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Contos-->Conto de Um Natal -- 01/09/2003 - 07:34 (MARIA PETRONILHO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Até as outras crianças, quando nos viam, fugiam de nós ou nos atiravam pedras e gritavam sempre:
- fora, maltrapilhos!
Era o que ouviam dizer ás mães quando, famintos, nos atrevíamos a bater às portas das casas pequenas do bairro.
Andávamos quase nus, descalços, sujos, feridos, o cabelo desgrenhado, o estômago vazio, mas sempre com a boca a sorrir, sempre dispostos a fazer diabruras àqueles que nos escorraçavam.
Éramos três: o Ruivo e a Sardenta eram irmãos. Tinham ambos as cabeças vermelhas e as caras salpicadas de pontinhos, muitos pontinhos negros. Ela era a mais velha, tinha uns nove anos. Isso dava-lhe uma certa importância e autoridade quando, por uma caixa velha encontrada no lixo, discutíamos.
Eu era a mais nova e vivia com eles na barraca, depois da morte dos meus pais, que aliás nunca tinham querido saber muito de mim. Mas como a caridade se vê sobretudo nos mais pobres, eles lá conseguiram arranjar-me um lugar na sua miserável casa já cheia.
Num dia de inverno, frio, escuro e triste, depois de termos procurado debaixo de chuva em todas as latas do lixo, de termos roubado uma laranja a um vendedor ambulante e conseguido um pão fresco na padaria da esquina, escondemo-nos na escada de um prédio velho e começámos a comer, com delícia, o nosso almoço.
Nisto o Ruivo, esperto e matreiro, de quem havia sempre algo de extraordinário a esperar, levantou-se, abriu os braços, fez uma pirueta, sentou-se outra vez, pôs-se a olhar para longe, para muito longe de nós e disse:
- Eh malta! Vocês sabem porque é que está tanto frio?
Nós, nem resposta. Estávamos habituados a perguntas deste género vindas da parte dele. Continuámos a comer em silêncio.
- Sabem, ou não?
- Não! – respondeu-lhe a irmã.
- Mas eu sei! – disse com uma voz triunfante. Nós, caladas. Isso pareceu irritá-lo porque se levantou de um pulo, cerrou os punhos e gritou:
- Vocês querem ou não querem saber?
- Porque é? – perguntei eu.
- Porque vai ser o Natal.
- Natal?! – Admirou-se a Sardenta – O que é o Natal?
- Ah, agora sim! Ora oiçam lá o que eu ouvi os Lanzudos estarem a dizer:
Lanzudos era a nossa maneira de tratar os outros, os ricos, os que se vestiam de lã e corriam e brincavam sem ninguém lhes fazer mal.
- Que é que ouviste? Conta! – pedimos.
- Eles estiveram a dizer que o Natal é uma festa e que se dão prendas às pessoas e que é por isso que as montras estão tão bonitas.
- Oh, temos de ir ver as montras! – disse eu. E logo a Sardenta:
- Isso! Experimenta, que logo vês o que te acontece! Eu cá não vou, não! Já estou farta de apanhar!
47 Baixei a cabeça, triste, mas o Ruivo consolou-me:
- Deixa lá, Macaquinha, vamos nós, queres?
- Quero sim! – respondi logo eu. Quando é que há-de ser?
- Logo à noite, quando há muitas luzes e pouca gente na rua.
_- Está bem!
À noite, a Sardenta foi para a barraca, para junto dos pais e irmãos e eu e o Ruivo partimos à aventura. Tínhamos medo, mas ainda maior curiosidade de ver as coisas com que os Lanzudos fariam a tal festa Natal.
Já era bastante tarde. O vento zumbia, cortante. Passavam alguns carros e pessoas embuçadas que não reparavam em nós. As luzes deslumbravam e aquelas enormes janelas enfeitadas com bolas grandes e brilhantes, com ramos verdes, com sinos de ouro e prata, com grandes bonecas sorrindo, com castelos de chocolate, bolos, pão, fruta.... com tanta coisa deslumbravam-nos ainda mais. E abríamos muito os olhos redondos, e soltávamos ohs e ahs e esborrachávamos os narizes de encontro aos vidros.
- Ruivo, olha como é grande aquela bola! E como brilha!
- Sim, tão linda! E vês aquele carro, mais abaixo? Quase jurava que anda sozinho. Até parece a sério!
- E aquela boneca além? Parece mesmo um bebé. Oh se eu tivesse uma boneca assim!
- Que sorte têm os Lanzudos !
- E porquê só eles, Ruivo? Porquê?
- Sei lá! Afinal isto tudo é para lembrar o nascimento de um miúdo pobre... Vê se entendes!
- O quê? De um miúdo pobre?
- Sim, foi o que eu ouvi. Disseram que ele dormia na palha como a gente.
- Ah, ainda bem que ele não era Lanzudo!
- Lanzudo? Bom, parece que sim, rei ou lá que é. É muito esquisito. Também disseram que era muito rico, tinha não sei quê mais que a gente.
- Ora! Estás a ver aquele bolo grande, todo branco? Que bom deve ser!
- Oh, sim! E aquele castanho mais abaixo? Tem uns molhinhos de palha e em cada um um bonequinho cor-de-rosa, vês?
- Que engraçado!
E assim fomos, rua após rua, demorando-nos diante de cada montra, fazendo conjecturas, admirando tudo. Mas o tempo passava e o sono chegou. Combinámos vir mais vezes.
- Amanhã a gente volta, sim, Macaquinha?
- Sim! Quero ver tudo, tudo. Que coisas tão lindas, hein, Ruivo?
- E agora? Vamos Para a barraca?
- não! Tenho muito sono. Olha uma portada aberta, vamos!
Não tardou, estávamos a dormir num canto, com um sorriso nos lábios, sonhando ser os donos de todas aquelas maravilhas.
Ao outro dia não parámos de falar à Sardenta em todas aquelas belas coisas que tínhamos visto na véspera. Ela já estava meio resolvida a acompanhar-nos, mas o medo foi mais forte. Ficou.
Chegada que foi a noite, lá fomos nós outra vez e a cena repetiu-se por muitos dias, e em todos eles nos extasiávamos diante das mesmas coisas, descobrindo outras, cada vez mais encantados.
Mas naquela noite o vento era tão frio, a chuva tão forte, que resolvemos refugiar-nos em qualquer lado à espera que o temporal amainasse para depois continuarmos o nosso passeio. Por entre as grossas bátegas de chuva começámos à procura de qualquer canto seco, até que avistámos uma grande porta por onde, durante certo tempo, entrou muita gente. Depois, mais ninguém. Resolvemos espreitar: para lá dessa porta havia uma outra, fechada. Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros, desanimados.
- Nada feito! Está fechada, disse.
- Atenção, Macaquinha! Vem aí alguém!
Rapidamente, escondemo-nos atrás da porta grande. Uma velhota entrou, empurrou a porta fechada e sumiu do outro lado.
- Olha! Afinal a porta pode-se abrir!
- Vamos dar uma vista de olhos?
- Vamos!
Devagarinho, abrimos a porta e espreitámos para dentro: havia várias filas de bancos e, no meio deles, muitas pessoas. Lá ao fundo, à volta de uma estranha mesa, vários padres falavam uma linguagem que nunca até então tínhamos ouvido. Mais atrás, um grupo de rapazes, todos vestidos de igual, cantava.
Não sei de onde, vinha uma música bela, suave. Havia também muitas luzes e velas ardiam em redor da mesa. De vez em quando os padres, sempre cantando, faziam grandes gestos em direcção ao céu e ao povo, ajoelhavam e tornavam a levantar-se e as pessoas imitavam-nos e falavam muito baixinho.
- Céus! Os padres parecem zangados!
- Não me parece! Todos fazem como eles.
- O que será isto? Seja o que for, lá de dentro vem um calor muito bom.
- E se a gente entrasse?
- Está bem, vamos.
A porta fechou-se silenciosamente atrás de nós, que nos metemos no canto mais escuro que encontrámos e aí ficámos a observar.
Mais uma pessoa entrou na casa e, com ela, o vento frio da rua. Arrepiei-me e o Ruivo estremeceu. Encostei-me mais a ele, que me passou um braço pelos ombros.
- E se nos sentássemos? Aqui atrás ninguém repara na gente. Estão todos tão atentos. Achas que nos mandam embora se nos descobrem aqui?
- Não, acho que não. Chega-te mais para cá. Está tanto frio, mesmo assim!
Sentámo-nos no chão. Estava-se ali bem. Cheirava a um fumo esquisito que vinha da mesa onde os padres estavam.
O Ruivo perguntou:
- Ainda tens frio?
- Não.... Ruivo, sabes quem é que nasceu?
- Não, não me lembro do nome.
- Um miúdo pobre que depois se passou para os Lanzudos?
- Não, não era bem isso, era muito esquisito, como te hei-de explicar?
- Como é que se chamava?
- Eu ouvi o nome... era Ju... Je... espera, era Jesus E não se passou nunca para os Lanzudos, dizem que eles o mataram por causa disso.
O coro continuava a cantar “Feliz Natal” “Feliz Natal”
Eu pensava que gente ruim eram os Lanzudos que tinham querido apanhar o miúdo pobre e que o tinham matado por ele querer continuar pobre. E em como o mais esquisito de tudo era estarem a fazer-lhe uma festa cheia de coisas que nos faziam crescer água na boca.
As lágrimas correram cara abaixo.
Senti o contacto quente de uns lábios na minha face. Vi o Ruivo despir o seu casaco leve e esfarrapado para me cobrir com ele. Sorri.
- Pobre do miúdo, o tal Jesus, se tivesse vindo com a gente....
Sorriu.
Lentamente, a cabeça descaiu-me, escorregou no ombro do amigo que ainda tinha e adormeci.

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