?”
Adonias percebeu que a eterna condenação era uma expressão meramente decorativa para quem, diante de si, tinha toda uma história de superações, a demonstrar que o que havia de eterno ia transformando-se, inevitavelmente, em um momento único de plenitude de felicidade e bem-aventurança, eternidade, sim, mas no reino dos céus.
Após delinear o roteiro que daria à exposição, julgou oportuno que, ao final, alguém que ele iria escolher elevasse prece de agradecimento pela compreensão da aula, pela injunção óbvia do aprendizado ao rol dos conhecimentos de cada um e pela satisfação de se poder discernir mais um mínimo aspecto da verdade. Aliás, foi o que fez, antes de difundir, através da rede de computadores, os dados em que resumira a preparação de sua aula.



12. A AULA

Ao contrário da sisudez com que iniciara a primeira palestra, esta segunda começava com uma recepção muitíssimo calorosa da parte do raia miúda, que aguardava a presença do mestre com carinho insuspeito. Rostos sorridentes e expressões joviais marcaram a entrada de Adonias, como se estivesse diante de velhos amigos.
Pôs-se ele no estrado central, notando que a paisagem pintada em toda à volta do anfiteatro ganhava vida, com o mar quebrando em ondas na praia e as palmeiras a farfalharem graciosamente suas longas folhas verdes denteadas. Do outro lado, pela avenida, o trânsito dos automóveis e outros veículos, podendo distinguir grande movimento de pessoas nas calçadas, não faltando, em vários peitoris das janelas dos altos edifícios, aqui e ali, pessoas a espreitarem a paisagem.
O orador sentiu-se em casa, exatamente como na época em que subia nas mesas ou nos bancos da orla marítima, para perorar sobre um povo ralo e desocupado.
Aí provocou os alunos:
— Sou eu ou é verdade que estamos sendo iludidos por uma paisagem tão sedutora e tranqüila?
Foi Renato quem lhe respondeu:
— Por força de sua imaginação, para nós todos, os desenhos e pinturas das paredes ganham a mesma vida, de modo que a nossa ilusão é perfeita. Aliás, caríssimo Adonias, nós lhe agradecemos por esse conforto moral, já que esse fato está a nos demonstrar que o amigo deseja passar-nos subidos conhecimentos na área em que se distingue. Obrigado, em nome da classe.
Adonias agradeceu com um sorriso maravilhado e desejou começar a expor o tema. Para tanto, necessitava saber se a classe estava interessada e determinou:
— Escrevam uma nota de zero a dez para o interesse que lhes provocou o assunto de que vamos tratar.
Em segundos, saiu a média ponderada: dez redondos.
Adonias ficou estupefato:
— Isto significa que vocês devem ter preparado a matéria, lendo as três passagens correspondentes ao episódio das tentações de Jesus, pois não? Sim ou não?
De novo houve unanimidade quanto às respostas de caráter positivo.
O professor exultava de alegria e não se fez de rogado, começando a exposição:
— Jesus, com certeza, não se proclamou, ele mesmo, superior à entidade que o tentava. Quem teria presenciado a cena e feito o relato para que os evangelistas registrassem?
A platéia não estava esperando semelhante abertura. Houve um momento de hesitação, até que dez alunos solicitaram permissão para expor seus pensamentos. Adonias escolheu um ao acaso, dentre os que não conhecia pessoalmente:
— Fale você, Miguel.
O indigitado levantou-se para manifestar-se, mas Adonias fez-lhe um gesto para que se sentasse. Miguel sentou-se e se expressou assim:
— Eu penso que os livros sagrados escondem muitos mistérios, principalmente entre as curas, os milagres e as profecias. Acho também que a vida de Jesus foi floreada e que nem tudo ocorreu conforme está narrado. No entanto, posso imaginar que as obras dos evangelistas também possuem inspiração mediúnica, de forma que é bem possível que o episódio em tela tenha sido passado a um dos historiadores da vida de Jesus (não precisa ser nenhum destes três) por um dos anjos que atenderam o Mestre Nazareno, anjo que tudo contemplou, inclusive, para aprender como é que se deve tratar com os irmãozinhos com débitos maiores que os nossos. Se a minha hipótese for viável, queda apenas como possibilidade a ser confirmada mais tarde, quando nos encontrarmos na presença desses seres quase perfeitos, mas que não se equiparavam nem devem equiparar-se a Jesus em adiantamento. Diga, Professor, se não existe um fundo de lógica, pelo menos, em minhas observações.
Adonias, deveras surpreendido pelo aluno, havia acompanhado a digressão com interesse, porque a idéia trazia aos evangelhos um novo argumento de santidade e de luz. Mas precisava responder ao aluno e o fez nos seguintes termos:
— Garanto, meu caro, que imaginei várias soluções para o caso, nenhuma, contudo, que justificasse com tanta naturalidade a postura ideal de Jesus, retirando-lhe a enfatuada possibilidade de haver ele mesmo disposto a narrativa de modo a sobrepujar um espírito coitadinho e infeliz.
Em seguida, para não perder o exercício que realizara a respeito da origem do texto, evidenciou as suas próprias sugestões e concluiu:
— Prescindo de ouvir os demais alunos e afirmo, peremptório, que todas as nossas conjecturas cairão por terra diante da verdade exposta por alguém que haja presenciado a ocorrência do fato, a partir do plano da espiritualidade concernente ao adiantamento desse espírito de luz. Mas ouso colocar um óbice nesse raciocínio, qual seja, o de que esse irmão se adianta numa velocidade tal que deve encontrar-se em esferas superiores bem mais elevadas do que a que se encontrava nos tempos de Jesus. Sendo assim, ao chegarmos o mais próximo possível dele, com toda a certeza este problema, que tanto nos está envolvendo agora, tenha virado fumaça pela importância crescente das condições existenciais que iremos perlustrando em mundos cada vez mais puros. Por outro lado, imaginemos que essa suposta testemunha se inteire de nosso interesse e nos envie uma resposta que só poderemos receber intuitivamente. Não haverá um problema sério quanto a interpretarmos a origem superior das informações? Mesmo que se reproduzam as cenas históricas de Jesus sendo conduzido pelo diabo, ainda assim, não lhes parece possível que se trate de uma ilusão que nós mesmos somos capazes de produzir, haja vista a atividade cinemática da paisagem ao nosso derredor?
Adonias fez uma pausa, a ver se a sua tela pipocava com manifestações impacientes. Ela, porém, estava absolutamente serena e as requisições, ausentes.
O expositor, então, prosseguiu:
— Alguém consegue admitir que Jesus tenha sido transportado de um lado para outro pelo diabo?
Dessa feita, mais de oitenta discípulos pediram para falar. De novo, Adonias escolheu um dos que não conhecia:
— Fale você, André.
Do fundo da sala veio uma vozinha meio apagada que exigiu até que as ondas sofreassem seus ímpetos, o vento abrandasse e o povo das calçadas e dos veículos suspendessem sua distante sonoplastia:
— Bom Mestre...
Adonias desconfiou que houvesse uma provocação, relembrou a observação de Jesus dizendo que só o Pai que está nos céus pode ser chamado de bom, mas não interferiu. André prosseguia:
— ... tenho para comigo que a sua hipótese fundamentada em Kardec seja a mais consentânea com a realidade, ou seja, que uma parábola de Jesus tenha sido transformada em episódio de sua existência corpórea. Modestamente, contudo, acho que a sua informação de que as três tentações tivessem sido pouco coerentes com a argúcia que se atribui ao demo da mitologia não é, do mesmo modo, suficientemente elástica para a compreensão da realidade psíquica do ser verdadeiro que não passaria de um mero espírito presunçoso, chefe de uma gangue, desejoso de aumentar seu prestígio dentro de seu ambiente perverso. Mas Jesus tinha luz suficiente para perceber que, no futuro, alguém poderia extrair uma lição magnífica desse incidente, ao conceber uma estrutura de valor moral e religioso, o que lhe permitiu deixar-se conduzir por aquele ser inferior, caso não tenha sido o Mestre mesmo quem haja levado o outro aos pontos por este assinalados. Sei que existe sempre a possibilidade de a pessoa, à vista de um desafio, optar por ignorá-lo, como você (permita-me o tratamento coloquial) o fez quando o chamei de bom mestre, perdendo, no entanto, a oportunidade de reproduzir mais um entrecho didático que se encontra nos Evangelhos. Peço-lhe que me desculpe a observação, mas que outra coisa o professor e os colegas poderiam esperar deste pequenino ser das trevas, a que um evangelista sequer se dignaria chamar de demônio, pobre diabo que sou?!
A classe aplaudiu a demonstração de modéstia inteligente do colega e o professor se viu na necessidade, alegre e satisfeito, de se regozijar por possuir, mais do que um discípulo, um verdadeiro colaborador para sua aula. Mas tinha de responder, dando seqüência à programação:
— Meu preclaro André, pobres diabos todos somos, na verdade, ou não estaríamos fazendo conjecturas a respeito das circunstâncias materiais em que teria ocorrido o entrecho histórico, ou não, dessa passagem bíblica. O que importa considerar, de fato, é o princípio que, parece-me, ficou estabelecido de que, tal como na nossa existência particular, os casos antigos vão ficando naturalmente esquecidos pelo acúmulo de outras vivências sempre mais depuradas no campo da moralidade. Sabem o que isso significa? Significa que a humanidade vai evoluindo aos trancos e barrancos, enquanto nós, na erraticidade, temos o conforto de ver o gênero humano às voltas com problemas muito específicos, sobre os quais pairamos, tanto que, ainda hoje, a demonologia sobrevive na Terra como teoria e como dogma de fé dentro dos conceitos de algumas das principais religiões, ao passo que o povo deste nosso círculo etéreo tem o poder de distinguir, com maior amplitude e profundidade, quem são esses tremendos e assustadores irmãos das Trevas.
André pediu a palavra e Adonias concedeu:
— Vejo que o nosso querido mestre está a contestar-me, no sentido de que errei completamente em nos considerar assim tão pobres diabos. Talvez diabos, mas não tão pobres...
Adonias considerou a facécia procedente, categorizou-a entre as que poderiam dar azo a conclusões adequadas ao plano de sua aula, mas não atinou como se aproveitaria da oportunidade. Resolveu partilhar do contentamento geral e deu àquele hiato uma utilidade real, para a proposição de outro problema:
— Vamos analisar as três lições de Jesus. A primeira, permitam-me reproduzir o texto de Mateus, consiste em: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.” Onde se encontram as palavras que saíram da boca de Deus?
A turma como que levou um choque, tanto que se manteve paralisada, sem que ninguém ousasse responder, como que aguardando que a lição brotasse por inteiro dos conhecimentos do ex-sacerdote. Pareceu a Adonias sentir um frêmito de ligeira angústia, como se o auditório estivesse suspenso numa explicação meramente retórica, pela perspectiva de uma vida dedicada à aceitação incondicional dos textos do judaísmo, considerados sagrados ainda pelas religiões cristãs, em geral. Então, encaminhou os raciocínios:
— Para quem se lembra dos sermões fundamentados nos textos do Velho Testamento, constantemente nos deparamos com citações em que Deus é colocado na condição de orador, conversando com Moisés, por exemplo, ou falando pela voz dos profetas. Digamos que Jesus tenha feito referência a esses textos, mesmo porque, antes de dizer o que reproduzi, está lá registrado em Mateus: “Está escrito.” Ou não está escrito? Claro que está. E onde poderia estar escrito? Nos textos básicos utilizados pelos judeus. Isto é óbvio. Mas eu sinto uma espécie de terror sagrado nos corações de meus amigos, como se eu fora exigir de vocês que me repetissem todas as passagens em que Deus se manifesta, para configurar aquela em que o Criador teria asseverado que nem só de pão viverá o homem. Lê-se em Deuteronômio (VIII: 3): “Ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conhecias, nem teus pais o conheciam, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor viverá o homem.” Claro está que nós nos rejubilamos quando nos dirigimos ao refeitório, porque sempre existe um prazer em nos alimentarmos, ainda que muitos se satisfaçam com uma dose mínima de nutrientes energéticos. Mas não é verdade que são esses que mais prazer sentem, porque estão desligando-se da necessidade de colher sensações para se abastecerem apenas de sentimentos e de pensamentos? Peço-lhes perdão se as minhas palavras não repercutirem em seus intelectos, mas a verdade é que, cada vez mais, viveremos apenas da palavra que sai da boca de Deus. Vou transformar a minha questão: Se Deus verdadeiramente proferisse palavras ou nos enviasse para cá, no etéreo, vibrações adequadas ao nosso grau de percepção, que ouviríamos dele?
Desta feita uma verdadeira onda de comunicações telepáticas assenhoreou-se do anfiteatro, num cruzar de perguntas, de exclamações, de ansiedades, de dúvidas, de assertivas, de pasmos, de assombros e de quanto sentimento de adesão ao tópico era concebível num grupo de cem entidades altamente interessadas na solução daquele problema.
Adonias considerou que o momento era oportuno para um amplo elogio:
— Peço a sua atenção, por favor, para uma observação pessoal, íntima, de minha parte, uma forma de confissão ao reverso, porque me encontro a mais não poder satisfeito com o desempenho da classe. Talvez a gente nem chegue a discutir todos os itens do programa, mas, se vocês forem capazes de manter esse entusiasmo aceso, se tiverem como transferir os poucos conhecimentos que se estabeleceram nesta palestra, se exercerem o seu direito ao processo intelectual da generalização, para o que deverão ler ou reler a Bíblia, com este mesmo espírito de análise e de síntese, certamente haverão de deixar para trás os preconceitos, cumprindo, integralmente, o conselho de Kardec quando nos prevenia quanto a não aceitarmos de olhos fechados os dogmas mais absurdos, notando que muitos deles teriam bases estabelecidas em épocas da humanidade em que a compreensão dos temas se fazia com muita dificuldade. Sei que muitos de vocês estão propensos a considerar apenas os ensinamentos úteis e definitivos para a nossa condição de desencarnados. Muito bem, mas não rejeitem in totum os aspectos mais rústicos das sagradas escrituras, aqueles que servem aos mortais de pedra de tropeço, de escândalo, porque talvez vocês possam precisar desses conhecimentos num retorno forçoso e necessário ao mundo denso da matéria. Restrinjo a questão específica para que vocês não se percam nas discussões da próxima reunião e deixo no ar a seguinte pergunta: O decálogo de Moisés foi Deus quem escreveu? E mais esta: Qual foi a conclusão de Kardec a respeito? Vão dizer-me que o tema espírita está longe das lições a respeito dos Evangelhos que prometi? Então saibam que a resposta se encontra em O Evangelho Segundo o Espiritismo, desse autor. Fiquem com Deus! Para tanto, ouçamos a prece de encerramento da reunião pelo nosso querido irmãozinho, Narciso. Por favor, Narciso.
Adonias cumpria o que planejara, ou seja, escolhia ao acaso o discípulo encarregado da prece. Mas Narciso acedeu e com muito gosto elevou o pensamento a Jesus, agradecendo-lhe a paciência para com um pugilo de seres inferiores que pretendiam ingressar em mente tão luminosa, pediu-lhe permissão para utilizar-se da prece que legou à humanidade e encerrou, não sem antes evocar os guardiães para que assistissem a seus pupilos quando se dedicassem a responder ao professor.



13. A CONFERÊNCIA DE MACIEL

Adonias precisou apressar-se para comparecer à segunda palestra de seu curso pelo irmão Maciel. Na verdade, segundo havia estipulado, o horário daria com folga para ir de um anfiteatro a outro, mas ocorreu que o tempo de sua aula se alargou um pouco mais do que havia programado. Chegou quando Maciel se encaminhava para o fundo da sala, sob um profundo silêncio a demonstrar a grande expectativa de seu público.
Como da outra feita, o orador estabeleceu contato com forças etéreas superiores com que mantinha comunicação, de sorte que o ambiente se encheu de luzes e de cores suavíssimas, a penetrar nas mentes como um bálsamo de paz e alegria, tranqüilizando os corações, pondo cada espectador à vontade para o recebimento das informações.
Maciel fez questão de enunciar sua conferência em linguagem física e não telepática. Sua voz vibrava harmoniosa e grave:
— Meus queridos irmãos, Deus seja conosco nesta empreitada de conhecimento, de amor e de fé. Em seu supremo poder e sabedoria, Jesus desceu à Terra para salvar os homens. Ao passar pela erraticidade, porém, enunciou pensamentos que nos têm orientado de forma categórica e definitiva. É pena que não tenhamos uma formulação lingüística apropriada para definir os termos de sua pregação superna, porque tudo o que ele nos deixou se impregnou nos espíritos mais evoluídos de nossa esfera de tão pouca luz, os quais, ipso facto, adquiriram a missão inalienável de transmiti-los a quantos se vão adiantando através de seu domínio sobre os defeitos e vícios, tanto relativos às mazelas trazidas do campo denso da matéria, quanto aos péssimos hábitos dos que se julgam superiores por alguma ciência que hajam conquistado lá e aqui. Mas, passo a passo, todos nós vamos caminhando rumo às próximas estações existenciais, de forma que ninguém se verá isento do recebimento e da obrigação de transmitir o que um dos professores da casa, nosso irmão Adonias aqui presente, chamaria de Evangelho para o Etéreo, porque se trata, verdadeiramente, de uma boa nova para aqueles que pretendem prosseguir estudando as lições consignadas nas obras dos evangelistas, agora sob um ponto de vista, vamos dizer assim, completamente espírita. Queiram recolher-se a si mesmos, concentrando-se em todas as atividades desenvolvidas em grupo ou individualmente, desde a reunião anterior.
Adonias aceitou com muita naturalidade a citação de seu nome, como se fosse a consignação de um fato natural e verídico. Sabia que seus pensamentos não estavam bloqueados e que os irmãos melhor categorizados a eles tinham acesso livre, mesmo porque requeria em suas preces que seus ouvintes dos planos mais elevados lhe enviassem sugestões para aprofundar as reflexões. Sendo assim, passou de imediato a corresponder todas as ações daqueles últimos tempos à tarefa determinada por Maciel, da qual se recordava perfeitamente: “Se fosse Jesus quem os convidasse, vocês atenderiam ao chamado do Mestre para se constituírem em seus apóstolos ou discípulos?” Adonias julgou que talvez sua preparação carecesse de maior entrosamento entre a parte teórica e a parte prática, porque não via no exercício do magistério a mesma sublimidade daqueles que trabalhavam diretamente com os sofredores, envolvendo-se através de um convívio pessoal de interdependência emocional mais positiva.
“Se nem mesmo consegui formar um pequeno grupo, conforme recomendação expressa de Maciel!...”
Aí lhe veio à memória o inteiro teor daquele trecho da palestra: “Caso se sintam em dificuldade, recomendo que se juntem em pequenos grupos, formando círculos de debates e de pesquisas...”
Atinou, então, primeiro que os grupos eram para quem sentisse dificuldade e, segundo, que, naqueles dias, havia trabalhado várias vezes com seus amigos, justamente numa atividade em que suas energias se convergiram, francamente, para seu adiantamento em diferentes áreas emocionais e intelectuais.
“Ele havia pedido que lêssemos as obras de Kardec e que reescrevêssemos os trechos com que discordávamos. Ora, não foi exatamente o que fiz quando analisei o episódio das tentações de Jesus, baseando-me, também, nos raciocínios do espiritismo nascente na Terra?”
Indo de um acontecimento a outro, Adonias pôde caracterizar todos os seus procedimentos como tendo origem nas recomendações e diretrizes estipuladas por Maciel, concluindo:
“Creio que perfiz todas as etapas requeridas.”
Naquele exato instante, recebeu o influxo de um coral, sem se manifestar exteriormente, como que repetia a sua mesma observação. Foi quando Maciel retomou a palavra, agora não mais articulada verbalmente, mas enunciada apenas de maneira telepática:
— Quero dar-lhes meus parabéns, porque todos vocês encerraram com distinção este meu curso de iniciação ao socorrismo evangélico superior. Em suas fichas, estão consignados os seus méritos e a sua nova condição de aprendizes, o que lhes permitirá freqüentar cursos mais adiantados, consoante a tendência específica de cada um. Como a sessão de hoje foi muito curta e tenho bastante tempo reservado para esta excursão à belíssima casa da Igreja Cristã da Misericórdia Divina, ponho-me à disposição de todos para alguns esclarecimentos particulares, cabendo aos meus amigos definir se querem ser ou não públicas as consultas. Vamos começar por aqueles que têm compromissos mais urgentes marcados para após a reunião. Venha cá, João D’Onófrio!
Aproximou-se da cátedra um rapazinho franzino, lépido e sorridente, que foi logo esclarecendo:
— Estou a ponto de me atrasar, Professor Maciel, mas não posso permitir-me sair sem que me esclareça um dado que me deixou curiosíssimo e acho que também a todos os meus colegas. Eu ouvi ser citado o meu nome em determinado trecho de sua peroração, mas acredito que cada um de nós ouviu o seu próprio. Estarei muito errado em supor que o nosso mestre tenha realizado um teste de resposta imediata, desejoso de saber se alguém iria ter uma reação fundamentada em algum sentimento menos correto, orgulho, vaidade ou coisa semelhante?
Houve uma onda de pura curiosidade, como nos estádios a multidão cresce em regozijo coletivo, levantando-se e sentando-se segundo um movimento que lembra as revoadas de pássaros a descreverem círculos pelo ar. Então Maciel respondeu:
— Adeus, meu caro. Vá em paz! A sua observação está corretíssima. Saiba apenas que, além de realizar uma avaliação positiva e necessária, também imaginei que poderia instigar esta sua pergunta, para que vocês todos meditem a respeito desta fórmula múltipla de comunicar, ao mesmo tempo, informações que, aparentemente, não têm nada em comum. Esclareço que a técnica é simples, bastando dominar as nuanças das vibrações, adequando-as para uma abertura individual em um momento determinado, quando o ouvinte, que nunca cessa de raciocinar, recebe o influxo do pensamento do orador, acrescentando uma informação positiva a partir de seu próprio nome, numa corrente psico-elétrica correspondente a uma resposta pessoal que é induzida coletivamente, pela manipulação das vibrações que se contêm nos fluidos, ou melhor, no conteúdo magnético de que se impregnou o ambiente durante o período de preparo da sessão. Vá, meu caro. Não se atrase.
Enquanto João saía, Maciel explicava:
— Para alguns, este domínio sobre os espectadores pode estar parecendo ditatorial. Não é. Ele só ocorre quando, conscientemente, cada pessoa se predispõe a receber as idéias e as sensações que julga que lhe serão úteis. Não é verdade que muitos estão desejosos de se habilitarem para este tipo de condução dos públicos reunidos para suas aulas, palestras, sermões?... Venha até aqui o meu querido Adroaldo.
Daí para a frente, Adonias se desinteressou pelas discussões particulares, enleado no que diria ou pediria ao professor quando chegasse sua vez. De resto, houve apenas mais dois que fizeram públicas as suas questões, chegando uma hora em que Maciel, tendo dispensado quase quarenta por cento da turma, explicou:
— Os que já se foram são criaturas abençoadas por um discernimento superior; inscreveram-se porque desejavam renovar as orientações anteriormente recebidas, vários deles antigos alunos meus vindo de algumas sérias crises, tanto que não quiseram que seus problemas fossem testemunhados pelos colegas. No entanto, a bem da verdade, não houve um único que obstasse a divulgação dos temas de que tratamos porque afetasse aos próprios interesses; todos quiseram preservar outras entidades, parentes e amigos recalcitrantes quanto a atender o chamamento evangélico do amor e do perdão. Por outro lado, as soluções aventadas envolveram conhecimentos que apenas socorristas com bastante experiência são passíveis de compreender, metodologia de nível superior a ser aplicada em casos específicos e complexos. Peço-lhes, pois, que me relevem esta atitude de reserva. Venha cá, Adonias.
De fato, o nosso herói havia manifestado o desejo de se apresentar, porque lhe ocorreu que, se ficasse para o fim, estaria perdido em suas lucubrações tendentes à fantasia, recurso excelente para debelar a premência das soluções quando do ajustamento às frustrações, mas absolutamente despiciendo quando se tem em mira um fato concreto avultando no campo das necessidades.
O contato entre os dois se deu mente a mente e se restringiu a ambos, que Adonias desejou perguntar a respeito de Fernando, seu pai. Mas começou reverenciando com extremos de admiração e profundo respeito a figura do mestre:
— Agradeço, Maciel, a sua prestativa atuação junto à nossa instituição e manifesto o meu entusiasmo por estar perante um ser superior. Quem me conhece sabe que não sou dado a elogios fáceis, de modo que queira aceitar o meu reconhecimento, porque lhe estou deveras agradecido.
Enquanto Adonias desenvolvia os seus pensamentos envoltos nas mais sinceras emoções, Maciel pousava sua mão sobre o braço do ex-sacerdote, mantendo suave pressão, como a lhe configurar que estava satisfeito com a repercussão de sua aula, ao mesmo tempo que lhe assegurava que estaria sempre disponível para as questões que oferecessem um grau de complexidade muito grande mas que devessem ser objeto de reflexão, de deliberação e de decisão mais imediata.
— Maciel, despertei para a realidade do etéreo há bem pouco tempo, como ainda restaurei minha memória pessoal mui recentemente. Dentre as personagens que me acompanharam num sentido bastante ruim e desagradável, encontra-se a figura de meu pai na derradeira peregrinação.
Maciel passou-lhe a informação de que captara completamente a situação relativa ao problema de como superar a dificuldade de relacionamento entre filho e pai e foi claro quanto a como Adonias deveria agir:
— Meu caro, quer parecer-me que existe uma questão pendente que a consciência de Fernando deve superar e que não diz respeito a você, propriamente. Veja bem. Eu não estou em condições de avaliar quem seja e como se encontra aquele ser. Nem sei se o faria, porque cabe aos responsáveis diretos pela assistência de cada um de nós a prestação do serviço socorrista. Mesmo quando formamos grupos que percorrem as regiões mais tristes, estamos atentos para as informações e pedidos que colhemos dos protetores e guias, ou dos parentes cujo amor, cuja simpatia, cuja amizade ou cujos débitos em fase de elucidação estejam exercendo pressão moral para que atuem em favor do infeliz. Isto necessariamente significa que você não deve assumir nenhum compromisso de resgate daquela criatura, em que pese você estar dividido entre as sombras de um passado de conflitos e a parca luminosidade de uma vida recente de certos cuidados e desvelos, dentro de um círculo de afeição forçada pelos processos químicos da benquerença terrena, que os efeitos dessa contingência não se deram com todo o vigor, porque vocês acabaram diante de uma situação de fato, o seu acidente fatal, acrescida pelo suicídio quase incompreensível de uma pessoa desejosa de estar de bem com a Igreja, tanto que ofereceu um filho ao sacrifício do sacerdócio. Deixemos de lado as circunstâncias e analisemos o fato em sua essência. Na verdade, o que poderia ter redundado numa longa e saudável convivência, porque você havia programado uma vida segregada quanto à constituição de uma família própria, o que correspondia aos anseios de seu progenitor, acabou sendo um óbice a mais para a superação dos dramas de outras eras. Você desconhece o estágio espiritual daquela pessoa. Eu lhe recomendo que investigue com muita cautela, porque um excesso de sofrimento poderá fazer que seu interesse repercuta naquela mente perturbada como um desejo de desforra. Ao contrário, se você descobrir que houve arrependimento e conseqüente clamor por perdão, se o seu pai não estiver preso nas malhas de outros débitos ou nas mãos de obsessores contra os quais deixou de lutar utilizando-se das mesmas armas, vamos dizer assim, então você poderá requisitar de uma equipe de socorro que alivie a sobrecarga das provações, encaminhando aquele filho de Deus a uma região menos sufocante, onde poderá receber o influxo inicial dos cuidados terapêuticos mais adequados para sua transformação. Não se esqueça de rogar constantemente pelo auxílio dos guardiães dele e seu, os quais poderão utilizar as suas boas ondas sentimentais em favor de seu pai. Vejo que você ainda não definiu com precisão os recursos de que dispõe para efetuar um estudo sério da situação. Mas leve em conta o que lhe defini como prioritário. Quanto ao seu curso, leio-lhe na mente que gostaria de encerrá-lo já na próxima conferência, segundo o modelo que lhe passei. No entanto, não faça isso, porque os seus alunos estão ainda carentes de novas apreciações a respeito das atividades de Jesus. Sugiro que se dedique aos processos de cura e de elaboração dos fenômenos tidos como milagrosos. Quanto à descoberta de suas antigas afeições, onde se encontram as pessoas a quem você dedicou amor e que lhe corresponderam, não tenha pressa, porque o mais comum, no caso de uma transposição recente de um setor de maior sofrimento para outro de alguma luz, é a gente se iludir com os próprios sentimentos, pensando ter tido um grande apego a algumas criaturas, quando, simplesmente, se resguardavam o egoísmo, o orgulho, a vaidade, o amor-próprio. As lembranças, por exemplo, dos avós, dos cônjuges, dos irmãos, dos pais, dos filhos, dos netos e assim por diante podem apenas refletir a ingenuidade dos primeiros tempos no mundo dos encarnados ou a respeitabilidade pleiteada junto aos que nos deram trabalho material ou espiritual, nos derradeiros tempos. Há vínculos reais? Há afetos verdadeiros? Então, vamos consignar um voto de confiança em que a misericórdia de Deus haverá de preservá-los para nossa felicidade oportuna. Fique em paz e que Deus o abençoe!
Adonias sentiu um forte aperto no coração, compreendendo, finalmente, que sua existência no âmbito das virtudes estava apenas engatinhando. Quis beijar a mão de seu confidente, mas deparou-se do lado de fora, para onde havia caminhado sem sentir. De qualquer modo, buscou mostrar-se reconhecido, elevando uma prece em intenção do restabelecimento de seu pai, com o pensamento voltado para Maciel, como sempre fizera em relação aos santos de que era devoto.



14. IMPORTANTES DECISÕES

Adonias saiu da entrevista extremamente impressionado com o discernimento do mestre Maciel, reflexionando bastante acerca de haver ele tido procedimento absolutamente integrado aos problemas em que estava imerso o sacerdote, ao mesmo tempo que sua expressão era fidelíssima ao princípio da benquerença humanitária que se requer de todos os seres, porque fazia emanar do fundo de seu coração uma ternura compassiva toda adequada à estabilidade emocional e intelectual do consulente. Multiplicou Adonias aquela postura por mil colegas e obteve um resultado admirável quanto a atribuir ao orientador o poder magnânimo da superioridade efetiva de quem havia progredido para além do círculo comum das entidades que ele, pobre recém-nascido para a espiritualidade real, segundo o prisma da consciência adquirente dos valores evangélicos, tinha o privilégio de conhecer.
Tornava-se, assim, Maciel luz a irradiar esperança e fé, símbolo a concretizar todas as virtudes que brotavam inscientes do quadro mental de Adonias, nomes e idéias a se conjugarem na atmosfera de sua sabedoria meramente intuitiva, como a bailar sem apoio, indo no vai-da-valsa das quimeras de quem sente lampejos da verdade, mas sem ânsias efetivas de se pôr em mangas de camisa para o árduo trabalho das conquistas definitivas.
“Preciso estabelecer, o quanto antes, um roteiro de atividades em prol do bem-estar de meus irmãos, ao menos, para corresponder a tudo quanto venho recebendo desta instituição, sem a qual estaria ainda a pregar no deserto de minha imaginação, para seres fictícios, existentes para mim apenas como alvos de uma benemerência insólita.”
Adonias suspendeu essa linha de pensamentos depreciativos de suas realizações da vida toda, a ver se lhe ocorria, naturalmente, a contrapartida das reflexões que lhe dariam motivos para entender de outro modo essa postura negativista, como se a memória fosse despertar-se para atos e procedimentos em favor do próximo, como no caso daquelas pessoas que mantiveram a doce recordação de sua personalidade altruísta, quando dava conselhos, após ouvir as confissões protocolares no exercício do sacerdócio. Pensou nos professores de toda a existência e valorizou esse aspecto saudável do interesse em que os pupilos realizassem para seu proveito os exercícios que iriam torná-los aptos em determinada matéria. Achou a comparação justa mas relacionou esse tipo de sacrifício às necessidades corpóreas, concluindo que, no mundo, poderia haver um desgaste energético e um empenho de tempo de vida, os quais, no etéreo, nada significavam.
“Maciel, pelo que entendi, atribuiu à sua visita o dom de tornar os alunos aptos a reconhecer objetivos mais elevados, como estou agora tentando fazer, no entanto, sua aplicação se deu sem que houvesse um verdadeiro sacrifício de qualquer ingrediente espiritual, a não ser que tenha deixado em suspenso alguma atividade de caráter superior, cujo mérito, extensão e profundidade não estou em condições sequer de compor intelectualmente.”
Adonias deparou-se de novo a ralhar consigo mesmo, como se tivesse uma culpa profunda, inerente ao fulcro de sua personalidade, pelo fato de não haver atinado até então com sua verdadeira situação existencial. Percebeu que a consciência estava alerta como nunca, mas precaveu-se quanto a imergir num mar de desespero e desalento, ousando supor que seria capaz de suplantar todas as dificuldades se partisse de uma prece dita com a mais absoluta sinceridade quanto a aceitar qualquer tipo de sentença condenatória, desde que a penitência lhe fosse útil para a formulação dos conceitos de causa e efeito, de ação e reação, para que, diante de cada episódio da realidade, estabelecesse um padrão de procedimento evangelizado e, portanto, coerente com os princípios cristãos que propugnava, desde os tempos no mundo, como os únicos a conduzir os filhos a seu Pai que está nos céus.
“Não posso eu, todavia, assumir sozinho a responsabilidade pelo meu destino próximo, porque tenho compromissos morais com os entes com quem simpatizo, já que, segundo Maciel, é possível que jamais, existência afora, eu haja compreendido, com isenção de ânimo, ou seja, com integral doação de mim mesmo, o que vem a ser o amor que torna o objeto de nossa atenção em um outro eu, segundo a expressão de Jesus quando nos recomendava que deveríamos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como amamos a nós mesmos.”
Nesse momento, ocorreu-lhe que talvez fosse preferível citar outra passagem, aquela em que o Mestre dizia para que as pessoas amassem umas às outras com a mesma intensidade com que ele, o salvador da humanidade, as amou. Esta última consideração possibilitou que Adonias mergulhasse mais profundamente em seus conhecimentos da Bíblia, até que se deparou diante de um problema de grande magnitude, qual seja, o de que, além dos textos sagrados, cuja autenticidade ele discutia, atribuindo-se até alguns desvios históricos da veracidade das informações ali consignadas, havia uma formulação existencial mais complexa, mais abrangente, mais universal do que uma simplória visão fundamentada em conceitos adquiridos em estreita faixa de humanidade, que ele caracterizou como judaico-cristã, abrindo um leque de outras possibilidades filosófico-religiosas apenas dentro da perspectiva dos encarnados na Terra, porquanto ampliava sua visão intuitiva para a perspectiva espiritual, a partir da informação de Maciel de que Jesus havia legado aos seres além do círculo carnal outros ensinamentos, para os quais ele mesmo, Adonias, não estava preparado.
“Se tudo o que mantenho arquivado na memória é reflexo das ponderações humanas que ficaram registradas nas obras que li e estudei, se, além delas, também sou capaz de levantar os acontecimentos históricos que milenarmente foram dando contexto para a formulação das aspirações dos seres humanos, em todos os setores de suas realizações, também posso projetar, para além deste círculo em que me prendo, outras tantas possibilidades de atuação em prol do crescimento inerente aos espíritos, para a condição superior de absorção de parcelas cada vez mais significativas e importantes da verdade.”
Ocorreu a Adonias que mantinha linear, apesar de tudo, o pensamento, porque bloqueava, através de um vigor muito forte, as suas decisões em torno da idéia principal do pragmatismo das pequenas conquistas no campo dos relacionamentos, trabalho a efetivar-se categoricamente, sacrifício real e forçoso justamente desse seu brilhantismo teórico.
“Preciso ouvir Alice o quanto antes. Quem sabe ela me sugira a permanência em algum quadro de funcionários de categoria inferior mas que prestam serviços relevantes e úteis para a comunidade, como conduzir os visitantes, o que faz meu amiguinho Renato, ou atender na portaria, como a Rose, ou a transportar as pessoas através do trânsito, como o motorista Valério, ou mesmo como um simples paramédico, a colocar os doentes nas macas para levá-los de um lado para outro.”
Esforçou-se para ser atendido pela amiga de tantas existências infelizes até que recebeu dela uma forte resposta aos seus apelos:
— Caríssimo Adonias, as suas pretensões me parecem muito justas. Muito embora você tenha capacidade para desenvolver temas de caráter superior, falta-lhe aquela luta diária contra os males e contra a dor instalados nos corpos físicos e perispirituais dos nossos irmãos. Vamos pensar em conjunto, após ouvirmos Adão e Anésio, como é que superaremos essa injunção de suas meditações, porque estou a concordar com você quanto ao fato de sentir a necessidade de algo mais prático e positivo, vamos dizer assim. Enquanto isso, considere a possibilidade de se empenhar no setor de limpeza e higienização de nossa casa, sabendo que irá reencontrar-se com muitos irmãos nossos em fase de conscientização das falhas e caracterização das culpas. Pense nisso.
O contato se desfez, compreendendo Adonias que Alice estava ocupada com suas tarefas de enfermeira.
“Será que ela me aceitaria na condição de auxiliar?”
A pergunta logo ficaria soterrada numa sombria avalancha de sentimentos desalinhados.
Mas Adonias reagiu:
“Que tipo de fuga é essa a que me habituei? Quando as coisas apertam e eu desconfio de mim mesmo, logo procuro desligar-me das pressões que a consciência provoca, como se um desmaio, um delíquio, uma síncope me livrasse de todos os problemas. Preciso opor às idéias e sentimentos de inferioridade, exatamente, os conceitos superiores do trabalho em prol do próximo, o que, fatalmente, me levará a um esquecimento de mim mesmo. Eis que estou me definindo egoísta, orgulhoso, vaidoso, prepotente, pessimista... E o que significa isso no fundo? Significa que me arvoro em paladino da fé, mas, na verdade, ponho a Providência Divina em plano absolutamente inferior, como se a sua misericórdia fosse tão-somente uma brilhante inferência intelectual dos seres racionais, aqueles que são capazes de analisar o mundo exterior, dando-lhe uma origem transcendente obrigatória. Aí, os indivíduos mais enérgicos mentalmente pressupõem a existência dessa inteligência criadora, estabelecem um nexo com os deveres sociais ou humanos, comparam com as atitudes instintivas dos animais e deduzem que precisam respeitar a magnanimidade do único ser, ou espírito, ou força cósmica, ou o Absoluto, aquela luz hipotética de imanência e de inerência em concepção totalmente intransigente com a imperfeição das chamadas criaturas, capaz de lhe transferir os atributos todos da presença divina, transformando-o, ele mesmo, em ser a pique de integrar-se nessa consciência mais que universal, porque acima de tudo.”
Adonias, apesar de estabelecer a necessidade de enfrentar o tumulto do cérebro, a confusão das idéias, precisou reconhecer que caminhava perigosamente à beira de um abismo e que o chamamento para a inconsciência talvez estivesse dentre os recursos naturais de proteção dos seres. Mas a idéia de adormecer, perdendo a sintonia consigo mesmo, não lhe agradava, numa hora em que precisava fazer vingar a prerrogativa da vontade sobre as intempéries psíquicas das acusações.
Reviu os defeitos de sua personalidade, reconhecendo os que havia relacionado, acrescentando outros mais, praticamente esgotando todos os defeitos, incluindo os que conhecia só de ouvir.
“Dizem que as pessoas não devem buscar ressaltar as próprias virtudes, que elogio em boca própria é vitupério, que seria absoluta falta de humildade dizer-se possuidor de qualquer mérito, mas a verdade é que verter sobre a alma o estanho derretido das mazelas também é um defeito a gerar agudo negativismo, não direi quanto ao Pai, mas quanto à falta de determinação pessoal em enfrentar os desafios da conduta imprópria. Se Alice julga que devo pôr-me a trabalhar na limpeza dos dejetos mais nojentos (nojentos: eis um preconceito que preciso eliminar), devo reconhecer que não posso rebelar-me contra um serviço necessário e útil, que deve encontrar sempre voluntários para sua realização, já que não há vantagem nenhuma em organizar um corpo de funcionários especializados e remunerados, que iriam aperfeiçoar um sistema mecânico qualquer, sem que nenhum dote de virtude se exija de ninguém, não se configurando sacrifício algum.”
De novo Adonias suspendeu sua linha de raciocínios para verificar dois fatos principais. O primeiro dizia respeito a como era insidiosa a infiltração dos raciocínios em descompasso com a lógica que o manteria aceso para as concepções absolutamente sob domínio da vontade, resultado a que chegou ao observar que, depois de algum tempo, seus pensamentos tendiam ou para a fantasia, ou para uma completa desconexão entre agentes e reagentes das ações mentais. O segundo remetia-o à reflexão anterior a respeito do sacrifício de Maciel, configurando-se, mutatis mutandis, latinismo que fez questão de consignar, que o orientador, ao vir conversar com essa turma de pleiteantes ao cargo de socorristas, devia sentir-se como quem empresta seus dons para o serviço de eliminação dos detritos humanos de que se lotam os hospitais.
Pensou em contatar de novo Alice, mas, com medo de perturbá-la em suas atividades da mais alta benemerência, abriu a tela do computador a ver se, eletronicamente, ao invés de telepaticamente, obtinha o interesse de algum dos administradores da instituição em hora de atendimento ao enorme fluxo da correspondência de toda a comunidade e até de fora.
Estava disponível o seu protetor particular, o Doutor Adão, que imediatamente se pôs a par das derradeiras reflexões do pupilo. Não hesitou em sugerir:
— Caro Adonias, recomendo-lhe refletir a respeito da história de Maciel registrada em nossos arquivos. Talvez a informação de que passou, em determinada época, por mais de quinhentos anos dos terrenos exercendo o humilde encargo de ajudante de pedreiro, possa demonstrar-lhe que a evolução é um fato e que você necessita vencer a sua ojeriza por uma condição de inferioridade. Se está lembrado, na penúltima encarnação, tendo sido abandonado em um orfanato, você tudo fez, no plano da espiritualidade, para convencer os seus protetores de que seria bem mais útil aos semelhantes se aplicasse o seu intelecto em alguma profissão de valor social elevado. Tornou-se juiz togado. Deu no que deu e você sabe bem em quê. O mais que você se aproximou de uma condição miserável na carne foi aí. Perde-se no tempo uma época em que esteve numa região paupérrima, mesmo assim sob a mais intensa revolta, tanto que se tornou líder comunitário, usufruindo bens a que ninguém mais tinha acesso. Esse seu itinerário de gente bem postada redundou, como você está sentindo, em uma necessidade de equiparação por baixo com os seus irmãos. Recomendo-lhe a lição de Jesus do camelo a passar pelo fundo da agulha, porque a riqueza também consigna aspectos basicamente morais, sem que se possa acusar o sujeito de usura ou de malversação dos recursos. É uma questão que se instala no íntimo da personalidade, terminando por lhe atribuir uma característica palpável. Mas a este resultado o interessado só chega no momento em que tem de definir com segurança se deseja, verdadeiramente, melhorar-se, sendo capaz, então, de reconhecer aqueles defeitos todos que você assinalou. No entanto, você deve evitar de correr o risco dos exageros porque, ainda que não queira, se ultrapassar certos limites de segurança impressos em seu rol de qualidades psíquicas, irá desfalecer, para que se impeçam desvios de procedimento rigorosamente prejudiciais à pessoa, principalmente por remetê-la no vórtice dos sofrimentos a que estaria sujeita não fossem os amigos estarem sustentando-a em equilíbrio ou estabilidade mais ou menos precária. Saia dessa configuração psicológica deletéria e se predisponha a servir aos irmãos, na certeza de que estará a serviço do Pai, para a bem-aventurança de todos. Ou você acha que só você é imperfeito? Os mais espertos fazem que todos os que os rodeiam com estima ajudem na recomposição mental ou emocional, o que penso estar fazendo em seu proveito, com algum sacrifício moral, porque vejo que meu amigo terá de passar por fases doloridas, assim que ganhar uma envergadura mais coerente com os reais problemas que tem de resolver. Mas eu peço ao Senhor que nos ampare a todos e nos ilumine e nos oriente e nos envie quem possa induzir-nos a nos decidir pelo melhor caminho. Você tem um excelente cabedal de preces e já evidenciou que coloca toda sua sinceridade emocional nos pedidos que realiza pelos seres que o põem comovido. Faça o mesmo em seu próprio nome, consignando em seu requerimento afetivo todas as leis, em seus diversos artigos, incisos e itens, os quais deverá respeitar para que possa receber deferimento. Fique com Deus! E, se não desejar perder-se de novo em filigranas racionais, dirija-se (pode ser através de seu terminal de computador) ao setor de colocações, deixando ao sistema programado que o inclua entre aqueles com quem você manteria uma convivência de equivalência vibratória e energética, para que possam, permita-me uma reminiscência terrena, trocar figurinhas. Quem sabe algumas estampas carimbadas ou consideradas difíceis estejam em seu poder, você que tanto conhece as Escrituras Sagradas, podendo trocá-las pelas que lhe faltam para completar seu álbum. Perdoe-me a linguagem figurinhada e o péssimo trocadilho, mas não é bom esforçar-se para readquirir o seu bom humor, o qual, conforme você me informa, tem estado há algum tempo de férias?!...
Adonias esboçou um sorriso, desligou o aparelho e dispôs-se a adormecer, sabendo que a consulta ao banco de dados iria intrigá-lo mais do que a expectativa que manteria, já percebendo o intuito disfarçado de se distanciar o mais possível dessa suprema decisão. No entanto, ainda chegou a obtemperar, antes de adormecer:
— No mínimo tenho de estar na companhia de Alice na hora de conferir o resultado de minha inquirição para o voluntariado caritativo.



15. ADONIAS ARRUMA SERVIÇO

Despertou cedo o nosso amigo e imediatamente, sem esforço mental, ligou o computador e endereçou um pedido para que Alice se encontrasse com ele, assim que possível.
Enquanto aguardava a resposta, metodicamente se pôs a vasculhar as suas recordações de todo o sempre relativas a Fernando, seu pai. Punha fé em que conseguiria suplantar todos os embates emotivos e foi perlustrando os episódios, terminando por achar que os dois tiveram sérios entreveros, quase sempre por um desejar ser ou ter mais que o outro em vida ou nas sombras da erraticidade.
“Dar importância às questões que nos envolveram, finalmente, é um absurdo de mau gosto filosófico e evangélico, no mínimo. Penso que os ódios antigos feneceram de vez com a compreensão de que viemos prejudicando-nos mutuamente, em lugar de agirmos em prol de nosso progresso e das pessoas que de nós dependeram na carne e que, depois da morte, se sentiram no direito de revidar. E dizer que, no início, éramos unha e carne, os dois sempre juntos para as realizações mais perversas de que ambos pensávamos estar lucrando com o prejuízo alheio. Não sinto resquícios desses sentimentos sórdidos, mas também não distingo nenhum ato de benemerência...”
Precisou suspender o passatempo em que transformava a apuração histórica de uma condição de inferioridade completa, fazendo-o aliviadamente, porque ia adentrando por uma via que o deixaria prostrado diante da falência de suas realizações como atos de amor e solidariedade, uma vez que Alice estava na tela, fixando, para dentro de dez minutos, o seu encontro, demonstrando que poderia estar com ele, no máximo, meia hora. Se isso lhe conviesse etc. e tal, ela estava disponível.
Adonias se despediu e ponderou que o melhor a fazer naqueles minutinhos que ela lhe dera seria consultar, conforme sugestão do médico amigo, o setor de ajustamento a determinada atividade de sua psique, lugar a ser indicado de acordo com os critérios padronizados e científicos da instituição.
Foi o que fez, pensando que a resposta levaria algum tempo para definir-lhe a melhor vaga. Mas as indicações foram praticamente imediatas, abrindo-se três possibilidades de aplicação de seu voluntariado em favor dos semelhantes, com a seguinte observação preliminar:
“Ao consulente cabe decidir por uma das três oportunidades, podendo, por decisão pessoal, arcar com mais de um compromisso, caso em que o total de horas mínimas se acresce de um ou dois terços, conforme a decisão seja de duas ou três atividades.”
Admirou-se Adonias que as vagas oferecidas não partilhavam de suas suspeitas referentes aos piores serviços, os que lhe causavam ojeriza: as três ofertas foram as seguintes: auxiliar de escritório para serviços de escrituração e atendimento geral, conforme solicitação dos responsáveis pelo departamento; auxiliar de transporte de enfermos, podendo servir junto às equipes socorristas na qualidade de atendente capelão; auxiliar para serviços gerais de manutenção da limpeza nos pavilhões de aulas e conferências, ficando ainda à disposição dos expositores para o que precisassem.
Todas as informações se arquivaram em sua ficha eletrônica de sorte que, ao se encontrar com Alice, lhes ficou muito fácil rever as propostas de colocação do ex-sacerdote.
Mas Alice não se convenceu:
— Evidentemente, o programa casou os dados disponíveis com os reclamos dos diferentes setores em que a sua humildade se exerceria de modo pleno e ajustado. No entanto, eu creio que, se o seu histórico ou curriculum vitarum, com perdão do latinório, se ampliasse no sentido das mazelas de que não se libertou inteiramente, porque estão a gerar certo tipo de argúcia ou mandriice perigosa, as respostas seriam mais contundentes relativamente aos preconceitos cuja existência você tem revelado a mim e aos seus protetores com acesso às declarações exteriorizadas de sua consciência. Em todo caso, dado que você está feliz com esse resultado, tente inscrever-se...
Adonias não deixou que ela prosseguisse:
— Meu bem, não seja dura para comigo. Ou melhor, seja exigente e ríspida, mas não se interponha entre os meus desejos e as minhas intenções. Abro-lhe o meu coração de par em par. Se você me ajudar, transfiro para a memória do computador todas as informações que você julgar convenientes para alterar o resultado da consulta. Mas não se disponha contra mim. Oriente-me, isso sim, porque estou a lhe requerer compreensão e carinho.
— Belas palavras, meu amigo! Belas palavras! Vamos ver se os atos correspondem. Para efetivar a transmissão de sua memória para os arquivos centrais do computador, você deverá requerer uma senha e esperar ser convocado, porque esse setor está sempre congestionado. Enquanto isso, recomendo-lhe que escolha uma das três atividades e inicie imediatamente as tarefas que lhe forem determinadas pelo superior a quem deverá obedecer e prestar contas, conforme dispositivos gerais e normas setoriais e individuais. Eu lhe sugiro o trabalho mais humilde dos três, qual seja... Responda.
Adonias estava tentado a optar pelos três de uma vez. Mas não ousou colocar o ponto para discussão. Imaginou que a terceira oferta, a do setor de limpeza, era a que correspondia ao desejo de Alice e declarou, enfático:
— Vou ficar com a oferta no setor educacional, pelo menos poderei amealhar informações relativas à aplicação intelectual dos mestres, segundo o tipo de conhecimentos que transmitem.
Alice olhou o amigo de viés, indicando-lhe que sua decisão envolvia um procedimento de escolha:
— Se você quer doar-se integralmente, não reflita para escolher. Coloque-se à disposição dos três setores...
— Mas você me pediu para selecionar um.
— Pedi-lhe, sim, mas eu gostaria de vê-lo considerando as opções conforme uma deliberação pessoal livre. Na verdade, o que estou tentando passar-lhe é que você não poderia apoiar-se em mim para algo tão simples quanto pôr-se a trabalhar pelos irmãos, principalmente porque você vem questionando justamente o fato de que lhe falta essa aproximação mais efetiva com os seres necessitados de cooperação. Veja se consegue tirar uma ilação de meu interesse em conduzi-lo da melhor maneira possível à compreensão de si mesmo. Mas faça-o sozinho, que está na hora de ir-me às minhas tarefas. Adeus, meu amor!
Alice passou carinhosamente a mão no rosto de Adonias, como a confirmar sua expressão de afeto e largou-o profundamente pensativo, a sopesar cada pequenino trecho daquele diálogo. Por fim, dirigiu-se ao terminal mais próximo, registrou-se para a consignação de sua folha corrida de todos os sucessos prioritários de sua existência e declarou que estava pondo-se à disposição dos três serviços que lhe foram indicados.
Imediatamente, saiu seu horário e o rol de todas as obrigações, com os respectivos nomes dos chefes a quem deveria prestar contas, e três extensas listas de atribuições. Lá estava assinalado que deveria comparecer ao Departamento de Cursos, dentro de vinte minutos.
Adonias preocupou-se em ler as instruções, que se constituíam de alguns itens relativos ao padrão de procedimento adotado, referindo-se com grande ênfase à necessidade de não participar dos eventos em realização, guardando-se absoluta modéstia e humildade, para que o serviço em causa se desenrolasse a contento.
Estranhou ele essa determinação, julgando-a supérflua, creditando-a a uma ordem de caráter geral, sem levar em conta a personalidade dos indivíduos que se predispunham a servir por razões de foro íntimo e não pela necessidade premente do exercício de uma função à altura de sua capacidade intelectual.
Chegou cedo ao Departamento e se apresentou ao funcionário da portaria, que logo se identificou como seu chefe, Levi, que o conduziu pelos corredores, apontando as salas e os respectivos professores, todas elas ocupadas naquele instante. No fundo do longo corredor, havia uma saleta com cabides, onde se dependuravam roupas apropriadas para o serviço de limpeza. Levi apanhou um dos uniformes e passou a Adonias, recomendando-lhe:
— Mantenha o uniforme impecável, lavando-o após cada jornada de trabalho. Isto faz parte de seu aprendizado, porque, na sua ficha, consta que sua inscrição se deu por causa da necessidade de se ajustar fisicamente aos procedimentos práticos da caridade. Vou deixar-lhe aí fora um balde, uma vassoura e um pano de chão. Dentro de trinta minutos, terminam as aulas e os professores trocam de classes. Nesse momento, saia da vista deles, refugiando-se aqui. Esta será sua atribuição nos próximos seis meses. Se vencer a tentação de saber o que se passa dentro das salas ou de conversar com seus colegas conferencistas, eu lhe permitirei que comece a limpar as salas de aula. Se você tiver alguma pergunta ou questão, guarde-a para si, buscando respondê-la sem auxílio de ninguém. Este é o último item de suas atribuições. Felicidades, amigo.
Adonias estava absolutamente atordoado com os pensamentos que cruzavam em seu cérebro. Lembrou-se de como era afável no trato com seus discípulos, como manifestava abertamente uma atitude da mais libertária ordem democrática, como era tratado até com deferência por Anésio e por Maciel. Ia seguir avante nessa linha de comentários, quando terminou de colocar o uniforme de cor cáqui, com um distintivo da Igreja Cristã da Misericórdia Divina nas costas e a expressão Departamento de Cursos, na altura do coração. Encaminhou-se para a porta, onde encontrou os petrechos referidos por Levi. Apanhou-os e começou a limpeza do chão, sem que visse sujeira alguma, nódoa ou mancha, poeira ou respingos. Ao contrário, o piso brilhava a ponto de refletir-lhe a imagem debruçada sobre ele.
Aguçou a vista, ativou o olfato e se assegurou de que poderia comer servindo-se do solo como de um prato. Mas julgou que deveria obedecer e iniciou meticulosa limpeza com o pano umedecido no líquido do balde. À medida que passava o pano, o lustro embaciava, dando-lhe a impressão de que estava aplicando um produto que afetava o material do piso. Procurou por instruções específicas e não achou nenhuma. Então, resolveu que o melhor seria obedecer a ordem de limpeza do corredor, avançando ajoelhado, lentamente, de costas, pondo muita dúvida no resultado de sua atividade, porque o corredor que ia ficando à sua frente é que lhe parecia necessitado de limpeza. Imaginou que o produto que estava passando poderia ser uma espécie de cera e que receberia uma enceradeira para dar lustro no assoalho. Atinou, nessa hora, que não dera uso à vassoura:
“Eis aqui a enceradeira um tanto ou quanto rústica.”
Voltou os dois metros de corredor que havia tratado com seu pano úmido e pôs-se a escová-lo a partir da porta, com movimentos fortes e precisos de seu instrumento de trabalho, constatando que, na verdade, o chão recobrava a condição anterior da mais absoluta limpeza.
“Que estou eu a fazer aqui? Eis um serviço completamente inútil. Será que os administradores da Igreja Cristã sabem o que se passa neste setor? Pelo menos, existem dois prejuízos que me parecem evidentes. Primeiro, joga-se fora um produto que deve ter custado algo para sua fabricação, além de se deteriorarem os materiais com que é aplicado. Segundo, perde-se uma contribuição de auxílio que melhor empregada seria numa atividade real de limpeza. Se isto não for apenas um teste de paciência e de submissão, então não servirá para nada.”
Nesse momento, um pequeno mostrador pregado na manga comprida do uniforme passou a emitir uma luzinha colorida intermitente, sinal de que Adonias devia recolher-se para não prejudicar a movimentação dos docentes no corredor. Apanhou os seus petrechos, verificando que deixara uma faixa de uns trinta centímetros sem lustro. Mas não dava tempo de escová-la, fechando-se imediatamente em sua sala. Ali encontrou mais três companheiros uniformizados, cada qual sentado num banquinho ao lado de sua porta, a indicar a confluência de dois corredores, interceptados por aquela repartição.
Adonias fez menção de cumprimentá-los, mas obteve como resposta três dedos sobre os lábios, os três outros funcionários mandando-o fazer silêncio. Foi quanto bastou para Adonias resolver entrar em contato telepático com Alice. Precisava desabafar. No entanto, não alcançou sucesso em sua tentativa, resolvendo, então, passar aqueles cinco minutos de descanso de um modo agradável, correspondente à natureza do serviço que estava prestando. Remeteu a memória para os tempos de convento, onde também imperava o silêncio, enquanto ele se dedicava ao cultivo de hortaliças, prestando atenção nas sementes e em seu desenvolvimento, até tornar-se em algo viçoso e apetitoso, para a mesa da comunidade. Relembrou seus pensamentos de então e se viu recitando salmos e orações, muito mais interessado em tornar sua pessoa útil para a comunidade, aspirando por outras atribuições mais importantes, notando, finalmente, que desconhecia completamente as propriedades do solo, aplicando-lhe adubo natural, sem perguntar à natureza o que ela era nem o de que necessitava. Plantava e colhia. Afastava as pragas. Eliminava os insetos. Punha o máximo de cuidados na obtenção das melhores verduras e legumes e esperava o momento sublime da degustação e dos elogios de toda a comunidade.
Mas o tempinho do descanso terminou e Adonias volveu sua atenção para o resultado de seu trabalho no corredor. Ali estava uma faixa ainda a demonstrar que era necessário concluir a esfregação com a vassoura. No entanto, a marca continuou da mesma forma, por mais que se empenhasse em espaná-la.
“Que será que aconteceu? Que produto tem essa força de limpar e ao mesmo tempo de manchar? Como é que vou poder passar adiante, deixando esse trecho incompleto para trás?”
O novo funcionário da limpeza ficou paralisado por quase meia hora, a contemplar a sua obra deletéria, incapaz de solucionar o problema. Resolveu que aquele trecho ficaria obscuro como antigamente o seu passado, e se dispôs a prosseguir de onde havia parado. No entanto, assim que começou a passar o pano úmido, imaginou que o mesmo produto poderia diluir aquela parte em que ressecara, de forma que passou de novo o pano no trecho problemático, avançando por mais um pedaço, dando tempo a que o líqüido se assentasse. Apanhou, então, a vassoura e voltou a esfregá-la, agora com movimentos mais suaves, a ver como é que o chão reagiria. Para encanto seu, o local se fez brilhante, combinando, sem solução de continuidade, com o trecho sobre que ele trabalhara anteriormente.
Adonias abriu um sorriso de orelha a orelha e só não cantou um salmo porque estava proibido de fazer qualquer ruído naquele local. A partir daí, começou a prestar mais atenção no serviço, avançando lenta mas seguramente, enquanto dava tratos à bola, configurando uma nova necessidade de renovar a limpeza do local:
“Nestas paragens do etéreo, as coisas não decorrem necessariamente como na Terra. Há muita coisa parecida, mas é porque nós precisamos manter uma espécie de equilíbrio visual para nos afeiçoarmos, paulatinamente, às mudanças. Então, eu posso estar imaginando que o chão esteja limpo, porque, para mim, ele deve estar limpo. Entretanto, quem me diz que a visão dos outros seja exatamente essa. Vamos supor que haja algum aluno desajustado e descontente, que não esteja freqüentando as aulas senão por imposição de algum protetor mais enérgico, alguém que compreenda a disciplina como esteio para a aquisição das qualidades morais em falta. Nesse caso, bem poderia ocorrer de estar ele provocando uma sujeira sutil, dessas que incitam o ânimo dos responsáveis, apenas para dar vazão aos seus problemas reprimidos. Dois ou três nessas condições e o corredor ficará deveras imundo. Ora, eu, na minha boa-fé, acreditando que tudo aqui dentro decorra da melhor maneira possível, sou incapaz de notar essas mazelas.”
Percebeu o faxineiro que, ao contrário do que poderia imaginar, o seu intelecto se mantinha aceso, investigando os problemas da hora, por certo mesquinhos, mas que não se definiam absolutamente, por mais que ousasse transformar o seu poder de ver além daquele plano a que estava habituado. Pensou nas informações colhidas nas obras espíritas e reconheceu que espíritos mais adiantados teriam o poder de avaliar com precisão o nível de higienização em que se encontrava o corredor antes e como estará apresentando-se depois.
Então, lhe ocorreu outra possibilidade:
“E se, tal como na Terra, existam também aqui um microcosmo de criaturas de pequeníssimas dimensões, bactérias e micróbios, cuja ação do produto químico consiga exterminar?”
Fez a pergunta e se viu encalacrado diante de um problema muito maior:
“Como é que algo pode ser exterminado, se, neste ambiente, não existe morte, destruição corpórea, entrega da alma a Deus, como eu diria na condição de sacerdote? Não vejo saída para a existência dessas insignificantes criaturas a não ser atribuindo a sua constituição a uma ato de vontade dos irmãos, realizando, portanto, algo com o plasma que somos capazes de manipular, porque...”
Ia dizer consigo mesmo que seria fácil construir algo perverso, porque sabia que, nas trevas do Umbral, os inimigos lançavam uns contra os outros todo tipo de projétil que eles mesmos plasmavam. Apenas não atinou qual seria a utilidade desses espécimes deletérios, já que, para manter-se o equilíbrio natural naquele ambiente totalmente construído pela força da mente dos espíritos mais importantes, não se precisava de algo que forçasse doenças a obrigar os seres ali concentrados a tomarem remédios e até a se internarem para tratamento físico do perispírito. Lembrou-se de que estivera sob cuidados médicos tanto tempo e que tomara uma quantidade enorme de medicamentos da mais variada espécie, mas todos para corrigirem problemas inerentes a disfunções, a lesões, a desvios de soros e de líqüidos ou humores que inundavam regiões onde seu efeito era ruim.
“Não, ainda que o ambiente pudesse ser infestado de corpúsculos prejudiciais aos nossos corpos espirituais, os causadores desses transtornos não teriam acesso a esta casa, absolutamente defendida por moderno sistema eletrônico capaz de identificar o tônus moral de qualquer indivíduo. A limpeza que estou fazendo não é para debelar esse tipo de maldade.”
Era hora de voltar à saleta e ele o fez com satisfação, porque suas costas começavam a acusar o esforço inusitado. Esse foi o motivo de novas reflexões, porque Adonias não poderia imaginar jamais que sua estrutura mental estivesse tão próxima dos tempos de mortal, tendo ainda reflexos herdados da outra vida.
Aí, atinou com uma situação, no mínimo, angustiante: o fato de ter de conviver com suas meditações naquele corredor durante os próximos seis meses. Ponderou que necessitava urgentemente de elaborar um plano para ocupar aquele tempo mentalmente, mesmo que fosse para “reler” todas as obras que sabia de cor, analisando-as sob prismas diferentes.
“De qualquer modo, concluiu, o chão há de ficar sempre brilhante.”



16. REFLEXÕES

Como Adonias tinha outras duas atividades a que dar conta, seu tempo diário para efeito de seu aprimoramento moral, através do desempenho de ajuda direta e material, dividia-se pelas três, de sorte que o tédio do corredor recebia a contrapartida das ações mais efetivas relativamente às funções no hospital e no departamento de escrituração.
Recolhido ao dormitório, pôs-se a meditar a respeito dos trabalhos do dia, lamentando que não se houvesse adaptado tão bem no setor de limpeza da ala de cursos, quanto o fizera como ajudante no transporte de doentes e no de auxiliar de escritório.
“É bem verdade que, no primeiro dia, as coisas parecem mecânicas demais, como com meu balde, meu pano e minha vassoura. No entanto, apesar de haver passado azeitando as engrenagens das macas, verificando seu estado geral e pondo-as em condições perfeitas de uso, tenho a certeza de que não haverei de ficar seis meses fazendo apenas isso, que não são tantas as macas que precisaram, realmente, de cuidados. Também no escritório, não vou ficar tanto tempo verificando cada mesa dos tarefeiros técnicos, para ver se todos os itens se encontram preenchidos, desde a falta de etiquetas, de papel de impressão, de tinta na impressora e mais os vinte e sete tópicos da descrição que recebi. Pelo menos, nestas duas funções, não se exige silêncio absoluto, ainda porque os ruídos externos das lamentações dos irmãozinhos sofredores e a azáfama dos elementos do escritório, me permitem cantar aqueles salmos com que, no convento, eu ajudava o tempo a passar.”
Esses pensamentos eram uma espécie de devaneio, mas Adonias foi capaz de perceber que serviços iguais ao que desempenhara naquele dia haveria sempre e que não bastariam seis meses para terminar uma única tarefa:
“Se não tomar cuidado, vou entrar em parafuso numa rosca sem fim, porque não vi nem em Levi, nem em Noronha, nem em Domício, chefes interessados em saber se estou adquirindo aquelas qualidades de que senti falta em minha composição moral. Achava que precisava trabalhar diretamente com as entidades necessitadas de algum apoio específico e me abriram três vagas onde não tenho nenhum contato com quem quer que seja, impedido até de conversar com os meus colegas, e isto justamente no momento em que os serviços dão uma trégua. Se acontecer de me enjoar destas tarefas mesquinhas, vou ter de pedir que me substituam, sem ter alcançado nenhuma transformação positiva no sentido visado.”
Naquela primeira noite, após estafante dia de trabalho, o cansaço não permitiu que o nosso filósofo religioso desse asas muito largas aos vôos de suas reflexões, dormindo logo em seguida com a consciência imersa em sombrios pesadelos diretamente extraídos de sua última passagem pelo Umbral. O que lhe valia, para que não repetisse os sofrimentos, era, justamente, o fato de se manter avisado de que se tratava apenas de um sonho ou algo equivalente, sabendo intuitivamente que estava sob o resguardo da Igreja Cristã.
Acordou um tanto angustiado, perguntando intimamente se a trabalheira do dia, somada aos reveses da noite, estaria sendo útil para alguma coisa, porque, de repente, criara uma situação de necessidades e de obrigações totalmente diferente da situação de estudioso autodidata de dois dias atrás.
“Estou-me vendo pressionado pelo relógio, coisa absolutamente ilógica neste ambiente em que a eternidade é prisma existencial. Se me contassem que alguém pudesse estar submisso a um trabalho semi-escravo no etéreo, eu, com certeza, não acreditaria. No entanto, tenho apenas estas duas horas diárias para preparar-me para a exposição sobre os evangelhos, tempo, aliás, que devo ocupar também com meu próximo curso, se quiser formar-me socorrista, para não perder o elã e o diploma alcançados no curso do irmão Maciel. Além do mais, preciso resolver sozinho todos os problemas que me afetarem no âmbito de minhas perplexidades, impedido até de consultar os trabalhos arquivados na casa e as obras especializadas, porque não me sobra tempo para nada.”
Ocorreu a Adonias que poderia desistir, simplesmente, de tudo aquilo, mas ponderou que talvez alguma surpresa lhe estivesse reservada ao cabo de algum tempo, porque não seria lógico permanecer naquela modorra intelectual até o final dos séculos, ou quando o desenvolvimento das mentes tornasse obsoletos os estudos, os tratamentos médicos e as escriturações e registros. Ocorreu-lhe que, de fato, se lá permanecesse milênio após milênio, até o prédio se derruiria naturalmente, dado que a evolução atinge todas as criaturas, até as que plasmaram e as que mantinham de pé aquela construção etérea.
“Eis que as minhas duas horas deixei escapar em considerações tolas e previsíveis. Evidentemente, estou é muito preocupado com a minha escolha. Então, vou dar um voto de confiança para a sabedoria de todos os meus amigos, mui amigos, e me manter nestas funções, para o que devo prescrever-me, como atitude de prudência e sabedoria, um estado de resignação e humildade, caso contrário vou afogar-me em minhas próprias lágrimas de arrependimento. Vejo que as coisas estão mudando no sentido de me pôr alerta quanto ao aceitar, provisoriamente embora, estas tarefas que, no mundo denso da matéria, iria, no fim, chamar de alienantes.”
Foi quando lhe veio claro de dentro da memória a aversão, ou melhor, a verdadeira ojeriza relativa as presilhas com que os patrões mantinham os empregados à sua disposição, naquela situação de explorador e explorado em que os dois perdiam, o primeiro, a possibilidade de salvação; o segundo, a possibilidade do aprendizado edificante para domínio de alguma força que lhe desse capacitação para entender de fato as razões de se manter equilibrado, segundo os ditames das leis que defendiam os poderosos.
“Mas essas são águas passadas. Agora sei que nunca eu mesmo me sujeitei a nada. Eis o porquê de estar tão compenetrado desta perspectiva de um trabalho contínuo sem remuneração aparente, apenas contentando-me com o fato de ter sido recomendado pelos outros mais experientes, inclusive porque Maciel passou tanto tempo como auxiliar de pedreiro.”
Adonias quis dar seqüência a essas idéias, mas não conseguiu encadeá-las durante as horas em que passou em suas atividades rotineiras. Foi só à noite, extenuado, que pôde voltar ao tema.
Entretanto, ao observar que tão poucos acontecimentos ocorreram durante o dia de trabalho, escovando, azeitando e completando os estojos e gavetas, pensou que estava iniciando-se o processo de alienação de si mesmo, começando, ao mesmo tempo, um crescente interesse pelos quefazeres em si, e principiou a perceber que o que lhe parecera algo tão horrendo, estava exercendo a função terapêutica própria do trabalho, segundo as recomendações médicas especializadíssimas das mais modernas teorias laborterápicas, conforme ele mesmo havia encaminhado alguns jovens, na qualidade de sacerdote, para a psicanálise ocupacional. Notou que havia uma diferença fundamental, pois, no caso antigo, o aconselhamento se dera em função de um tópico importante, qual seja, o de que os pacientes desconheciam as razões psíquicas do tratamento, enquanto, no seu caso, tinha sido ele mesmo quem concluíra pela necessidade de se doar em auxílio concreto às outras pessoas, mesmo que em caráter indireto, porque tudo quanto vinha e iria continuar fazendo o mantinha sem contato com os irmãozinhos carentes daqueles serviços comunitários.
“Eu penso, após dois dias dando duro, que o melhor para mim é suspender este tipo de reflexões, estas, sim, fazendo-me dar voltas em torno de minha personalidade, levantando teses que não tenho como provar, ansiando por vencer estas primeiras fases de meu regime para emagrecer.”
Magérrimo, Adonias julgou hilariante a comparação que, de repente, lhe surgiu na memória. Lembrava-se muito bem de vários sacerdotes às voltas com a necessidade de emagrecer, por força da recomendação dos exames clínicos conclusivos, e que lutavam contra a tenacidade do hábito de comer (ele chamava na época de pecado da gula). Recordava-se de que as primeiras semanas eram duríssimas, não poucos recaindo, esfaimados, sobre pratos escondidos e à sorrelfa. Pensou também nos viciados de todo tipo, necessitados de internação em clínicas próprias, os quais eram dispensados após estarem desintoxicados, mas sem nenhuma garantiam de que não reincidiriam no vício. Adonias pensava nas drogas mais pesadas, mas se lembrou de que também o alcoolismo e o tabagismo eram terríveis coatores da vontade, verdadeiros obsessores químicos a anular totalmente o poder de reação e o poder intelectual da percepção dos efeitos deletérios também para a parte moral dos indivíduos, que passavam por uma fase dos mais completos negativismo e pessimismo em relação à sua própria capacidade de superar os vícios que os estavam matando e eles bem que sabiam disso. Avaliou que tais pessoas, apesar de serem consideradas pelos médicos como doentes, com certeza davam entrada em seu círculo espiritual de certas entidades malévolas capazes de exercer domínio sobre o livre-arbítrio delas, porque não davam ouvidos àquela tênue vozinha da consciência que bem poderia ter origem nas recomendações dos espíritos que tentavam protegê-las, em nome da amizade, do amor ou de uma benquerença universal e humanitária.
Depois que situou os infelizes nos dois planos de seus problemas, o material e o espiritual, Adonias desejou estabelecer uma comparação com o seu próprio caso, porque julgava que essas quiméricas influências do etéreo junto aos encarnados, que era como, no final de seu estágio como sacerdote, estava vendo o plano espiritual, expurgando de seu cabedal religioso todas as histórias que ouviu em criança e que também reproduziu muitas vezes em aula e do púlpito, tinham muito mais razão de ser junto aos encarnados, já que, agora, na espiritualidade, ele conhecia apenas a força positiva de seu anjo guardião, não acatando as sugestões intuitivas de seu cérebro perispiritual de que poderia estar sob as ondas vibratórias da maldade de seres muito perversos que teriam o condão de alcançar até quem estivesse resguardado numa instituição por onde transitavam seres da mais elevada estirpe espiritual.
Ficou estupefacto com essa possibilidade:
“É bem verdade que eu tenho muitos conhecimentos na área da moralidade e que reconheço que preciso retocar muitos aspectos de minha psique deteriorada por toda uma existência egoísta, porque sei que, até quando tratava com os outros, tinha meus objetivos pessoais em jogo, entretanto, pesa-me o fato de que as noções que assimilei, quase todas, saíram das obras lidas e que hoje sou capaz de reproduzir, integralmente. Eis porque é importante esta minha decisão de prestar atenção nos acontecimentos mais corriqueiros, porque, como diria Jesus, em verdade, em verdade, todos os grandes problemas da humanidade encarnada ou não acabam por resumir-se em atitudes singulares de indivíduos com maior ou menor poder decisório sobre os destinos da comunidade em que vive.”
As conclusões, percebeu logo, iam tomando o aspecto do provisório e do eventual, já que impedido estava de correr em busca do auxílio dos mais experientes. Lembrou-se da recomendação de seus três chefes, que lhe vedaram que o exercício reflexivo fosse compartilhado e se dispôs a prosseguir em suas recentes tarefas.
“Estou curioso com este poder que venho demonstrando para mim mesmo de armazenamento lúcido de todos os raciocínios. Sempre admirei as pessoas com a capacidade de se recordarem dos detalhes, das minúcias, dos pormenores, conseguindo reproduzir, por exemplo, textos integrais até de trás para a frente. Eu não treinei esse dom, mas estou muito satisfeito com ele, principalmente porque está valendo-me muitíssimo para me sentir útil através do curso que estou ministrando.”
A sonolência que o assaltou não lhe permitiu concatenar mais as idéias, de sorte que se entregou a um sono menos agitado que na noite anterior, o que lhe permitiu observar, enquanto teve o domínio de sua lucidez, que havia uma forte correlação entre a agitação do dia e os percalços da noite. Sendo assim, não temeu sonhar com o negrume do Umbral nem com as perseguições consignadas em sua memória, com a certeza de que passaria de sujeito da ação a mero espectador, talvez até com a prerrogativa de tirar algumas conclusões inéditas dentro do rol de seus conhecimentos.
As duas horas iniciais do dia seguinte foram gastas numa pesquisa na bibliografia técnica disponível, através de um fichário com a descrição dos produtos utilizados na limpeza das diferentes áreas da instituição, a partir de uma suspeita que Adonias considerou perfeitamente plausível:
“Se o chão dos corredores se apresentam limpos, com o melhor aspecto possível, e se não encontrei nenhuma vez vestígio de que por ali transitaram os professores durante as trocas de salas, com certeza é que o sistema de higienização prevê a sujeira e possibilita a absorção eficaz das partículas que perturbariam o aspecto, assimilando os agentes aos reagentes químicos do produto ali aplicado. É como se fosse um método que utiliza o princípio das enzimas, sem entretanto ser biológico, para equilibrar o meio em que se encontram, mantendo o chão sempre limpo, até que se sature de elementos nocivos. Eis porque há necessidade de, todo dia, renovar a película higiênica, a qual, de imediato, causa um aspecto ruim, como se a camada que ali se deposita desequilibrasse o meio ambiente em que está atuando. Ao passar a vassoura, provavelmente o atrito cause a catálise que desestabiliza os ingredientes prejudiciais, prendendo-os às cerdas do rústico (mas não tanto assim) apetrecho. Vejamos que surpresas podem estar reservadas numa pesquisa sobre a fórmula e, talvez, a utilização daquele líqüido.”
Poucas coisas causaram mais satisfação ao nosso amigo que o resultado de sua busca. Realmente, todo o processo de limpeza e de higienização dos diversos ambientes de toda a Igreja Cristã se encontrava descrito minuciosamente num prospecto técnico, que ele foi capaz de decifrar, apesar de alguns termos a que era refratário por excessivamente científicos. Na verdade, não atinara com tudo, mas, a grosso modo, a sua intuição se confirmou.
Foi quando uma outra dúvida lhe despontou, insidiosa:
“Muito bem, o problema do chão dos corredores eu resolvi, mas como é que as paredes e o teto se mantêm igualmente asseados, se a eles não me dedico? Será que existe alguém mais trabalhando nos mesmos locais, em outros horários, já que nunca me deparei com nenhum outro faxineiro no meu corredor?”
Essa questão foi resolvida de modo bem mais rápido, já que se atilara para a possibilidade das consultas. Através de um simples roteiro eletrônico, o computar lhe forneceu os dados de todos os voluntários e mais os contratados remunerados, sendo-lhe fácil descobrir que havia três elementos que se dedicavam a manter as paredes e o teto daquele e de outros corredores em ordem. Mais umas teclas digitadas e logo apareceu a programação completa de como realizavam eles o seu serviço, inclusive com a informação de que o horário era o noturno porque as máquinas que usavam vibravam de molde a perturbar alunos e professores, caso fossem empregadas no horário das aulas.
“Sim, senhor, eu lascando-me de refletir, imaginando tanta coisa, e tudo tão à disposição, sem mistério algum. Será que tudo nesta casa poderá receber explicações tão completas? Pelo menos, encontrei, por meus próprios meios, a solução para o meu maior problema técnico. Aliás, fui além do que iria se fosse um sujeito prático, porque teria conseguido achar as explicações, antes de efetuar um exercício muito saudável de investigação empírica de caráter meramente reflexivo. Será que esta linha de pensamentos estará verdadeiramente correta? Terei recebido a influência sutil de alguma entidade superior que me induziu a pensar de forma a adivinhar a verdade? Ou será que todo o andamento de meus raciocínios tendiam a desembocar exatamente nos conceitos tão próximos da verdade?”
Naquela hora, Adonias partiu para seu labor, assobiando uma ária de que se lembrava desde a época em que era juiz na França, quando andou freqüentando as óperas. Procurou na memória pelo nome da canção e lá achou consignado: Ritorna vincitore. Achou uma feliz lembrança e pôs na cabeça que estava progredindo, ao menos, em relação ao alívio das tensões dos problemas mais fáceis de serem resolvidos.
“Agora o que me está faltando é me concentrar no serviço, levando-o mais a sério, realizando minha tarefa com o máximo de perfeição, mas possibilitando-me, ao mesmo tempo, que a mente possa desenvolver idéias e pensamentos mais argutos quanto a não me deixar envolver tão subjetivamente, quando os temas requererem soluções práticas. O sujeito mais traquejado, como pretendo vir a ser em breve, não teria aproveitado as formulações provisórias até atinar com a definitiva, porém, teria dado um sentido à sua existência mais coerente com a necessidade de que tudo se adquira, em função dos conhecimentos necessários para a apreensão e o domínio desta e de outras realidades, conforme a dimensão em que formos imergindo, de maneira isenta de preocupações, como se as coisas nos afetassem diretamente, quando nos frustramos com as primeiras tentativas sem fundamento, de que tudo se adquira, meditava eu, em função de um sentido representativo pragmático.”
Nesse momento, estava de posse de seus instrumentos de trabalho, de modo que pôde conceber a idéia de que os raciocínios estavam recebendo interferências do campo de atenção, motivo pelo qual as últimas ilações lhe pareceram bastante confusas. Desejou reformulá-las mas não conseguiu, entretendo-se, então, com exclusividade em desempenhar o melhor possível aquele serviço que lhe parecia haver crescido em importância e valor. Em outras circunstâncias, teria colocado sob o escrínio de sua perspicácia lingüística se era correto pensar em importância e valor, porque as palavras poderiam conter uma diferença de significado muito sutil relativamente ao contexto em que foram empregadas, mas, envolvido com sua tarefa, deixou de lado, como inócua, essa discussão acadêmica, preferindo manter sua atenção pregada no solo.
Ao passar apressado por Levi, além do habitual até amanhã, ouviu um muito obrigado e também um parabéns!, expressões que lhe evidenciaram que estava sob a vigilância de seu superior. Sorriu satisfeito, acenou, fez um gesto que tinha o tempo contado e disparou, assobiando ainda, rumo à ala hospitalar.



17. OS MILAGRES E AS CURAS DE JESUS

Tendo chegado a véspera de mais uma aula, Adonias precisou mudar o foco das preocupações, a bem da verdade, preocupações muito atenuadas, para formular o plano da exposição e dos trabalhos que demandaria de sua turma. Recordou-se dos conselhos dos amigos para que falasse sobre os milagres e as curas realizadas por Jesus, de modo que precisou mergulhar fundo no texto de Kardec, A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, a partir do qual começaria a discutir os pressupostos espíritas a respeito do tema.
O que primeiro lhe chamou a atenção na obra do Codificador foi o enfoque científico dado aos temas, todas as explicações girando em torno dos fenômenos naturais, a partir do princípio fundamental de que os milagres, propriamente ditos, seriam meras contravenções e suspensões das leis de Deus, o que Kardec assevera, raciocinando logicamente, pois nem o próprio autor teria qualquer razão para abjurar a perfeição primitiva para lhe dar outra feição menor, para o efeito do espetáculo para a gentinha encarnada, nem poderia mais ninguém revogar uma lei universal. Seriam sinais simplesmente de um poder maior e eterno, que qualquer observação a se extrair da própria criação, através da natureza, conduziria à mesma conclusão.
“Se eu me ativesse às noções do sacerdote católico que fui, teria de sofrer o impacto das contradições inerentes ao fato de que, do lado de cá, muito da força de demonstração de um poder superior ou transcendental ao humano não nos causa qualquer bulício na alma, mesmo porque várias religiões cristãs ainda utilizam o maravilhoso evangélico para submeterem as vontades à condição de fantoches dos dogmas que não se discutem.”
A bem da verdade, o prisma evangélico estava virando fumaça na mente do professor, a partir do momento em que pôs seriamente em dúvida a autenticidade dos relatos, atribuindo-lhes um valor positivo para a formação da igreja primitiva, porque as mentalidades necessitavam crer em que Jesus não era um ser ou espírito comum, mas que era, como lá se assinala numerosas vezes, o próprio filho de Deus, portanto, de mesma natureza que o Pai celeste, ou seja, Deus ele mesmo. Ora, a visão kardequiana, extraída dos depoimentos dos espíritos superiores que lhe ditaram as respostas às questões de toda natureza que ele lhes ofereceu, diziam que Jesus era um espírito de muito adiantamento, um administrador espiritual com a responsabilidade do destino de bilhões de seres humanos e de muitíssimos mais desencarnados, que desceu à Terra, num momento oportuno, entre um povo selecionado por razões culturais e históricas, para trazer aos homens mais um aspecto da verdade, no estrito limite da compreensão deles.
“Vamos dizer que os homens agiam intuitivamente em matéria religiosa ou de crença ou de culto, mas seguiam uma legislação deturpada por interesses materiais, forçados às práticas de caráter exterior, sem se deixarem impregnar pelos reais valores morais que os elevariam no plano da espiritualidade. Jesus veio, então, para demonstrar que a prática do bem, por amor a Deus e aos homens, é essencial para a vida de além-túmulo. Era como eu estava agindo em relação a limpar o que me parecia absolutamente limpo. Depois, eis aí a presença de Kardec, precisei elaborar cientificamente, pragmaticamente, um pensamento que me fizesse compenetrar da necessidade do trabalho que estava executando. Muito bem, agora é chegado o ponto crucial em que a porca torce o rabo, qual seja, aquele em que a minha filosofia há de perecer, porque, em seus aspectos empíricos, eu peco contra a verdade, diante de classe formada por uma quase totalidade de irmãos dedicados aos diversos ramos das ciências. Se eu lhes for contar como é que Jesus transformou água em vinho, como é que multiplicou peixes e pães, como é que andou sobre as águas, como é que curou cegos de nascença, como é que fez paralíticos andarem, como é que ressuscitou mortos e expulsou demônios, com certeza irão querer saber que recursos naturais ele utilizou, o que redundará, da minha parte, em mera indicação bibliográfica, empenhando-me para citar algum texto de nossa esfera, para não lhes indicar que as soluções têm de caber em cérebros sujeitos a uma carapaça dura de matéria corpórea terrestre.”
Parou para respirar, que o fluxo das idéias era velocíssimo e os problemas se superpunham, sem que se definissem soluções para eles. Deixou-se levar pela imaginação, muito desejoso de descobrir onde se encontrava ao tempo de Jesus e como lhe haviam chegado as boas novas de sua pregação.
Viu-se, então, metido numa veste militar, espécie de uniforme de guerreiro a pé, falando um latim deturpado com sotaque gaulês, altamente interessado nos espólios das batalhas. Ouviu, sim, falar do Nazareno, mas não lhe pareceu que nada do que ouvira tinha substância; eram ondas de superstição que ameaçavam depor os deuses do Olimpo.
Adonias se aborreceu com isso, porque queria era ter presenciado alguma exposição ao vivo do divino mestre.
“Será que não existem registros mnemônicos arquivados que possamos reproduzir por meio digital, com as imagens masterizadas e reconstruídas por computação gráfica?”
Percebeu imediatamente que a pergunta incidia numa pesquisa substanciosa para sua aula, pois, se conseguisse recuperar algumas passagens públicas da vida de Jesus, poderia ilustrar a palestra com assertivas incontroversas, sem aquelas suspeitas de fraude nos textos evangélicos.
Percorreu todos os índices da grande biblioteca da Igreja Cristã e assinalou várias obras que tratavam do tema, principalmente do ponto de vista dos processos técnicos para restauração não apenas da época de Jesus mas de todos os tempos, colhendo-se das testemunhas os depoimentos mnemônicos, transformando-os, após serem escoimados das interferências subjetivas, numa fita límpida dos fatos em foco. No entanto, não havia, na biblioteca, uma única fita assim preparada, porque, segundo uma informação repetida diversas vezes, não era conveniente que espíritos ainda tão imperfeitos dominassem essa matéria, podendo prestar-se ela a desvios importantes da personalidade, pelo alto estímulo ao orgulho e à vaidade, perante os irmãos atrasados, incapazes de analisar objetivamente os fatos ou como agente de poder. Numa das obras, o autor aventava a hipótese de que somente quando a entidade espiritual perdesse totalmente o interesse pessoal pelo valor das informações é que teria acesso ao conhecimento integral de toda a verdade histórica, para uso superior quanto às definições próprias da lei de ação e reação, conjugadas com as demais, com a finalidade de tornar previsíveis os acontecimentos, por mais complexos pudessem ser. Mas, lá se assinalava também, que a consciência mesma desses seres mais adiantados os impedia de trazer para as camadas espirituais mais atrasadas os conhecimentos por eles adquiridos. Às vezes, dizia o autor, uma ou outra notícia desse tipo se abria, em circunstâncias especialíssimas, para mentes predispostas a aceitar as limitações de seus pares, a fim de não causar-lhes distúrbios emocionais que poderiam redundar em prejuízo para eles ou para quem estivesse em condições de vaticinar qualquer coisa.
Adonias não incluíra em seu projeto inicial a discussão das predições, conforme lera em Kardec, mas percebeu que o tópico poderia preencher mais alguns minutos de sua exposição, ajudando-o a levar a turma interessada até dar o sinal. Sendo assim, resolveu que o título de sua palestra seria Os Milagres, as Curas e as Predições de Jesus.
Nesta altura, estava quase emendando a noite ao dia, de sorte que resolveu deixar que as idéias repousassem, dando trégua também ao corpo, a fim de que se energizasse de novo, para as tarefas do quarto dia de voluntariado.
De manhã, acordou como se não tivesse dormido, ou melhor, como se houvesse deitado absolutamente descansado, sem nenhuma necessidade de propiciar-se um hiato nas atividades.
“Esta sensação é tão plena de bem-aventurança física, que até posso imaginar como as criaturas mais avançadas permanecem sem pausa em suas ocupações durante milênios, como se dormissem de pé. Mutatis mutandis, é como eu posso realizar as minhas funções mecânicas, enquanto o meu cérebro se dedica a organizar a conferência. Acho que vou tentar permanecer lúcido em relação ao meu empenho intelectual e desperto também para os problemas a serem resolvidos instante a instante, durante a jornada.”
De fato, o ponto de concentração no desempenho das tarefas simples e mecânicas foi alcançado simultaneamente à estruturação que foi elaborando alternativamente, mas com uma velocidade mental surpreendente, nunca antes alcançada.
“Se eu continuar praticando este tipo de exercício, em breve poderei dividir meu campo de atenção e de prontidão em duas ou mais áreas de aplicação efetiva de meu poder intelectual. Na Terra, diria estar utilizando uns cinqüenta por cento de minha capacidade mental, ou melhor, que estaria desenvolvendo um processo físico de utilização dos dois hemisférios do cérebro, abrindo, para o mesmo canal de consciência, as informações colhidas em cada um deles e subsidiando-as, em forma de raciocínios e também de sensações advindas do mundo externo, sem estabelecer nenhuma confusão, cada uma em correlação perfeita com a fonte de elaboração das idéias e pensamentos.”
Adonias alegrou-se com o rumo em que iam as coisas mas refreou o entusiasmo, reconduzindo sua atenção para o trabalho e para a esquematização de seu plano de aula.
Tudo fez para logo enviar aos alunos o roteiro, definindo como trabalho prévio que lessem a obra de Kardec relativa ao tema. Imaginou um rol de questões, mas preferiu deixar as perguntas para serem respondidas de forma lúdica, durante a aula, caso contrário, era possível que a motivação diminuísse por causa de certas fixações e teimosias oriundas de alguns possíveis preconceitos decorrentes dos pontos de vista adotados sem a supervisão do orientador.
No dia seguinte, devidamente dispensado das tarefas voluntárias, dirigiu-se à ala dos cursos, exatamente no corredor em que atuava como faxineiro, meditando que havia uma boa razão para que os colegas e os alunos não topassem com ele, no momento da limpeza, porque poderia haver conclusões apressadas, como a de sua necessidade de humilhar-se fisicamente, ou porque ele mesmo pudesse sofrer o impacto de uma idéia infeliz, qual seja, a de que a sua atividade o remetesse para uma condição de humildade acima da humildade dos outros, consignando-se, então, uma demonstração involuntária de superioridade dele ou de inferioridade alheia. No mínimo, quem fosse mais ingênuo poderia concluir que o professor não estava totalmente equilibrado, em condições, portanto, de assumir um posto de responsabilidade intelectual, estando com débitos em área que deveria estar completamente sob controle, e isso seria um ponto negativo que, para ser transformado em positivo, iria demandar um esforço inútil, dado que o problema seria de quem elaborasse a hipótese.
Teria refletido sobre outros aspectos que lhe afloravam no cérebro, mas se viu cumprimentando a classe e examinando as presenças assinaladas na tela de seu computador, verificando que havia cem por cento de freqüência e mais vinte alunos novos, devidamente registrados e confortavelmente instalados.
Ao derredor, nos painéis do fundo, outra paisagem se desenhava, conforme recomendação expressa de Adonias. Viam-se ali as imagens de uma floresta fechada em toda a volta, sem som e quase sem cor, apagadas figuras de vegetais, como verdadeiros borrões impressionistas. Mas o clima da turma nem por isso se diferenciava daquele da palestra anterior, não havendo registro de estranheza da parte de nenhum dos estudantes.
Adonias agradeceu a presença de todos, cumprimentou os novatos e estabeleceu uma regra básica para aquela aula:
— Somente vou atender e solicitar a participação, durante o período de exposição inicial, dos que declararem que prepararam a lição segundo a orientação publicada. Os que não se dispuseram ao exercício preliminar queiram registrar o fato em sua ficha.
Para surpresa do exigente mestre, nenhum nome demonstrou haver desinteresse.
— Parabéns, todos os meus amigos, inclusive os que comparecem hoje pela primeira vez, estão habilitados para a minha argüição. Neste caso, fico muito feliz e peço que dediquem dois minutos para refletirem a respeito da seguinte proposta de trabalho: Quando Jesus realizou os seus chamados milagres, estava ciente de que as conseqüências deles iriam repercutir num futuro distante dois mil anos de sua época? Que milagres ele realizaria de novo, se estivesse reencarnado na Terra, na condição de messias?
Ao professor o silêncio da classe não iludiu, porque sabia que os alunos se comunicavam entre si por via eletrônica, quando não telepática. Sorrindo interiormente, pensou:
“Se eu prestar atenção, vou ouvir um burburinho metafísico!”
Mas o tempo passou rapidamente, tendo em vista seu interesse em avaliar as expressões faciais de um por um. Deduziu que se concentravam nas questões e ficou muito sossegado por não receber, direta ou indiretamente, através de alguma esquisitice referida por escrito, nenhuma estranheza quanto à sua perquirição.
— Muito bem, queridos. Quem deseja responder primeiro? Devo avisar que tem que estar disposto a compreender que sua resposta é provisória.
Adonias pensou que toda a classe iria requerer a primazia, mas apenas dez alunos se habilitaram.
— Vejo que entre os que se propõem a falar estão alguns meus conhecidos. Então, sem que isto vá constituir-se em regra, vou chamar o novato Silas, para que fique em evidência para os colegas.
Levantou-se um rapaz mas, imediatamente, foi avisado que deveria permanecer sentado. Então, disse:
— Prezado professor, muito prazer. Saúdo também os meus colegas e vou logo afirmando que, se acertar a resposta, haverá de ser por puro e imenso milagre. Pois eu acho que Jesus nem sabia que suas proezas nesse campo iriam merecer tanto destaque. Não me censurem a ousadia: ouçam as minhas ponderações. Desde logo, devo afiançar que o principal não era deixar o povo impressionado com atos que poderiam passar por meras prestidigitações. Acho que Kardec foi incisivo quanto a isto. O principal era o ensino moral, era a ênfase à mudança de hábitos, para a aquisição dos valores mais importantes, uma vez que, se a inferioridade física fosse fator de limitação para o adiantamento espiritual, o mundo da carne não consignaria esse fato como recurso para a aplicação de diversas das leis naturais. Sendo assim, mesmo que Jesus houvesse solicitado aos apóstolos e discípulos que obrassem segundo o seu exemplo, essa parte estaria restrita aos atos concernentes à principal das virtudes, ou seja, à caridade, porque a pregação do amor, sem a correspondente prática, não teria qualquer efeito junto aos homens e mulheres a quem deveriam chegar os conceitos superiores do evangelho. Eu acho, por exemplo, que, se Jesus soubesse que a anunciação do anjo à sua mãe, preparando-a para excelsa gestação, fosse ficar registrada, daria um jeito de impedir o fato, determinando que Maria calasse a informação. Mas os evangelistas estavam empolgados com as notícias que redigiam, de sorte que, em havendo, nas velhas escrituras, o chamado Antigo Testamento, o relato de muitos fatos miraculosos, não iriam querer que os seus escritos, nesse aspecto, quedassem em segundo plano. Dada a semelhança de alguns milagres entre os registros anteriores e os modernos, posso até suspeitar de que alguns foram introduzidos na vida de Jesus por conta de torná-lo verdadeiramente o redentor prometido ao povo judeu. Se o meu caro professor tivesse insistido, neste início, sobre o tópico das previsões, eu faria referência a essas promessas e citaria algumas passagens elucidativas de como os textos bíblicos se refletiram na vida de Jesus, para uma comprovação sagrada de que era ele mesmo o filho de Deus enviado para a salvação dos hebreus. Neste ponto, quero deixar bem claro que sei da existência, em planos mais elevados, de cópias das recordações dos que presenciaram os fatos da vida de Jesus, de maneira que levantar hipóteses a respeito da veracidade dos relatos passa a ser mera especulação precipitada. Sendo assim, respondo pela negativa, ressalvando a condição meramente material do Mestre, que teria impressos no cérebro (se quiserem poderemos outro dia estudar como se dá essa aquisição em seus aspectos técnicos) o que ele mesmo, na condição de puro espírito, ali teria deixado em estado latente, ou seja, o conhecimento prévio das conseqüências de suas atividades benemerentes. Ainda agora correm as notícias entre os mortais de vários médicos de plantão na espiritualidade agindo através de diferentes médiuns. Sei que a pergunta não trata das curas, mas gostaria de incluir esse elemento para enfatizar que não foi Jesus quem fez a distinção de suas providências em milagres, curas e predições, porque, para ele, certamente, o que tinha real valor era a sua presença a se infiltrar coração e mente adentro de todos os que nele viam um pastor divino, cuja única ameaça se concentrava no perdão dos pecados com a exigência de que o pecador não mais pecasse. Por tudo quanto disse, devo ter deixado claro que, vindo de novo à Terra, Jesus repetiria tudo o que fez, ainda que reconhecido fosse como o mesmo que, apesar de sua bondade, terminou a vida no madeiro vil dos criminosos.
Silas fez menção de respirar e Adonias aproveitou aquele instante para assumir o controle da aula:
— Não sei como é que atinar com a resposta exata pudesse ser um puro e imenso milagre para o nosso Silas. Mas como esta fase da aula não dá abertura aos debates, vamos a outra questão, a ser respondida segundo o mesmo sistema de reflexão por dois minutos e o mais. Ei-la: Se Jesus escrevesse a sua própria história e, por uma cadeia mediúnica, desde a esfera mais elevada até chegar a um médium encarnado, a transmitisse aos homens, mereceria a confiança dos leitores? Devo alertar que existe uma obra cujo título registra: A vida de Jesus ditada por ele mesmo. Nesse caso, que importância daria ele aos efeitos que, na mente do povo, repercutiram miraculosos?
Neste ponto, Adonias se ensimesmou, voltou no tempo, vestiu de novo as roupas de soldado adido ao exército romano e se pôs em peregrinação bélica, a ver se conseguia um espólio moral da época em que Jesus fazia sua pregação. Nesse exercício, gastou alguns átomos de segundo e logo percebeu que os valores do dia-a-dia do militar tinham por princípio rígida e ameaçadora disciplina, o castigo do erro a pairar sobre as cabeças dos desavisados, alcançando algumas vítimas inocentes, segundo as fórmulas do cortar o mal pela raiz e do lavar as mãos, neste caso jogando a responsabilidade sobre quem desejasse assumi-la. Percebeu que, então, concordava com tudo aquilo, porque a força estava de seu lado, de modo que os povos conquistados, submetidos e escravizados, se não anuíssem com a dominação do mais poderoso, também não tinham que reclamar de tratamento injusto, uma vez que os inimigos, ainda que conquistadores, se impunham. Mas o povo romano era arguto e muito mais civilizado que a maioria dos estrangeiros, dos bárbaros, como diziam, copiando a expressão de outro povo conquistado, o povo grego, de sorte que, muitas vezes, o dominador também era um benfeitor. Não no tocante aos hebreus, que esses eram altivos e só se dispuseram a aceitar a administração romana quando perceberam que tinham o que lucrar com ela. Tanto fizeram que Jesus foi transformado em inimigo, porque abalara alguns dos fundamentos teóricos da religião mosaica em voga para sustentar no poder os fariseus, os saduceus, os doutores da lei, os escribas e caterva, que se mantinham incólumes quanto aos bens temporais, justamente os de que Jesus mandava dispor, caso quisessem ter mérito perante o Pai.
Iria mais além o professor, não tivesse transcorrido o tempo determinado para a resposta.
— Vamos ver, agora, quem deseja manifestar-se. Vou dar prioridade para quem tenha lido A vida de Jesus ditada por ele mesmo.
Ninguém.
— Ainda bem que, dentre os meus queridíssimos alunos, nenhum leu essa obra, porque também eu não me dei a esse trabalho. Será que alguém responderia à questão proposta, englobando essa condição de quase nenhuma repercussão da autobiografia, à vista de um desinteresse incompreensível, já que se trata de um testemunho autêntico, a se dar crédito ao título, sabendo-se que é obra mediúnica e, portanto, perfeitamente passível de realização superior?
Desta feita, três alunos assinalaram seus nomes: Silas, André e Renato.
Adonias gostaria de dar oportunidade a alguém que não tivesse ouvido ainda, mas, para não demonstrar preferência, deixou que os três decidissem quem responderia. Resultou que Renato foi escolhido, com um certo alívio para Adonias, pois lhe parecia que André ou Silas iriam desfechar algumas ponderações com certos aspectos eruditos e negativistas.
— Vamos lá, Renatinho, coragem!
— Mestre querido, bons companheiros, na verdade a coragem de que preciso é a de enfrentar posteriores acusações da consciência, por me haver atrevido a acatar a determinação dos meus dois colegas, ambos, conforme já demonstraram, muito mais aptos a analisar a hipótese levantada por nosso mentor. Entretanto, dispus-me, é bom que todos saibam, a receber o influxo de informações dos dois colegas e de outros que também se prontificaram a ajudar-me, de sorte que a minha exposição tenderá a fazer confluir para uma única opinião a versão de vários e ilustres companheiros. Quero assinalar que este enorme intróito visa a dar-me um pouco mais de tempo para estruturar uma resposta sintética e o mais próxima possível do máximo que temos capacidade de concluir. Sendo assim, passo a desenvolver a seguinte tese: Se Jesus escrevesse a sua própria história e, por uma cadeia mediúnica, desde a esfera mais elevada até chegar a um médium encarnado, a transmitisse aos homens, não mereceria a confiança dos leitores. A bem da verdade, não mereceria nem a nossa confiança, pelo simples fato de que não nos parece nem lógico nem plausível que o Mestre se preocupasse em recuperar uma vida antiga, para um povo que necessita desenvolver seu senso moral, através da realidade das comunicações que recebe do plano da espiritualidade, incentivando-se para a captação de mensagens mais simples, destinadas a comentar as noções mais elementares das leis de causa e efeito, de ação e reação, de trabalho, de amor e de caridade. Qualquer informação no sentido de elucidar os anos obscuros do Senhor esbarraria em sérios percalços científicos, porque logo os estudiosos iriam realizar questões de caráter paleontológico, antropológico, histórico e geográfico, desejando descobrir em sítios arqueológicos as novidades assinaladas, porque, sem a comprovação material dos feitos narrados, tudo quedará no plano das possibilidades, das probabilidades, das hipóteses mais ou menos racionais, tudo isto a demandar verbas de bom quilate, estas muito mais do interesse dos pesquisadores, haja vista o que ocorreu aos manuscritos encontrados perto do Mar Morto, os quais verteram dos cofres públicos para algumas burras particulares uns bons trocados. Em que pese a importância da vida de Jesus, hoje em dia, consoante deixei subentendido, o espiritismo, em suas diferentes formas, é que deve assumir a bandeira das virtudes, levando adiante o ideal cristão. No mínimo, caríssimos colegas, é essa a tarefa sagrada que nos caberá, em um futuro não muito remoto (aqui falha a minha capacidade de previsão), porque a volta de Jesus, apesar de pleiteada por muitos, não terá um significado diverso daquele que se encontra assinalado nos evangelhos e que já mereceu ser comentado de maneira assaz ilustre e profunda pelo codificador da doutrina, Alan Kardec. Pegando a presa pelo rabo, para quem evoluir e, um dia, estiver isento de sentido crítico, quanto aos comentaristas terrenos e etéreos da vida e da obra de Jesus, sempre haverá o recurso de colocar a fita mnemônica citada pelo colega Silas, para presenciar Jesus infante, jovenzinho, adolescente, maduro, a fazer isso e aquilo, sem, contudo, se deparar (ou deparando-se, conforme o nível de elucidação intelectual e domínio emocional da pessoa) com Jesus imerso em seus pensamentos mais sutis e sublimes, tratando de temas cujo teor não temos condições de avaliar, com seus assessores diretos no campo da espiritualidade, já que seus apóstolos, ao menos naquela encarnação, tinham a mentalidade muito pouco acurada filosófica e religiosamente. Tenho dito.
— Benedictu, carissime! — exclamou, em arremedo de mau latim, o professor, desfazendo-se de sua espada e de seu escudo. — Para a próxima aula, deixo a seguinte proposta de trabalho: Se, sob certo aspecto, os feitos de Jesus se acham ultrapassados, porque a ciência espírita definiu claros parâmetros para a explicação natural daqueles fenômenos que, aparentemente, suspendiam os efeitos da legislação divina, o que terá sobrado da pregação do Cristo, além da confirmação das principais normas mosaicas e de seus exemplos superiores de vida? Advirto-os sobre o fato de que os evangelhos desempenharam papel importantíssimo para a fixação do cristianismo como critério de fundo religioso. Também devo sugerir-lhes que me respondam por escrito os que desejarem encerrar o curso, já que a nossa meditação nos levou a raciocínios que extravasaram dos limites dos simples conhecimentos dos textos, acreditando eu que, nesta altura, todos vocês estejam aptos a repetir, autor por autor, cada um dos evangelhos. Aos que estão despedindo-se destas aulas, meu abraço particular e a minha mais subida emoção por verificar que dei um impulso efetivo para um aprendizado substancioso dos ensinos de Jesus. A próxima aula se dará na próxima semana, mesmo dia e mesma hora, nesta sala, agora com decoração mais festiva, já que a floresta inexpugnável se tornou um jardim colorido, com suas flores, e alegre, com o gorjear dos pássaros, a indicar que tudo que nos é desconhecido se assemelha aos mistérios impenetráveis contidos na escuridão da mata fechada, ao passo que, quando deciframos os enigmas, as coisas vão assentando-se de forma aprazível e feliz. Até mais ver, queridos.



18. FERNANDO

Mal Adonias saiu da sala, topou com Alice, Adão e Anésio, que o esperavam. Ocorreu-lhe, logo, que haveria novidades. Antes, porém, que ele manifestasse estranheza, foi Anésio dando-lhe os parabéns:
— Que belo encerramento de atividades, querido professor!
— Você acha que todos vão responder por escrito e desligar-se do curso?
— Sem dúvida, porque a turma foi bem orientada no sentido de assumir a responsabilidade pelos estudos nessa área. Digo mais, e eu acho que Adão concorda comigo, que, doravante, serão excelentes alunos quaisquer venham a ser seus interesses.
Alice acrescentou:
— E eu acho, bom amigo, que você irá receber uma nova turma, porque tenho sentido que a sua fama está firmada.
Adonias se regalava, como se tais palavras lhe afagassem, não o ego, que ele fazia questão de sufocar, mas o ideal de caridade que julgava amortecido. Perpassou-lhe pela mente que poderia ser já o resultado dos trabalhos manuais, mas rejeitou a intuição por prematura. Então, quis demonstrar modéstia:
— Ora, vamos! Três aulinhas e já o povo corre para mim... Acho que fiz tão pouco.
Alice reiterou:
— É que você trata de um tema de interesse. Por mais que as pessoas leiam Kardec, na crosta ou no etéreo, sempre fica a suspeita de que se está ofendendo a Jesus, porque a fé e tudo o mais perde o status, a categoria de dogma e passa a fluir diretamente do seio das leis naturais. Mas, ao saberem que você foi sacerdote católico, que busca ainda em Jesus suas forças espirituais, o fato de respeitar os cânones e os postulados do espiritismo de Kardec o eleva na consideração das pessoas que gostariam de entender melhor o cristianismo, sob o ponto de vista primitivo e sob o ponto de vista científico. Você está tornando-se, assim, um modelo, um exemplo, um paradigma, um símbolo...
Adão interrompeu a longa peroração, porque percebeu que os encômios já não estavam sendo os do público mas da moça apaixonada:
— Minha filha, querido rebento de minhas ânsias paternais terrenas, não vá adiante...
Foi Adonias quem se pôs de orelha em pé e obstruiu a manifestação de seu protetor:
— Eis uma revelação que eu não esperava. Por que não me disseram antes que são pai e filha?
Anésio assumiu a obrigação do esclarecimento:
— Pai, filha e avô, porque Alice é minha neta. Mas não confunda: Adão é, ou melhor, foi meu genro, não meu filho. Nós não lhe citamos o fato antes por uma razão que você irá entender.
— Por favor...
— Acontece que os vínculos sangüíneos poderiam ter para você uma conotação diversa do real afeto que lhe nutrimos; poderia parecer-lhe que só o estávamos atendendo por rogo ou por defesa dos interesses sentimentais de nossa menina. Todos os nossos atos perderiam o efeito socorrista e passariam a ser tidos como de comiseração ou compaixão, não pelo ser que você é, mas pelo que representa para Alice. Não quisemos arriscar-nos e nos congratulamos por termos tido sucesso, tanto que aprendemos a considerá-lo verdadeiramente no âmbito de nossa família, apesar de, historicamente, sempre nos situarmos em congregações carnais diferentes.
Adonias estava perplexo. Bem que desejara reconhecer tais personagens nas várias existências corpóreas, sem sucesso, porém. Agora, se via diante de algumas personagens meio apagadas em sua memória, ninguém que lhe tivesse chamado particularmente a atenção. Imaginou, de relance, que a deficiência era dele, incapaz de reconhecer os méritos alheios, por causa de seu acendrado egoísmo, orgulho, vaidade. Mas não teve tempo de explorar esse veio de seus relacionamentos, limitando-se a abraçar cada um dos amigos, enlaçando Alice pela cintura, momento que percebeu um forte movimento emocional a indicar uma agitação íntima de certa importância. Ia elaborar uma pergunta, quando Anésio falou:
— Adonias, temos notícias de seu pai, Fernando. Prepare-se para uma agradável surpresa. Ele está na ala hospitalar desde ontem. Nós só não o avisamos antes porque não desejávamos perturbar-lhe a exposição de agora há pouco.
Adonias fez um gesto para que os demais o ajudassem a restabelecer seu equilíbrio mental e sentimental. Agoniou-se um átimo de segundo, não pela notícia em si, nem porque tivesse ainda qualquer problema com seu progenitor, mas porque temeu vacilar. Foi um instante de indecisão quanto a que esperar de si mesmo, mas sem seqüelas, que logo lhe veio à mente a misericórdia divina que estende seu manto protetor a todos os filhos que demonstram boa vontade e se humilham diante da vontade do Senhor. Restabelecido, após a brevíssima prece que foi o seu sentimento de fé em harmonia com o desejo de rever o pai, perguntou:
— Vocês vieram em comissão, evidentemente, para me auxiliarem, caso eu lhes causasse problemas. Mas também, eu acho, para me informarem do estado geral dele e dos cuidados que preciso ter para não perturbar o tratamento de que deve estar sendo alvo. Pela minha experiência pessoal, concluo que os desvelos só podem ser diretos depois de a entidade criar condições de superação dos traumas e ser capaz de controlar as reações psicossomáticas, se me permitirem utilizar-me deste termo tratando do perispírito e não do corpo denso da Terra.
Adão deu seqüência às explicações:
— Você captou perfeitamente as idéias que viemos instalar em seu campo cognitivo. O que você que saber especificamente?
— Quero saber se ele se reconhece morto. Pergunto isso porque acho muito difícil a um suicida permanecer na ilusão de que está vivo, dado que o seu maior suplício se concentra, justamente, no fato de haver retirado a própria vida, perdendo preciosa oportunidade de resgate de débitos.
Disse Adão:
— Ouça bem. Preste atenção. Nada do que podemos dizer-lhe é definitivo. Nós suspeitamos de que Fernando irá sofrer uma crise ao vê-lo. Portanto, é de todo aconselhável que você apenas se insinue com o fito de captar-lhe a confiança, demonstrando-lhe carinho, boa vontade, fazendo-lhe algo que ele possa perceber de utilidade, interessando-se pelo bem-estar, pelo conforto e pela paz moral do enfermo. Saber que se trata do filho que se desencarnou por culpa dele não é o mais importante.
— Vocês três postergaram a informação de seus laços de família para terem ensejo de torná-lo uma lição para mim. E depois vieram dar-me os parabéns. Hipócritas!...
O riso dos quatro selava uma amizade que prometia jamais romper-se.
Adonias percebeu que reassumira o domínio sobre si mesmo e cresceu-lhe o desejo de ver imediatamente o pai:
— Se ele estiver inconsciente, não poderei aproximar-me para depositar em sua mão meu beijo reverente, pedindo-lhe que me abençoe, tendo em vista ter-lhe causado tantos desgostos, o último dos quais penso que involuntário, porque não me lembra o fato de ter desejado morrer para puni-lo com tal sentimento de culpa, embora sejam tão complexos os procedimentos da maldade que não descarto até esse impulso, que teria o condão de ser absolutamente inconsciente, como um movimento peristáltico de minha mente conturbada por emoções da mais baixa moralidade. Sei que é muito recente o meu despertar para o vislumbre do bem, o que gera um certo desconforto íntimo, já que nem tudo está sob controle de minha vontade. Ainda há pouco, qualquer que tenha sido a razão do meu desfalecimento e por pouco expressiva duração que tenha tido, a verdade é que me senti titubear. Por outro lado, o fato mais evidente que me chega à razão é de que nenhuma criatura é perfeita, como nos ensinou Jesus como condição para adentrar o reino de Deus, o que me leva a considerar que ainda devo trilhar caminhos ínvios e perigosos para a aquisição das virtudes que me conduzirão ao patamar seguinte de nossa escalada evolutiva. Penso, entretanto, que preciso dar uma demonstração de afeto àquela criatura que me acolheu em sua família e me criou condições de progredir, até chegar a esta felicidade transitória pela qual estou passando atualmente.
Os outros três prestavam muita atenção, cada qual oferecendo vibrações de apoio e elevação de ânimo, tocando-o, a gerar corrente energética positiva, de sorte que, nos momentos menos otimistas, Adonias se viu a si mesmo como se se tratasse de uma outra pessoa, sendo, portanto, capaz de raciocinar com mais frieza a respeito dos deslizes que cometera e dos próximos embates que via como necessários.
Anésio se manifestou:
— Seu pai está quase o tempo todo distante da realidade que o circunda. Acredito que, com prudência, você poderá chegar-se a ele, desde que consiga refrear todas as recordações desagradáveis, amparando-se emocionalmente nos dias de maior ventura que passaram juntos, seja no etéreo, quando de seu encontro para a marcação do compromisso da reencarnação expiatória, com laços tão estreitos de parentela, seja no orbe terráqueo, quando vocês tiveram oportunidade de conviver em alegria nos folguedos entre pai e filho.
Adonias, à medida que Anésio ia desenvolvendo os tópicos em que os encontros foram positivos, ia deixando-se embalar por aquelas recordações, a ponto de indeferir todos os requerimentos de sua inferioridade latente, a qual ele vinha soterrando sob os escombros das ruínas onde seu passado redescoberto estava jazendo, após haver compreendido que agira muitíssimo mal e que reconhecera o caminho que Jesus lhe abrira ao longo do qual iria avançar carregando sua cruz às costas.
Foi Alice quem tomou a iniciativa:
— Eu bem sei que este nível de reflexão é indispensável, contudo, vejam bem, nós temos força para sufocar alguma queda de tônus sentimental que pudesse vir a ser prejudicial ao seu equilíbrio. Por outro lado, também temos os recursos da casa e dos especialistas em atividade no hospital. Não creio que corramos nenhum risco, senão o de postergar um efetivo reencontro entre os dois para reconciliação definitiva.
Os argumentos eram lógicos e verdadeiros. Então, partiram os quatro para a enfermaria em que se agasalhava Fernando.
Para prevenir acidentes, Adonias fez questão de envergar seu uniforme de auxiliar nos serviços de manutenção dos equipamentos de transporte dos doentes, lembrando-se, de passagem, que deviam estar acumulando-se algumas macas e outras tantas cadeiras de rodas. De qualquer modo, ponderou que, se Fernando o visse como serviçal e não como professor, talvez reagisse melhor.
Nesse ponto das reflexões, Adão lhe passou uma vibração de apoio à conclusão que chegara, dando-lhe a entender que estava na linha da premissa de que todo cuidado era pouco.
Ao adentrar o amplo alojamento, logo a atenção de Adonias se concentrou numa figura esquelética e pálida, quase translúcida, em que reconheceu os traços de seu pai, embora jamais o tivesse visto tão depauperado. Aquela visão lhe confrangeu o coração e foi com grossas lágrimas a lhe escorrerem pelas faces que ele apanhou a mão do progenitor e a levou aos lábios, enquanto seu coração recitava um pai-nosso comovido, em que ele repetia sem parar o pedido de perdão, garantindo que todas as suas forças se irradiavam no sentido de aceitar Fernando incondicionalmente entre os de seu círculo mais íntimo de amizades e de companheirismo.
Durou pouco aquele momento de sublime superação de tantos e milenares problemas de relacionamento. Adonias via-se ainda no leito em que estivera há tão pouco tempo atrás, imaginando que Fernando iria receber o incentivo a mais de sua enérgica atuação em favor do restabelecimento. Foi nesse instante em que extravasava em ondas maravilhosas a sua promessa de boa vontade e de amor, que Fernando acordou, vagou os olhos cavos ao derredor, fixou-os sobre a figura que se ajoelhava ao lado do leito e sorriu, reconhecendo o filho:
— Deus o abençoe, Padre Adonias, porque você veio trazer-me a alegria de um despertar tranqüilo.
Acorreram os paramédicos de plantão, mas Anésio e Adão os contiveram em seu ímpeto, indicando-lhes que os aparelhos que mediam as reações do paciente apenas apontavam para uma restauração crescente do organismo perispiritual.
— Graças a Deus, meu pai, que o senhor está lúcido e compreende que este seu filho só lhe deseja o bem. Esqueçamos, por favor, o passado. Vamos preparar-nos para enfrentar o futuro.
Aí Fernando se expressou com tal violência que os ponteiros oscilaram para baixo, exigindo dos médicos e seus auxiliares uma providência semelhante à que seria tomada no caso de uma síncope cardíaca.
Mas ficou impressa na mente de Adonias a mensagem que o pai lhe passou:
— Agora temos de unir nossas forças para afastar de Dona Genoveva aquele ser asqueroso que tomou o meu lugar.
Adonias, imediatamente, concentrou-se para debelar a infiltração vibratória perniciosa a que o mau pendor do pai abria as portas. Considerou que os demais iriam agir em prol do enfermo, dando-lhe o tratamento adequado para colocá-lo em equilíbrio precário, mas suficiente para levá-lo a alienar-se de seu objetivo declarado, e se pôs em contato com os seres que, de longe, emitiam radiações em ondas de perversidade, desejosos de reverter os procedimentos terapêuticos em favor de seu obsidiado.
Eram criaturas que um dia partilharam consigo de malfeitos, em diversas existências carnais e outras tantas passagens pela erraticidade. Havia dezenas de seres em sofrimentos atrozes que se identificavam com o intuito de perverter as boas intenções do ex-sacerdote, buscando confundi-lo em sua firme determinação de resguardar o espírito que se debatia ao seu lado.
Travou-se, então, um diálogo impossível de se reproduzir pelas expressões chulas e grosseiras das entidades arredias aos conselhos ponderados e iluminados de Adonias, que entremeava cada expressão sua com citações evangélicas adequadas e com rogos específicos para cada um dos desgraçados, citando-os pelos nomes de que se lembrava, recomendando-os a Jesus, para que lhes enviasse mensageiros amoráveis que os tirassem de sua situação de penúria e de sofrimento.
Quanto mais Adonias forçava seu ponto de vista caridoso, mais intransigentes ficavam os atacantes e mais violentos, muito embora se desviassem instintivamente de seu alvo Fernando, porque se despertavam para antigos rancores e frustrações.
Mas a Igreja Cristã da Misericórdia Divina possuía recursos de defesa que se acionavam automaticamente em caso de serem assaltadas por incúria de alguém ali internado, de sorte que Adonias se via escudado por forte bateria que cercava todo a colônia com um campo de força magnética capaz de impedir que a freqüência em que atuavam os invasores abrisse uma brecha por onde pudessem entrar para raptar aquele que dera vazão aos baixos sentimentos.
Ao cabo de dez intensos minutos de rapidíssimas mensagens, tudo cessou de repente, porque Adonias deu largas às suas emoções, chorando copiosamente por sentir que aquelas criaturas teriam de agüentar por muito tempo ainda seus destemperos morais. Acreditou que não deveria sentir-se culpado pela situação ruim de ninguém, nem responsável pelo comportamento dos que assediaram seu pai e que o maltrataram, desejosos de verem-no decair perante a forçada rememoração de um passado cheio de problemas, porém, sentiu-se fortemente deprimido, porque via o quanto os seres teriam de sofrer até que compreendessem o que ele mesmo recebera de seus amigos e protetores, desde o momento em que, na escuridão do Umbral, se ajoelhou e pediu perdão pelos males que praticara.
Quando saiu desse transe, percebeu que estivera sob a proteção direta de Alice, que lhe transmitia, em ondas de amor, os fluidos que se desgastavam pelas emoções menos felizes.
— Querida amiga, muito obrigado!
Disse e abraçaram-se, enleados num momento da mais profunda felicidade, pela exclusão de todos os presentes, cada qual envolvido em suas funções técnicas e clínicas.
Após haverem agradecido ao Senhor o estágio naquela morna condição de afeto, desprenderam-se, compreendendo que tinham tarefas a cumprir, cada qual de seu lado.
Fernando repousava sob o efeito de sedativos, dentro de uma esfera fluídica impossível para Adonias caracterizar. Imaginou-se na Terra dentro de uma tenda de oxigênio, o quanto bastou para incentivá-lo a requisitar explicações a Adão. No entanto, o bom médico se recusou a atendê-lo, afiançando-lhe:
— Recomendo que você se resguarde de mera curiosidade, transformando-a em interesse legítimo para a aquisição de um conhecimento científico que exigirá horas a fio de estudo e de pesquisa, conforme sói acontecer a quantos vêm dedicando-se à religião e à filosofia. Prefiro que a gente se ocupe de seu pai, buscando compreender o porquê de sua investida contra certa pessoa ainda encarnada. Não é verdade que se trata de um primeiro trabalho seu envergando o uniforme de socorrista?
Adonias precisou refletir um instante, porque não atinou logo com o motivo de Adão para se recusar a atendê-lo. Achou que havia algum intento oculto e não discutiu. Entretanto, concordou logo que se tratava de um investimento na área do socorrismo o fato de auxiliar na educação global de Fernando. Finalmente, apoiou Adão:
— É isso mesmo, meu caro mestre, contudo, posso asseverar-lhe que com algo devo ter contribuído quanto ao fato de ele estar hoje aqui internado. Ou muito me engano?
Adão não precisou de mais de dois segundos para perscrutar o quanto de vaidade ou de orgulho poderia haver numa assertiva daquele naipe, mas nada encontrou além de sinceridade e de profundo interesse em conhecer a extensão de sua participação naquele evento, para medir o potencial de suas preces. Era lídimo interesse de quem desejava aperfeiçoar a qualidade que despontava.
— Fico imensamente grato por me interrogar a respeito, demonstrando como é que você tem cuidado das fibras de seu coração. Todavia, de novo, preciso referir-me aos estudos e às pesquisas, porque existem muitos conceitos a apoiar as teses que nos permitem vasculhar em sua intimidade os fenômenos produzidos pelas virtudes, no âmbito dos seres a que se destinam as preces. Apenas para não deixá-lo tão frustrado quanto à caracterização desta bolha energética que protege seu pai, posso adiantar-lhe que não depende apenas de quem requisita o atendimento de seu parente ou amigo em estado de infelicidade, mas também, e principalmente, de algum valor mínimo daquela pessoa visada. Bem sei que você seria capaz de chegar de imediato a esta conclusão, mas vou acrescentar algo para você meditar. Qual percentual de amigos transferidos para uma esfera mais adiantada o arrastará para a companhia deles? Eu não acho que a minha questão seja meramente acadêmica, senão que irá demandar muita reflexão e, talvez, alguma pesquisa bibliográfica; por isso, não tente responder agora. Vamos ver quais foram os dramas vivenciados por Fernando, desde que se suicidou?
Adonias não tinha mais nada que fazer senão concordar.
Adão propôs que se retirassem os dois, já que Fernando dormia num sono agitado, e que se dirigissem ao Centro de Cadastros e Apontamentos Pessoais, para ver o que se consignava no arquivo reservado a ele.
Houve um momento de ansiedade para o ex-sacerdote, quando o encarregado inquiriu a respeito do grau de responsabilidade dos dois interessados em vasculhar a intimidade do ser sob a proteção da colônia. Foi Adão quem deu as informações, assegurando que Adonias, na qualidade de antigo conhecido e recém-chegado ao círculo de amizade e de humanitarismo socorrista, não bastasse seu currículo evangélico, também administrava um curso a respeito de Jesus, vida e obra, sob as luzes da doutrina de Kardec.
Todos os dados foram rigorosamente confirmados nos arquivos eletrônicos, de modo que ambos tiveram acesso a uma saleta munida de aparelho para reprodução individualizada de um disco com o histórico de Fernando. Além de estarem absolutamente isolados do mundo exterior, tiveram de confirmar o intuito de apenas acrescentar outros elementos capazes de esclarecer as passagens obscuras, obrigando-se a colocar eletrodos na região do cérebro para controle das emoções suscitadas pelo desenrolar das impressões registradas que se reproduziriam na tela do computador.
Foi o técnico quem esclareceu:
— Em caso de distúrbio intelectual ou forte aflição, o aparelho se desligará automaticamente.
Adonias encheu-se de dúvidas e questões, mas Adão impediu-o de se manifestar, passando-lhe telepaticamente a ordem de se manter atento apenas no trabalho de reconstituição da vida do enfermo. Posteriormente, conversariam a respeito.
Realmente, a transmissão requereu total concentração, porque a velocidade com que as imagens passavam sob seus olhos era ainda maior do que a chamada câmara rápida dos efeitos especiais da cinematografia. No início da projeção, informava-se que a duração da fita era de trinta e cinco segundos, podendo estender-se até três horas, caso houvesse necessidade de reavaliação de certos trechos. No entanto, Adão e Adonias foram capazes de observar tudo o que desejavam no tempo menor, de sorte que sua permanência na saleta foi brevíssima.
Ao saírem, foram convocados para se apresentarem a um dos técnicos, com o fito de passarem informações subsidiárias dignas de se inserirem no bloco extraído da memória do paciente. Adão não tinha mais nada que pudesse interessar, mas Adonias fez questão de deixar uma parte de suas lembranças da última passagem, selecionando momentos em que conviveu em harmonia com Fernando, cenas da infância em que era acarinhado pelo progenitor, outras da adolescência, quando conversavam a respeito da importância do sacerdócio para uma sociedade em crise, e, finalmente, umas dos tempos de adulto, quando visitava os pais e animadamente referiam os sucessos do dia-a-dia de cada um.
O responsável pela captação das recordações desejou saber se Adonias tinha algo a acrescentar à cena do acidente em que o pai lhe tirara a vida, mas o nosso herói não se sentiu à vontade nem para atenuar o drama de sua derradeira desencarnação, nem para completar o relato da discussão que precedera o desastre.
— Posso deixar como está? — perguntou ao encarregado.
— Claro que pode! É o melhor que as pessoas fazem para não onerarem ainda mais a opressão dos fatos desagradáveis. Como o senhor deve saber, um dia, todas as lembranças ruins irão desaparecer completamente, estando o nosso programa preparado para apagar-se toda vez que a entidade atinja um conhecimento mais adiantado e que proceda de acordo com ele.
— Como ocorre essa atualização?
— Não posso explicar-lhe sucintamente, mas posso assegurar-lhe que mantemos contato com todos os guias e protetores que participam dos episódios como informantes. Por exemplo, a sua figura já está consignada como possível assessor para efeito da supressão de muitas passagens infelizes que ocorreram entre o senhor e ele. Note bem que a vinculação de seus destinos é tema do interesse de ambos, de modo que qualquer um dos dois estará habilitado a comparecer a este Centro para reformular os registros, abrindo mão, evidentemente, da decisão definitiva, pois os critérios serão sempre os definidos pela administração superior da Igreja Cristã.
— Quer dizer que eu também tenho um registro em fita?
— Não é privilégio seu, uma vez que todos nós aqui temos a nossa existência, em seus aspectos essenciais, arquivada.
— Posso vê-la?
— Inútil. Não há nenhuma informação nela que sua memória não lhe revele. Ainda há pouco, verifiquei, porque existe como norma não permitir a quem não tenha esse mínimo de aperfeiçoamento intelectual acesso a nenhum outro histórico.
— Como você analisa a existência de Fernando?
— Não tenho nenhuma opinião firmada e, mesmo que tivesse, não me caberia divulgá-la. Atenho-me aos aspectos meramente técnicos. Agora, o Doutor Adão tem permissão...
À vista do gesto convidativo, Adão interveio:
— Tenho o dever de discutir o assunto com o meu amigo Adonias, porque me cabe orientá-lo em sua fase inicial de atendimento socorrista.
Ao mesmo tempo, foram levantando-se, agradecendo e retirando-se, estando ainda Adonias um pouco zonzo com o volume de informações que teria de assimilar, dado que tudo estava acontecendo de forma extremamente acelerada.
O médico servia de cicerone, de modo que, sem perceber, meio avoado, de repente, Adonias se deu conta de que estava no consultório do doutor.
— Trouxe-o para cá porque podemos conversar completamente protegidos de qualquer influência externa de caráter negativo, uma vez que teremos de levantar problemas relativos a uma personalidade ainda bastante tocada por noções errôneas a respeito das qualidades que erigem um espírito de bem. O que mais lhe chamou a atenção quanto aos sofrimentos que Fernando teve de enfrentar em decorrência de seu suicídio?
Adonias foi surpreendido pela questão, já que se deixara impressionar muito vivamente pelos transtornos mentais que as distorções da realidade apresentavam para Fernando. Então ponderou:
— Antes de falar de meu pai, quero estabelecer um parâmetro para o comportamento de acordo com o qual deverei agir doravante. Sinto que não dou o melhor de mim, quando me deixo envolver pelas dores e sofrimentos alheios. Acho que Jesus, onde quer que se encontre, conhecendo mais do que ninguém as tragédias individuais e coletivas, não se estimula pela dor alheia nem sofre em conjunto. Ao contrário, deve estar felicíssimo por verificar que todos os seres não param de evoluir, determinando a seus ajudantes que auxiliem o mais que possam a que cada qual vença os seus obstáculos. Ora, eu estou pleiteando uma vaga nessa equipe: não seria absolutamente aconselhável que, sem me tornar um ser insensível, endurecido e alheio à sorte de meus irmãos, melhorasse meus resultados, agindo não apenas com muito amor, mas também com muito discernimento?
— Não foi isso que você fez agora há pouco, protegendo seu pai do influxo negativo dos seres que ele mesmo atraiu?
— Mas eu me entristeci, contrariando aquele princípio que assinalei relativamente ao Mestre. Deveria ter-me alegrado com a melhora de Fernando.
— E não será essa uma oportunidade valiosa para estudar a si mesmo, a fim de avaliar com que segurança você atuou em favor de todos os envolvidos no episódio?
— E o chilique que me adveio depois, o qual obrigou Alice a me amparar?
— Faz parte de sua natureza ainda imperfeita. Não é verdade que, há alguns poucos anos, você nem perceberia o que estava acontecendo numa situação dessas? Vamos dar tempo ao tempo, aperfeiçoando as nossas boas qualidades e eliminando os nossos defeitos. Eu não deveria sugerir isto, mas, sem considerar nenhum aspecto negativo, compare a sua condição com a de seu pai, para sentir quão longe você está dele, porque deu ouvidos à voz de sua consciência e tornou obrigação obedecer aos preceitos do Cristo. Vamos meditar a respeito dos sofrimentos de Fernando resultantes do fato de haver tirado a própria vida?
— Não creio que esse tema seja edificante, pelo menos no que concerne ao nosso interesse em ajudá-lo a vencer as dificuldades. No entanto, caro mestre e amigo, devo adverti-lo para um aspecto danoso que me chamou particularmente a atenção, qual seja, o fato de que o suicídio possa haver sido superado pelo ódio e certo sentido de vingança que fizeram que se revoltasse contra a condição da esposa, minha mãe, de contrair segundas núpcias.
— Qual foi a sua reação relativamente a esse fato?
— Creio haver titubeado em minha segurança quanto aos dispositivos sentimentais de Dona Genoveva, porque sempre é desagradável saber que as pessoas a quem amamos possuem outros objetos de interesse e de afeto. Veja bem, não se trata de ciúme, propriamente dito, mas de uma certa deficiência emocional, de um despreparo de sentimentos e de uma ingenuidade afetiva, porquanto, para nós mesmos, defendemos a mais completa liberdade de ação junto a quantas pessoas nos acendam a simpatia, enquanto o mesmo direito não concedemos até àqueles que mais amamos. Contudo, quanto à minha reação, devo afirmar-lhe que se deu num momento ruim de minha trajetória no etéreo. Talvez, agora, mais cônscio da necessidade que todos temos de ampliar nosso círculo de benquerença, eu não reagisse de modo tão infantil.
— Terá Fernando tido ocasião de refletir dessa maneira sobre o assunto, vasculhando o seu íntimo para nele descobrir as tendências egoístas que, em suma, representam esse apego exagerado ao domínio que supomos exercer sobre os seres a quem declaramos amar?
Adonias não respondeu de imediato. Após alguns instantes aventurou-se:
— Nada indica que meu pai tenha recursos de tamanha intelectualidade ou, ao menos, que esteja em condições psíquicas de dar vazão a uma enxurrada de raciocínios lógicos isentos de perturbações emotivas. Pensando em que ele era, na derradeira encarnação, ferrenho adepto da Igreja Católica, tanto que se empenhou em entregar seu filho ao clero, estranha-me, sobremodo, que haja cedido ao impulso suicida, pecado capital que, segundo sua crença, o arremessaria às chamas eternais do inferno. Creio que esse processo de alta frustração esteja governando ainda seu procedimento, de sorte que agora deixou-se catalisar por algo que, sob seu ponto de vista, significou para ele um ato de pura traição. Sem entrar no mérito do relacionamento com a personagem que assumiu o papel de marido de Dona Genoveva, acho que, de novo, o princípio dos extremos está vigorando para seu modo de ver as coisas.
— Noto que seu discurso busca um entendimento sofisticado para algo que simplesmente poderia ter sido descrito como excesso de amor-próprio. Se nós formos atuar segundo uma formulação ou uma estrutura particular quanto à composição dos elementos constituintes da personalidade, teremos também de arranjar soluções específicas para cada caso. Se é bem verdade que cada pessoa é um indivíduo integral, também não podemos deixar de lado a hipótese de que existem muitos que pertencem à mesma faixa evolutiva, quer dizer, atuando padronizadamente, o que nos possibilita aplicar remédios de amplo espectro, aguardando que, dentre seus ingredientes, alguns ajam diretamente sobre as infeções do paciente. Figure um antibiótico atuando sobre uma febre. Pode ter um melhor efeito sobre um organismo que sobre outro, mas para todos haverá de significar um combate à moléstia. Aprenderemos, depois da aplicação desse tratamento, muito mais sobre cada um de nossos assistidos, podendo, aí sim, circunscrever os agentes em função das reações constatadas. Quanto a Fernando, veja bem, o aspecto inicial está bem definido. Quando recorrermos à sua ajuda, meu irmãozinho, estaremos já na segunda fase do tratamento, de modo que as suas reflexões atingirão o alvo bem na mosca, cabendo-lhe analisar como é que abordará os problemas de Fernando e qual auxílio poderá ministrar-lhe para mais rapidamente trazer-lhe à consciência a lição de Jesus que lhe falta assimilar. Mas, voltando ao caso em si, por que terá aceitado tão bem a sua presença, quando nós mesmos estávamos cheios de dedos, imaginando que ele o repudiaria?
— Não tenho senão uma conjectura a propor: o fato de haver reconhecido que eu não mais representava nenhuma ameaça, porque nossas contas estavam acertadas e porque ele deve ter percebido que tenho tido desvelos filiais, não deixando de me lembrar dele em todas as preces. Será isso?
— Eu gosto muito de conversar com você, Adonias, porque você vai logo ao ponto nevrálgico das questões. Sei de suas suspeitas quanto ao cumprimento da lei do carma, ou seja, que você o assassinou numa vida e que ele lha retirou noutra. Sei também que você julgou que o suicídio dele representaria uma espécie de desforra pelo fato de você, possivelmente, estar acusando-o de tê-lo matado. Sendo assim, ele acrescentaria uma espécie de remorso à sua atitude de cobrança, ou, melhor ainda, você estaria sendo forçado a realizar um desconto, pelo sofrimento dele, a uma possibilidade de retaliação. Estou certo?
— Foi exatamente isso que busquei passar-lhe intuitivamente, porque se trata de mera composição racional, em que não desejei que se infiltrasse nenhuma vibração de qualquer de minhas fibras emotivas. Agora estou desconfiando de que fui muito longe nessa suposição, ao menos no que corresponderia a uma atitude consciente da parte dele. Talvez, no íntimo, até pudesse ocorrer que essas vibrações maliciosas ganhassem consistência e se deixassem transparecer por meio de atos tresloucados, no entanto, após assistir ao desenrolar da existência dele, não estou muito confiante que isso se tenha passado exatamente assim.
Adão olhava com muita atenção para as flutuações do alcance da aura do amigo, concluindo que havia forte hesitação em abandonar a tese arguta que elaborara. Mas deixou de referir-se ao que via e passou a outro aspecto da personalidade de Fernando:
— Sei que ele, de certo modo, esqueceu ou perdoou a você, inimigo milenar que vem acompanhando-o, apesar de tudo, em diferentes situações terrenas e etéreas. Não seria esse um indício de que o mesmo poderia suceder em relação ao mais recente rival?
— Precisaríamos levar em conta o histórico de seus confrontos.
— E também incluir Dona Genoveva no imbróglio, que ela é o pivô desse episódio. Que você acha disso?
Adonias não respondeu. Limitou-se a um gesto para que Adão tivesse um pouco de paciência e se recolheu ao fundo de sua consciência para meditar a respeito, impedindo até que Adão pudesse acompanhar-lhe os raciocínios. Ao cabo de dez minutos, voltou à realidade circunstantes para asseverar:
— Se nós fôssemos vasculhar os resíduos de memória e a prontidão da inteligência de cada ser com quem nos envolvemos antes de nos decidirmos a agir em benefício dele, não faríamos mais nada pelo resto da eternidade. Antes, acabaríamos na necessidade de sermos nós mesmos amparados pelos nossos protetores e mentores. Seria o mesmo que exigir que nosso anjo guardião tivesse o dele, e este um outro, ao infinito, o que me parece absolutamente incoerente. Ao contrário, suspeito, como estamos neste momento fazendo, que os guias se sentem atraídos por seus protegidos, a ponto de lhes oferecer não apenas o resguardo de seus cuidados, mas também todo o repositório de seus conhecimentos e de suas experiências. Para tanto, todo ato socorrista deve prever um momento de abstração dos defeitos dos seres sob sua guarda, em primeiro lugar para não gerar um processo de remoinho ou sorvedouro a arrastar os envolvidos para o centro do furacão; em segundo lugar, para afastar qualquer influência deletéria provinda de outros seres interessados em prejudicar os inimigos, o que me ficou muitíssimo claro, quando percebi que a colônia mantém um sistema de defesa bastante eficaz. Sendo assim, respondendo à sua pergunta, eu acho que a pessoa mais indicada para revelar a importância desses relacionamentos é justamente o socorrido, meu pai, que nos dará a dimensão exata de seu ódio e sugerirá quais pontos das desavenças são mais factíveis de se debelar. Paro por aqui porque foi aqui que estanquei em minha presente insuficiência de conhecimentos. Acho que a minha ignorância é grande; mas não tenho como não compará-la à que trouxe para o etéreo quando para cá me vi transportado pela última vez. Prometo prestar atenção em todos os seus conselhos e cumprir o melhor possível as suas orientações, caríssimo doutor.
— Fico muito feliz com este início de aprendizado, caríssimo professor. Contudo, devo adverti-lo de que não vou entregar-lhe Fernando tão já a seus cuidados. Sabe por quê?
— Imagino.
— Então, responda.
— Porque ainda não tenho como controlar as reações dele. Se bem me lembro de como você agiu quanto a mim, fiquei mais de nove anos até ter o primeiro vislumbre de minha real condição de espírito errático. Acho que preciso desenvolver esse tipo de paciência. Aliás, posso dizer que tudo o que me aconteceu hoje foi importante, mas minha mente está cansada, necessitando voltar ao trabalho de encerar o chão, de lubrificar eixos e rodas, de sortir de material estojos e gavetas.
— Então, o melhor que você tem a fazer é recolher-se. Boa noite!
Foi só então que Adonias percebeu que o dia se esvaíra. Se lhe perguntassem, julgaria que estava na hora do almoço, do qual, de resto, ele se esquecera completamente, parecendo-lhe que só agora lhe despontava um ligeiro estremecimento de fraqueza.
“Acho que estou tomando pé da realidade objetiva. Graças a Deus!”



19. SEPARAÇÃO

Desde que Fernando se viu sob os cuidados da Igreja Cristã, Adonias se pôs de prontidão para a eventualidade de um chamado. Cabia a Adão ir instruindo-o em suas dúvidas, estimulando-o aos estudos de caráter científico, tanto que, em substituição ao curso de Maciel, ocupou o mesmo horário, matriculando-se em outra matéria, Manancial de Fluidos e de Energias para a Manutenção do Perispírito em Estado de Suspensão Vital, a qual lhe estava exigindo muita pesquisa e trabalhos de campo, dado que necessitava de conhecimentos matemáticos, físicos, químicos e biológicos aplicados à natureza do invólucro espiritual.
Pediu dispensa e obteve de duas das três funções voluntárias, mantendo a que prestava junto ao hospital, o que lhe dava oportunidade de visitar o pai com bastante freqüência, em instantes de recolhimento em oração, sempre desejoso de ver o cadavérico molambo ganhar vitalidade e energia.
Em um mês, esteve o velho lúcido por duas vezes, em ambas agarrando-se a Adonias, rogando que colaborasse com ele para efeito de atentar contra o marido de sua viúva.
Mas as coisas iam muito bem no curso que ministrava, tendo, naquele período, despachado mais um grupo entusiasta, pensando, inclusive, em estender suas preocupações evangélicas aos Atos dos Apóstolos e ao Apocalipse, o que lhe permitiria dedicar-se um pouco mais aos estudos de sua predileção.
Todas essas atividades estavam sendo compartilhadas por Alice, amada companheira, que o ajudava em todas as pesquisas, mantendo com ele longas tertúlias intelectuais, aprendendo a decifrar os textos antigos sob o ponto de vista e o alcance do ex-sacerdote, ao mesmo tempo que ia passando-lhe seus conhecimentos na área de enfermagem, porque ambos julgaram essencial que tal adestramento estivesse bastante adiantado, quando Adonias recebesse de Adão a incumbência de cuidar de Fernando.
Ao cabo, no entanto, daquele mês, Alice surpreendeu com uma informação importantíssima:
— Meu amigo, Anésio veio propor-me volver ao plano da matéria densa, no âmbito de nossa família, porque existe um sobrinho-neto meu cuja esposa está predisposta a engravidar. Gostaria de discutir com você a respeito, porquanto essa decisão há de envolver a sua querida pessoa, já que tenho a esperança de nos reunirmos em uma família feliz para resgate de todos os dramas das anteriores encarnações. Acho que desta vez iremos conseguir superar todos os obstáculos e aprender a conviver sob o impacto das emoções e dos percalços físicos.
Adonias refletiu por alguns instantes, hábito que estava adquirindo ante as novidades para não precipitar considerações, e emitiu sua opinião:
— Não seria de todo razoável esperar que eu assuma a direção do tratamento de Fernando, partindo na sua frente, para recebê-la mais tarde, sem os dramas inerentes a uma diferença de idade entre marido e mulher...
Alice o interrompeu:
— Você vai ter exatos dez anos para voltar à Terra, se estiver convencido que deva fazê-lo. Acho que esse tempo não representa uma diferença de idade muito ponderável, principalmente...
Alice mantinha Adonias estreitamente apertado ao peito, sentindo-lhe as vibrações mais íntimas de suas fibras sentimentais.
— ... considerando-se o fato de que a minha intenção, por conselho de Anésio, é de aceitar uma encarnação no sexo masculino.
Foi como que um choque na mente de nosso herói. Adonias só não se perturbou completamente, porque, por outro hábito que estava desenvolvendo, entregou-se a uma prece, confiando-se ao Senhor. Quando volveu a comandar seus atos conscientes, foi obrigado a concluir que Anésio tinha razão:
— Sei que vivi sob a condição feminina há exatos dois milênios antes do Cristo. Você deve recordar-se de ter comparecido à minha presença...
Alice fez um gesto para que Adonias suspendesse essa linha de recordações desairosas para os dois e completou:
— Passe por cima dessas experiências, hoje sem nenhum valor para nós perante o influxo enorme de nosso saber, devido ao expurgo de tantos vícios de nossa personalidade. Vá ao ponto de nosso interesse atual.
— Pois bem, eu dizia que há quatro mil anos venho reencarnando como homem, como varão, sem jamais haver possibilitado a nenhum aspecto ou característica feminina dos velhos tempos que aflorasse. Você sabe disso, como eu sei que, nesse mesmo período, a sua feminilidade cresceu, dominando-lhe a psique quase completamente. Devo dizer, a bem da verdade, que fiquei um pouco surpreso por encontrá-la neste intervalo no etéreo com atitudes francamente positivas, quase diria másculas, não fosse a meiguice de seu apego à minha pessoa. Ainda a bem da verdade, considerando neste instante um aspecto sutil de nossa derradeira encarnação, posso vislumbrar que se constituiu em uma espécie de hiato, talvez preparando-nos para essa mudança de sexos, uma vez que não exercemos o nosso poder genético de reprodução, nem nos estimulamos eroticamente, sublimando todos os impulsos sexuais sob o controle de nossos juramentos religiosos, você como freirinha e eu como padreco, ambos sob o voto de castidade. Será que existe esse controle da parte de nossos mentores e anjos guardiães?
Alice, que não havia pensado sobre o tema, não quis responder de maneira específica, mas não deixou de manifestar sua opinião:
— Eis aí um ponto a ser meditado com muita atenção, porque, quando estivermos prontos para orientar alguns afilhados na qualidade de espíritos de luz, teremos de dominar essa área de prudência e de previsibilidade, para favorecer um crescimento mais rápido no sentido evolutivo dos pupilos. Caso a gente esteja sob estreita vigilância desses seres superiores, o que não só é possível, como seria ilógico que não fosse assim, porque a lei de amor e de caridade deve estar atuando neles com força maior do que atua sobre nós, então temos de aceitar que nosso livre-arbítrio apenas comparece no sentido negativo, para prejudicar-nos, uma vez que, se obedecermos a todos os princípios universais do bem, ainda que maquinalmente, ficaremos resguardados de qualquer mal, de qualquer punição de nossa consciência e, portanto, bem mais aptos a caminhar na direção do reino do Senhor. Se nos rebelássemos contra as restrições que concordamos que nos fossem impostas, anularíamos, com certeza, o planejamento superior que se organizou e se pôs em ação em nosso favor.
Adonias pegou o esquema do raciocínio e adaptou-o para suas observações:
— Pois eu acho, a estar você com a razão, que fui alijado da vida exatamente quando estava criando problemas para a realização dos tópicos elaborados para minha existência corpórea. Tendo a acreditar que até o sofrimento de Fernando estivesse na pauta de uma probabilidade de me perder, tendo ele sido induzido a enfurecer-se, segundo seu padrão de procedimento habitual, redundando no desastre que me retirou da crosta terráquea. O que não compreendo é como o guia de meu pai não manteve o controle sobre sua depressão, acabando este por perpetrar um dos maiores crimes contra a natureza, ou seja, o suicídio. Neste caso, a minha morte deve ter propiciado aos obsessores um domínio exclusivo sobre a personalidade dele, a ponto de levá-lo àquela derradeira tragédia. Então, Dona Genoveva foi convidada a partilhar desse jogo do carma, pelas leis de ação e reação, de amor, justiça e trabalho, forçando que o ex-marido pudesse adquirir um problema moral cuja solução, para a qual devo colaborar, o conduzirá a um estágio evolutivo um pouquinho mais elevado.
Ambos se expressaram de forma a desenvolverem teses que, um momento depois, iriam considerar atrevidas demais, simples hipóteses que julgaram plausíveis mas que tinham o condão de se erguerem sobre bases meramente retóricas. Foi Adonias quem propôs:
— Vamos orar a Jesus, para que nossa inteligência se ilumine, proporcionando-nos condições superiores de compreensão da verdade que expusemos tão-somente como conclusões provisórias.
Então, entrelaçaram os dedos e Alice se manifestou:
— Senhor, eis aqui duas criaturas ainda muito débeis intelectualmente. Sabemos disso, Mestre, e lhe rogamos que nos envie mensageiros com suficientes conhecimentos para nos orientarem, porque julgamos sagrado o nosso direito de pesquisar a verdade, sem o que não conseguiremos progredir jamais. E que os esclarecimentos que recebermos incluam o que se espera de nós na próxima aventura carnal, para que cumpramos, com maior vigor e determinação, a vontade de Deus, nosso criador. Assim seja.
Os dois repetiram com forte emoção um pai-nosso, dando ênfase à parte final da oração, quando pediram, o mais humildemente que lhes foi possível, que todo o mal fosse deles afastado, cada um referindo-se a uma possível fonte íntima desse mal.
Quando voltaram à condição de governo frio e rígido da mente, sem interferências emocionais, perceberam que estavam absolutamente de acordo com a idéia de Anésio de viverem uma vida nova na Terra, sob condições orgânicas invertidas.
Adonias cedeu a Alice a iniciativa dos planos:
— Fale você, já que vai partir primeiro e vai revestir-se com o formato do sexo forte, minha querida, ou devo chamá-la desde já de querido?
A facécia alegrou os dois, mas Alice não deu seqüência à brincadeira, limitando-se a informar:
— Meu caro amigo, bem que nós poderíamos imaginar uma forma feminina para você e outra masculina para mim. No entanto, se me fosse dado escolher, procuraria definir uma aparência mais consentânea com a nossa semimaterialidade perispiritual, dando-nos o contorno de entidades extracorpóreas, assemelhando-nos apenas o suficiente com os seres encarnados para termos livre trânsito cá na colônia, onde ainda necessitamos de indícios, vamos dizer, sensórios, correspondentes aos cinco sentidos da Terra, para mantermo-nos em equilíbrio social.
Adonias entendeu de levantar um problema que lhe vinha fermentando no cérebro, desde que imaginara como é que Jesus, em sua passagem por aquele círculo existencial, se fizera reconhecer, uma vez que a pujança de sua força espiritual tão-somente despertaria a atenção dos seres de maior sutileza:
— Eu acho que Jesus se apresentou ao povo daqui com quase o mesmo sacrifício de sua encarnação terrena. Deve ter constituído um corpo astral de reduzido poder energético, dando-lhe feição coerente com a que manteve no final de sua peregrinação carnal. Digo isto para preparar a minha questão. Ei-la: Alice, quem você conhece que alterou profundamente os traços desde que para cá se transladou?
— Anésio e Adão se acham inteiramente modificados da época que desencarnaram, muito mais jovens e lépidos. Eu mesma mantive esta minha aparência juvenil na expectativa de fazer-me reconhecer por você de modo mais imediato. Mesmo assim, se você se lembra, por não se deixar impressionar desde logo por minhas vibrações particulares, os nossos primeiros encontros lhe passaram em branco. Você nem mesmo percebeu que, na praia, a ouvi-lo, estava ao lado de meu pai.
— Na verdade, estava tendo sérios problemas de visão e de audição, a ponto de permanecer quase o tempo todo preocupado comigo mesmo. Imagine se sabia utilizar-me dos recursos de um perispírito cuja existência eu sequer suspeitava! Mas, então, eu lhe pergunto: Além dos trajos de sacerdote que, faz tempo, abandonei, que outras mudanças você pode apontar em mim, desde que me integrei ao corpo docente da casa?
— Você não se tem olhado no espelho?
— Até pouco tempo atrás, eu cortava a barba mas percebi que era mero hábito terreno. Incrível que até uma semana após eu haver iniciado minhas funções voluntárias de limpeza, ainda abria o chuveiro. Agora eu sei higienizar-me através de alguns recursos que domino intelectualmente, porque as impurezas que se apegam à nossa epiderme metafísica são tão-só de caráter moral. Nesse aspecto, eu tenho dado uns esfregões bem fortes, tanto que a minha pele fica quase esfolada.
Alice riu a valer, demonstrando imensa satisfação pelo rápido crescimento do amigo e companheiro. Mas logo se recompôs:
— Adonias querido, não creio que devamos realizar nenhum projeto muito detalhado para a nossa próxima peregrinação pela crosta terrestre. Vamos cumprir os desígnios de nossos protetores e benfeitores, os quais, muito experientes e muito responsáveis, irão elaborar um plano de atividades que só pode ser de proveito para nós. Caso estivéssemos sendo assediados por espíritos malfazejos lá no Umbral, evidentemente formaríamos uma espécie de muralha energética para nos defendermos dos assaltantes, e isso por nossa conta e risco, sem sabermos, naquele caso, definir os pontos frágeis e as brechas por onde nossos inimigos iriam penetrar. Como, no entanto, estamos numa situação bem cômoda, eu acho que iremos ter o privilégio de receber em missão os compromissos cármicos todos. E, se abrirmos a mente para a percepção das causas de todos os eventos menos felizes que nos atingirem, ficaremos em estado de mediunidade positiva para entrarmos em contato com os nossos mentores. Não nos é difícil de conjeturar dois fatos passíveis de acontecerem, quais sejam, o de que iremos causar certos impactos emotivos pela nossa atuação coerente com o nosso saber em áreas espirituais específicas, como ainda haverá um influxo de vibrações de irmãos nossos interessados em manter sua prevalência sobre as almas mais débeis e endividadas que ameaçarmos desviar do caminho do erro. Bastará que trabalhemos para salvar alguns jovens dos vícios que empestam a face da Terra e logo uma chusma de maus elementos encarnados e desencarnados correrão para obstar as nossas atividades. Como, porém, iremos pôr em prática as lições evangélicas, a partir mesmo do princípio de que você até buscava salvar as imagens das criaturas que se drogavam debaixo do viaduto, talvez numa antevisão de sua próxima tarefa, será preciso que nos munamos de paciência e de muita fé em que o Senhor nos auxiliará a cumprir as nossas obrigações. Além disso, temos de acompanhar os acontecimentos humanos, no intuito de facilitar a nossa compreensão, num sentido mais profundo, de quanto formos aprendendo desde a primeira infância. Temos, na colônia, um curso específico que nos dará mais traquejo do que se fôssemos observar por nossa conta e risco. Eis uma tremenda novidade para nós, que nunca tivemos tal privilégio em nenhum de nossos regressos ao mundo dos mortais.
Adonias ouvia tudo com o sentido alerta para as novidades, pois quase tudo que Alice lhe dizia era a primeira vez que escutava. No fundo da consciência, contudo, uma preocupação se mantinha alerta, a estimulá-lo para algumas objeções. Era a intuição de que Fernando iria ficar sem a sua assistência definitiva, porque desconfiava de que o tempo de dez ou mesmo de quinze anos não seria suficiente para colocar aquele espírito em condições de enfrentar o dia-a-dia da colônia com a mesma desenvoltura sua, de Alice e até mesmo de seus alunos, lembrando-se de que Renato era tão adiantado e ainda se mantinha como office-boy.
Alice teve acesso a esses pruridos emocionais e caracterizou-os:
— Adonias, se nós estamos concordando em nos pôr à disposição dos mentores num caso tão importante quanto o da nossa reencarnação, por que não fazer o mesmo quanto aos nossos possíveis assistidos? Não é lógico que, no instante em que liberarem Fernando para você cuidar, você estará apto a fazê-lo, segundo os critérios superiores de nossos guias maiores? Eu tenho uma solução plausível, que poderei apresentar ao conselho formado por todos os guardiães dos interessados e mais algum ou alguns amigos da espiritualidade superior que deseje orientar-nos, como no caso de Maciel, para citar um exemplo.
Adonias apenas acompanhava a exposição sem avançar nenhuma conclusão sobre a sugestão que Alice iria propor, isto devido à velocidade extraordinária com que os pensamentos se formulavam para a telepatia. Sendo assim, antes que Adonias tivesse percebido aonde ia ela chegar, ouviu:
— Caso todos estiverem de acordo, você conceberá, gerará e dará à luz um menino ou menina com a alma de Fernando.
Dessa feita, a surpresa desencadeou uma sucessão de raciocínios, um mais agradável que o outro, de sorte que Adonias terminou aos prantos nos braços de Alice, em plenitude de felicidade.
Mas o idílio duraria pouco, que Alice foi chamada a se apresentar no setor de compactação perispiritual, para efeito de implantação no ovo que estava em vias de se formar no ventre de sua futura mãe.
Adonias acompanhou-a e, durante o trajeto, quis saber se haveria tempo para uma operação segura.
— Claro, meu bem! Não se esqueça de que, mesmo em fase de gestação, o meu espírito poderá liberar-se do corpo material, tal qual sucede com todos os encarnados quando dormem. Além disso, caso a minha vida mereça ser prazenteira e pacífica, irei aprendendo a amar os meus progenitores, porque os fetos são capazes de entender as ondas de vibrações que lhe chegam das entidades que criam expectativas de profundo amor, ao mesmo tempo que irei recebendo todas as notícias que os meus amados guardiães espirituais julgarem de bom alvitre comunicarem-me. De acordo com o que me informaram, através do histórico genético dos meus futuros pais, irei possuir um cabedal de inteligência física bastante maleável, capaz de fáceis adaptações às realidades culturais que incrementarão conhecimentos atualizados em meu cérebro em formação, a tal ponto que, como a minha família é suficientemente abonada, logo estarei dominando os aparatos técnicos up-to-date, abrindo-me perspectivas para cumprir o meu objetivo de auxiliar os nossos irmãos a vencer certas barreiras sociais, ajudando a superar as ameaças de miséria absoluta que decorreriam de uma destruição ainda mais acentuada dos recursos naturais do planeta. Para sua informação, houve um tempo em que essa temática me interessou sobremodo, tanto que me matriculei em diversos cursos, para poder entender melhor qual o papel dos espíritas no terceiro milênio.
— Você tem certeza disso?
— Meus pais são espíritas atuantes em vários centros de periferia. São estudiosos da doutrina e estão aguardando um filho para cumprirem, através dele, uma parte de seu ideal cristão.
— Sem querer ser pessimista, mas Fernando me reservou um destino eclesiástico que deu no que sabemos.
— Sem querer ser otimista, não é verdade que nunca antes você havia chegado tão longe em seu desenvolvimento moral?
Não tivessem chegado ao Departamento de Reencarnação e teriam prosseguido o diálogo, no sentido de se responderem muitas questões que brotavam na mente de Adonias.
Alice foi recebida por um corpo técnico, tendo Adonias sido convidado a participar dos trabalhos na qualidade de assistente capelão, para manutenção de um fluxo energético a ser captado de campos externos superiores, pelo interesse que tal reencarnação provocara junto a um círculo sob cuja responsabilidade estava a recuperação dos mananciais de vida em fase de tremenda destruição na Terra.
Tanto Adonias se envolveu em sua tarefa, orando com tanto amor pelo sucesso da companheira, que se desligou da realidade ambiente, ficando sem presenciar o processo que levou o espírito de Alice à célula primordial da gênese. Mas não se deixou abater pela separação, tanta confiança adquiriu na assistência importantíssima que seu futuro cônjuge recebera e que ele testemunhara muito particularmente. O que o surpreendeu foi o fato de haver permanecido em êxtase por mais de duas semanas, tempo em que o trabalho inicial foi dado por terminado.
Ao sair do Departamento de Reencarnação estava muito mais forte do que quando entrou, trazendo todas as respostas às questões que não conseguiu formular à companheira. Veio com a certeza de que todas as suas tarefas haviam sido devidamente reorganizadas e que bastaria um contato via computador para se inteirar das próximas etapas de suas atividades.
De fato, nenhuma surpresa aguardava por ele, a não ser um aviso do amigo e mestre Adão de que deveria apresentar-se para mais um pouco de treinamento socorrista.



20. PARTE ADONIAS

Para o objetivo que tínhamos em mente, bastaria que disséssemos que, sete anos depois, também Adonias foi chamado ao Departamento de Reencarnação. Contudo, algumas questões precisam ser prevenidas para dar coerência à narrativa que nos trouxe há tanto tempo presos mediunicamente aos leitores.
Em primeiro lugar, Adonias jamais deixou o serviço de ajudante no hospital, havendo passado por todos os setores, até se configurar ótimo auxiliar nos atos cirúrgicos de emergência, contendo as ondas de vibrações deletérias atraídas pelos pacientes. Era quando se manifestava o antigo espírito de sacerdote, porque o que mais fazia eram preces, ainda que através das sugestões de correção do rumo moral dos obsessores.
Deu inúmeros cursos a respeito da vida e da obra de Jesus, enveredando mais profundamente na exegese dos documentos bíblicos, enunciando diversas teses polêmicas, mesmo para os padrões religiosos tão abertos da instituição, resguardando, porém, o princípio do provisório e do temporário, estimulando para a pesquisa muito mais que para a discussão.
Freqüentou as aulas de formação de socorristas, havendo chegado a cursar várias matérias ministradas por professores de grande nomeada e conhecidos até dos encarnados pelas obras mediúnicas que produziram. Tornou-se, assim que Adão e Anésio asseguraram que ele sabia tanto quanto os dois, orientando de Maciel, o qual, nos dois últimos anos antes da reencarnação, o integrou em um grupo ativo de resgate de irmãos sofredores em condições de aceitarem ajuda, quando teve oportunidade de se reencontrar com Marta e Maria, aquelas obsessoras que se passavam por suas irmãs, conseguindo com que se internassem na Igreja Cristã da Misericórdia Divina.
Quanto a Fernando, fez o que pôde para dar-lhe consciência dos prejuízos que causava a si mesmo, com pouquíssimo sucesso, porém. Precisou trazer inúmeras entidades conhecidas do pai e parcialmente recuperadas, para demonstrar, pelo exemplo, como deveria enfrentar os problemas. Mas a luta foi inglória, a ponto de Adonias discutir diretamente com Maciel a respeito da utilidade de vir a ser a mãe de semelhante criatura. A resposta que ouviu foi taxativa:
— Tudo o que se faz com amor reverte em proveito do crescimento espiritual dos envolvidos, com claras repercussões no ambiente, porque sempre haverá uma irradiação energética das mais saudáveis. Na verdade, de sua parte se trata de mera retribuição. Quem sabe você consiga encarnado o que tem dificuldade em realizar no etéreo.
Numa bela tarde de sol, depois de ter ido visitar a mãe velhinha na face do orbe, viúva pela segunda vez, ansiosa como espírito de substituir o filho na cabeceira de Fernando, o qual, uma noite, viera visitar sem ter sido reconhecida, foi chamado para reencarnar-se. Abraçou Adão e Anésio, enviou um pensamento agradecido a Maciel, deixou u’a mensagem evangélica a todos os ex-alunos e ex-confessados, fez uma prece por todos os colegas de cátedra, conseguiu vislumbrar a imagem de Alice gravada para aquele evento, lembrou-se de Jesus, encaminhando a ele uma vibração de respeito e reverência, através de seu anjo guardião, que, desde algum tempo, identificara como seu tutor na penúltima encarnação, aquela em que fora juiz de direito da França, e foi recebido no seio de sua nova família, numa nova tentativa de reconciliação com os pais que o abandonaram naquela mesma encarnação. Iria chamar-se Matilde e tinha uma irmã mais velha, sua amada mãe adotiva na penúltima encarnação.
Indaiatuba, de 14.12.98 a 02.03.99.

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