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Contos-->Abandono -- 25/09/2000 - 11:32 (Magno Antonio Correia de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos







Fui parar caída de bruços, com uma forte dor de cabeça. Não conseguia mais ver Nádia.

Cercado de areia por todos os lados e sentado numa cadeira de balanço, um velho lia jornal.

- Quanta desgraça nesse mundo! - resmungava.

Eu me aproximei dele.

- Nádia passou por aqui? - perguntei.

Ele trocou os óculos por outros mais grossos.

- Nádia? Estranho. Nádia é uma de minhas netas. Em outubro completa oito anos.

- Dadá não tem oito anos. Tem dezesseis. O senhor por acaso não sabe onde ela se meteu?

- Filha do meu Adriano. Aquele moleque... Deu tanto trabalho...

- E eu com isso? Quero é minha irmã! Dadá sumiu!

- Diabos, moça. Você não me é estranha. Qual é o nome do seu pai?

- Que droga! O senhor fica o tempo inteiro mudando de assunto e não me diz onde Nádia se enfiou!

Ele exibiu a dentadura.

- Ah, pois. Bom pescador, excelente companheiro. Um camarada e tanto. Ah, menina, que tempos! Que tempos!

Depois dessas frases sem sentido, soltou um suspiro comprido e passou a me ignorar. Voltou ao jornal como se eu não estivesse mais à sua frente.

Não me importei. Só pensava em procurar por Nádia.

Pra onde ir?

Sul? Norte? Leste? Oeste?

Qual a diferença? Em todas as direções só havia areia, areia, areia da cor das coxas de Nádia. Resolvi escolher o sentido que o nariz me apontava.

Seria tão errado quanto qualquer outro. Não havia jeito de chegar até Nádia. Nada adiantaria. Eu caminhava à toa, sem rumo, sem objetivo, minha irmã já devia estar morta, seu corpo cheio de vermes do deserto, devorado pelos abutres. Comiam sua carne e palitavam os dentes, palitavam os dentes enquanto bocejavam, fazendo uma porção de caretas ridículas e horríveis.

Que porcaria. Não salvaria Nádia. Nem mesmo encontraria seu cadáver. Bastava, na verdade, encontrar seu cadáver. Se me dessem certeza de sua morte, eu me livraria de tanta perda de tempo, de tanta frustração. Talvez até sorrisse.

Os céus que me perdoem. Numa situação como essa, só me restava sonhar acordada.

Nádia nua em cima de mim, eu nua em baixo dela.

Não. É melhor abrir os olhos, tem menos loucura, menos sem-vergonhice.

Não adiantou nada abrir os olhos. A areia tinha formado uma escultura. Tomou as formas de Nádia.

Uma nuvenzinha maldosa, a única no céu, transformou-se no corpo de Nádia.

Quando comecei a me desesperar, o original apareceu na minha frente, com as pernas cruzadas e os seios à mostra. No que me diz respeito, os seios de Nádia estão sempre à mostra. Blusas, sutiãs, coletes à prova de balas, nada os esconderia do meu olhar guloso.

- Pombas, Cilinha, que inferno!

- Pra que se arrepender? O que tá feito, tá feito e acabado. Não tem como voltar atrás.

- Quer saber de uma coisa? Eu vou é me matar!

- Genial. Resolve o problema direitinho. Ora, deixa de ser besta, menina!

- E vou agüentar uma coisa dessas o resto da minha vida? Eu não!

Ela se calou e sumiu tão misteriosamente quanto havia surgido.

Eu me cansei com aquela agonia de coisas e pessoas vindo e indo como se eu fosse uma feira.

Impávida avestruz, coloquei a bunda pra cima, o nariz pra baixo e atolei a cabeça na areia.





Nádia me pegou pelo pescoço.

- Cilinha! Pensei que você tivesse se perdido! De repente você sumiu. Achou que eu sobreviveria sozinha?

Fechei a gaveta e bronqueei:

- Miserável! Desaparece e vem me pôr a culpa! Hum! Além do mais, já passou da hora de ir. Quedê as roupas?

- Dona Laura rasgou todas.

- Todas? Até minha saia verde?

- Todas. Sobraram só as do corpo.

- Meleca. Vem, Dadá, é melhor a gente sair daqui rapidinho.

Nenhum obstáculo nos separava da porta. Nenhuma ameaça de furacão. Peguei na mão de Dadá e corremos.

Alcançamos o mato em menos de dois minutos.

O mato tinha duas jardineiras. Uma do lado de cá da rua, outra do lado oposto.

(Rua? Jardineiras? No mato?)

- Dadá, você tem certeza que a gente tá no mato?

- Que mato, Cilinha? Que idéia é essa?

Foooooooonnnnnnnn.

- Dadá, como é que é o barulho de uma buzina?

- Que pergunta mais boba! Foooooooonnnnnnnn...

- Pára de buzinar, Dadá! Pára de buzinar no meu ouvido!

- Eu, hein! Que mané buzinar, Cilinha? Que trem mais sem cabimento!

- Pára, Dadá, pára pelo amor de Deus!





Mais um vendaval e Nádia tornou a desaparecer, voltou a me abandonar.

Na solidão absoluta em que fiquei, nem uns malucos pra compartilhá-la comigo deram as caras. Eu não tinha forças pra procurar Nádia. Ou pro que quer que fosse: estava imóvel, presa a um tubo de soro, numa cama de hospital, sem ninguém em volta.

Pim-pim-pim irritante no lado esquerdo.

Uma porção de cheiros que me davam vontade de vomitar.

O teto que ameçava cair.

Um cansaço...





- Dona Laura, a senhora e seu Adriano se queixam de barriga cheia. Eh gente de sorte! Duas filhas como Camila e Nádia, um negócio estável. Quem me dera a situação e as filhas que a senhora tem...

- O senhor queria minhas filhas, sim. Só que não na qualidade de filhas. O senhor vive é de olho nas meninas. Tarado!

- A senhora não me falte com o respeito!

- O senhor é que é um desaforado. Veja só! Que topete! Da educação das crianças entendemos eu e Adriano, mais ninguém. Trate de cuidar da sua vida e nos deixe em paz!

- Se é assim que a senhora pensa, paciência. Eu, de minha parte, só queria ajudar. Passar bem.

- Mãe!

- Me larga, Dadá!

- Cilinha foi mexer nuns copos e cortou o dedo.

- Quebrou algum?

- Você é ótima. Cilinha toda ensangüentada não quer dizer nada. Você só pensa nos copos. Sua bruxa!

- Splaft! Splaft! Splaft!

- Você vai me pagar por isso. E bem mais cedo do que pensa.

- Olha, menina, tenho mais o que fazer. Deixa eu ver esse dedo, Camila. Nossa! Onde você arrumou essa proeza?

- Derrubei os copos de cristal bem no meu dedo.

- DERRUBOU O QUÊ???





Meu nome é Camila. Camila é um bonito nome. Vive falando comigo.

- Quem? Sua mãe? É gorda e horrorosa, Cilinha!

- Mas foi bonita. Envelheceu. Mamãe não tinha o direito de envelhecer. Devia ter ficado bonita pra sempre, Cilinha!

Camila me olhava com cara desconfiada.

- Todo mundo tem direito de envelhecer. Menos mamãe.

- Cilinha, você tá louca!

- Louca é você, Cilinha!

Eu e Camila sempre acabávamos assim. Uma dando tapas no rosto da outra. Nádia via a gente na cama, chorando. Vinha nos consolar.

Uma vez havia saído do banho, estava nua. Nua, colocou a gente pra chorar em seu colo.

- Liga não, Cilinha. Mamãe depois te pede desculpa.

- E tem jeito? Ela não cansa de me xingar...

Camila, interferindo:

- Não agüento mais, Dadá! Me tira das suas pernas, me tira de você! Tô quase enlouquecendo, tô quase perdendo a cabeça!

Nádia ouvia apenas o que eu falava. Cilinha endoidecia de ódio por conta disso. No colo pelado de Nádia, não fazíamos nada além de chorar.

- Dadá, não consigo me segurar quando você tá nua...

- Cala a boca, Cilinha.

- Não, Cilinha, me deixa falar! Dadá tem que saber, se Dadá não souber disso é melhor me internar num hospício!

- Te aquieta, Cilinha!

- Não consigo, Camila. Dadá é tão linda...





Tinha um bocado de gente no deserto.

Dois sujeitos com os rostos deformados. Diziam-se vítimas da bomba atômica, "vítimas da bomba atômica!".

Três mulheres que não paravam de masturbar uma à outra.

Uma multidão esquisita, de pessoas esfumaçadas, quase invisíveis.

Um carteiro bonito e tímido, que me olhava com um apetite de dar gosto.

Crianças, também. Uma barulheira danada. Eu e Nádia nem reparávamos. Uma só enxergava o rosto ansioso da outra.

Tinha uma missa inteira. Gritando feito um maluco, o padre não tinha a menor consciência de que estava pregando no deserto.

O demônio. Desse não se podia ver a fuça. Era pecado.

Uma mulher gorda e seu marido baixinho.

Homens fortes e musculosos, que exibiam seus negócios duros e provocavam nojo em mim e em Nádia.

Uma velhinha simpática, querendo nos convencer de que não estávamos doidas, de que aquele formigamento todo, tudo era pura imaginação.

Nós nos multiplicando em mil. Mil Camilas desejando mil Nádias.

Um deslumbramento.

A nudez de Nádia cada vez ocupando mais espaço, mais areia, mais vida.

André.

Papai e mamãe.

Mas todos se iam, e o deserto ficava cada vez mais deserto.





Anoiteceu. Nádia, sentada na areia com as pernas cruzadas, era uma deusa em forma de gente. Eu olhava embasbacada pra ela.

Pra não arder demais, fingia que meus pensamentos eram iguais aos dela. Eu pensando nela, pensando que ela pensava em mim.

Nádia se deitou com a barriga virada pra cima. A luz da lua cobriu seu corpo nu de cima a baixo e o tornou mais atraente.

- Cilinha, deita do meu lado, vem.

Quase hipnotizada, Cilinha esparramou-se ao lado dela. Juntei-me ao desejo de Camila. Pus as mãos nos cabelos de Nádia. Ela foi aproximando seu rosto do meu. Éramos duas siamesas ligadas pelas línguas.

Minhas mãos perderam-se de seus cabelos, acariciavam os seios de Nádia. Sem nenhuma pressa. Tudo aconteceria bem devagarinho.

Cinco séculos depois, ao desgrudarmos os lábios, Nádia me abraçou chorando:

- A gente não pode fazer isso, Cilinha - lacrimejava, enquanto minhas mãos desciam para sua vagina.

Ela misturava um choro descontrolado a um fogo imenso, pedindo mais.

Afastou-se.

Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Não se contendo mais, agarrou-se ao meu peito com a força de uma enchente e mais alguma. Queimaram nos meus seios suas lágrimas quentes. Eles endureceram, os safados...

Nádia não se satisfez. Lambeu-me no que era e no que não era de direito. Senti seus lábios, sua língua, suas lágrimas nos meus maiores segredos. Fiz amor com suas lágrimas.

Depois de muitos gemidos, ela tirou o corpo do meu. Agachou-se e escondeu a cabeça entre as pernas. Continuava chorando:

- Eu não queria, Cilinha, não queria, não podia...

Levantou o rosto e me encarou. Seus olhos suplicavam clemência. Não vi razão pra isso. Deitei a boca nos bicos de seus seios, engoli Nádia em um caminhão de beijos. Desci, com uma gula que nunca pensei que teria, e chupei a barriga de Nádia nua, Nádia pura, Nádia anjo.

Quando alcancei suas pernas, quando me transformei num pedaço do corpo dela, Nádia chorava ainda mais. Seus olhos encharcados pareciam seu sexo úmido.





Certas cenas da casa resistem ainda hoje na minha cabeça confusa. Fred correndo na sala, numa zoeira de matar. Quer dizer, de matar os outros. Pra mim, era gostoso. E eu toca que mandava Fred gritar.

- Grita, Fred!

- Aaaaaaaaa...

Era aaaaaa pra não acabar mais. Só Nádia implicava com isso. O resto nem ligava. O resto nunca se incomodou comigo. Eu gritando:

- Aaaaaaaaa...

- Larga mão de gritar, Cilinha!

- Sou eu que tô gritando não, Dadá. É Fred.

- Você e essa sua história de Fred. Anda, meu amor, chega de barulheira.

O que será que ela quis dizer com essa conversa de "você e essa sua história de Fred"? Dadá esqueceu quem é Fred? Deve ser o sol do deserto. A insolação deixou minha irmã de miolo mole.

- Schuac!

- Que isso, Cilinha?

- Beijo, Dadá. Você nunca viu beijo de história em quadrinhos?

- Mas na minha boca?

Fiquei vermelhinha.

- Ah, desculpa, Dadá... Era pra dar mais emoção...

Eu te amo, pensou ela.

- Você pensou que me ama, Dadá? Me ama feito uma mulher ama outra?

- Que conversa é essa, Cilinha? Não pensei que te amo não.

- Ah, puxa...

- Não pensei, mas te amo. Não preciso nem de pensar pra pensar isso...

Dadá, por que é que a gente não se beija logo e sai rolando uma por cima da outra, gozando em tudo quanto é posição indecente do mundo? Quer dizer, indecente pros outros. Pra mim, é gostoso. Eu te quero, você me quer, os outros que se danem.

- Camila, acorda, isso é um sonho.

- Sonho por quê, Dadá?

- Eu nem estou aqui, eu te deixei sozinha no deserto. Vou continuar o tempo inteiro te querendo, o tempo inteiro me escondendo, o tempo inteiro desaparecendo comigo. Sempre e sempre!





Se me perguntassem se existe vida depois da morte, minha resposta seria positiva. "Não sei se existe vida é antes da morte", eu acrescentaria.

- Essa piada é velha e sem graça, Camila.

- E daí, André? Agora a gente tem que pensar piada engraçada, é? O bom de pensar é isso, seu burro. Você pode pensar qualquer besteira. Ninguém tá ouvindo...

Olhei pra ele.

- Peraí. Como é que você adivinhou o que eu pensei? Anda xeretando meus pensamentos, cretino?

Ele sumiu.

- André, cadê você? Ah, nojento! Ouve o que eu penso e desaparece.

Esse camarada me dá ódio. Ódio, fúria, entendem? Um dia ainda mato o André.

Sou uma boa menina. As únicas pessoas de quem guardo rancor nessa vida são André e minha mãe. Mais ninguém.

Pra vocês verem como sou uma excelente menina. Entre tantos seres humanos, odeio apenas dois.

É verdade, a maior parte das pessoas me causa uma profunda raiva muito antes de eu vir a conhecê-las. Mas por acidente. Odiar, odiar mesmo, só duas. Duas gotas d água num oceano imenso.

Ou, quem sabe, duas gotas d água num copo a ponto de transbordar. Num dedal que não suportaria nem uma, quanto mais duas.

- Camila do Rego Monteiro.

- Presente.

- Presente, sua imbecil? Você não se convence?

É simples, Cilinha, é bem simples. Você esquece que seu nome é Camila do Rego Monteiro, esquece que o seu pai se chama Adriano Monteiro, esquece que o nome da sua mãe é Laura do Rego Monteiro, pronto, adeus pai, adeus mãe. Entendeu? Seu pai e sua mãe são só dois nomes, esquecem-se os nomes, eles não te aborrecem nunca mais.

- Não é o que você sempre quis? Não ter nem pai nem mãe?

- Não é não! Eu quero saber o nome do meu pai, quero saber o nome da minha mãe! Você sabe, então me diz!

- E não acabei de dizer? Esqueceu?

- Esqueci...

- Ótimo! É assim que deve ser.

Ótimo uma conversa. Acho que o que isso é, é uma grande sacanagem. Sem pai, sem mãe, sem Nádia...

Não era essa sua vontade? Não, Deus é testemunha, nunca desejei nada disso, nunca! Bobagem. Bobagem a sua avó! Não me agride, imbecil! Quem me agrediu foi você!!!

Eu coisa nenhuma. Sou muito delicada. Camila do Rego Monteiro só tem mãos pra fazer carinho em Nádia.

- Camila do Rego Monteiro! Camila do Rego Monteiro! Você não consegue se esquecer do maldito do seu nome, sua estúpida?

- Eu não. Pra que que eu vou esquecer o meu nome? Esqueci o de mamãe, o de papai, não preciso me esquecer o meu. Já me vinguei do meu pai e da minha mãe. Não têm rosto, não têm nome, são uns nadas.

Já eu não. Tenho um nome bonito e grande. Tenho um rosto bonito... (Nádia diz que meu rosto é bonito.)

Nádia nunca mentiu pra mim.

- Vai estudar, vagabunda!

- Vou não senhora. Decidi. Não quero mais estudar, não estudo mais. A senhora é minha mãe, não é minha dona. Vou estudar quando quiser.

- Desaforada! Paft! Frapt! Flupt!

Você conseguiu, sua miserável, me machucou! Não, fica tranqüila, não vou te desafiar mais não, só vou pensar. Não estou dizendo isso, estou? Se estivesse, colocariam um traço antes.

Sem traço não estou dizendo nada.

Estou só pensando.

No fundo, a única coisa de bom nesse mundo é a gente pensar. Não gagueja, não se envergonha, ninguém enche a paciência.

- Ela ganhou, papai! Nunca mais abro a boca pra dizer coisa alguma nessa vida. De agora em diante, qualquer xingamento, qualquer palavrão, só em pensamento!

- Que nada, filhinha. Esquenta com isso não. Sua mãe é assim mesmo. Não doeu tanto, doeu?

Não doeu porque não foi com você, seu frouxo.

- Filhinha... - papai fez cara de zangado - ...isso aí você pensou ou disse?





Há duas mãos em cima da minha cabeça, desmanchando meus cabelos e minhas recordações. Não acreditem nessa história de inteligência curta e cabelos longos. Os dois ficam anelados, depois se alisam e terminam desconversando. Em certos momentos, as coisas até se confundem - os cabelos louros, a inteligência preta dos olhos, essa nojeira de vida - e não deixam de ser independentes por causa disso. O tamanho da minha esperteza não tem nenhuma relação com o comprimento das minhas mechas, mas eu sou tão cabeluda quanto astuta.

- É sim, André. Sou inteligente à beça.

- Que nada. Se fosse, ia me rejeitar? Eu sou feio sim, Cilinha, feio demais, mas te amo tanto... Nenhum homem vai te amar assim!

- Um homem não. Quem sabe uma...

Nádia me interrompeu.

- Não interrompi não! Fala pra ele, fala, Cilinha! Anda, criatura, fala que a gente se ama, fala!

- Mentira, Dadá! Você nunca me disse isso! Cínica, fingida! Me desejava em segredo! Não tinha coragem de admitir. Nunca me disse que morre de tesão por mim, então também não digo.

- Camila, você sabe muito bem que a gente nunca teve essa conversa. Você só inventou essa xaropada pra me jogar a culpa por nunca ter dado nada certo entre a gente. Mas a única culpada de tudo é você. Era você que ficava sempre fugindo, era você que ficava sempre criando bicho de sete cabeça, era você que ficava envergonhada. Foi por isso que eu morri, Cilinha, foi por isso que eu me matei.

- Se matou? Dadá, você morreu? Você não morreu não, Dadá... Dadá! Cadê você, Dadá?

Onde foi Dadá, moço? Solta, moço, tá machucando...

Faz barulho de onda não. Faz não...

Meus pés doem. Minhas pernas doem. A cabeça não pára de doer. Tô sozinha, moço, Dadá sumiu por aí...

Sou uma coitadinha...

- Diz pra mim que eu sou uma coitadinha, diz...

Moço, se você disser, te mostro meus peitinhos, ó! São um chuchu, não são? Nádia diz que meus peitinhos são mais perfeitos que os peitinhos dela. Diz só pra me agradar. Nádia não pode ter os peitinhos menos bonitos que os peitinhos de ninguém não, moço. Nádia é a criatura mais linda do mundo.

Você não gosta dos meus peitinhos? Então, me olha brincando de amarelinha, olha! Um, dois, três, quatro, CÉU.

- Você não parece com André, sabia, moço? Você é grande, moço...

Moço!!!??? Moço, onde você está? Ei, não faz isso não... Me deixa sozinha de novo não...

Tenho medo de ficar sozinha...

Tenho medo de escuro também...

- Dadá, me aperta, me abraça, a porta tá parecendo alma do outro mundo!

- Tá bom, Cilinha, eu te abraço. Mas alma do outro mundo não existe. Repete com a mana: alma do outro mundo não existe.

- Alma do outro mundo existe.

- NÃO existe.

- Existe.

- Não existe! Ai, que amor, que paixão, que gana! Se eu pudesse ficar a vida inteira te abraçando forte desse jeito...





E outra vez Nádia fazia o favor de sumir da minha frente.

Sua ausência sufocante, carrapata.

Além de cretina. Vinha e não permitia que eu me acostumasse. Se me conformasse, se parasse de chorar a falta de Nádia, não tinha problema, Nádia voltava, mais linda, mais nua...

Pra sumir na exata hora em que meus braços se grudassem aos dela.

Já sei. Da próxima vez, não toco em Nádia. Ela pode aparecer como quiser na minha frente, não me interessa. Nua, doce, suave, carinhosa - me seguro, me contenho, não me deixo enfeitiçar.

- Duvido, Cilinha.

- É sim. Não vou tentar te abraçar, juro!

- Você não consegue...

- Consigo!

Não. Eu me agarrava àquele fantasma de novo, mula incorrigível...

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