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Contos-->O APOSENTADO -- 31/08/2003 - 19:25 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A viuvez e a aposentadoria de Péricles foram contemporâneas. E ambas inesperadas. É que ele não prestara atenção no tempo. Dona Consuelo foi-se após uma enfermidade de curta duração, cujo diagnóstico um pouco tardio se fizera depois de um ano e meio de sintomas pouco valorizados. Chefe de secção há 30 anos, trabalhador assíduo e extremamente dedicado, o mais perfeito estereótipo de um “caxias”, aquele funcionário que iniciara sua carreira profissional com 15 anos de idade naquela mesma empresa e naquele mesmo prédio da Rua Marquês de Pombal, um dia empalideceu e paralisou-se surpreso, diante do novo diretor que lhe comunicava então o desejo de que fosse requerido aquele benefício previdenciário. Aquilo, que para muitos é tão almejado, não tinha tido por Péricles a mesma expectativa. Na verdade, ele jamais houvera parado um segundo sequer para pensar em deixar de trabalhar. Gostava da rotina do escritório. Havia se habituado com tal firmeza a ela e empenhara-se tanto aos mínimos detalhes de sua função, que esses ficaram entranhados em sua vida, não pecando por exagero, com certeza, aquele que se atrever a dizer que tomavam parte até mesmo na regulação de suas funções orgânicas. Extremado adepto da disciplina e acostumado ao respeito à hierarquia, não ousou, naquele momento, nem fosse através de um pequeno franzir da testa, manifestar qualquer tipo de contestação. Limitou-se, ao mesmo tempo em que contemplava, já com antecipada nostalgia as pinturas sobre as paredes do gabinete, a perguntar a si mesmo que interesse poderia haver, por parte da empresa, na sua saída. E abandonando a sala, vendo-se a compartilhar os sentimentos dos exilados, percorreu como numa “via crucis”, aqueles corredores, cada passo a torturar-lhe, dos pés, o coração e a razão. Só repetia, introspectivo,” E agora?” É a frase comum nos instantes de desespero tomados pelo vazio.

Fora do trabalho, a rotina de Péricles não se diferenciava muito. Era tudo certinho. Cuidava da casa com a mesma dedicação. Dividia bem com Dona Consuelo aquelas atribuições. Os filhos criaram com a mais absoluta normalidade. Formaram-se, casaram-se e foram viver suas vidas, não lhes provocando a menor das preocupações. Seu círculo de amizades, muito estreito e discreto limitava-se a alguns poucos e próximos vizinhos e a uns raros parentes de visitas rápidas. As novelas e os telejornais preenchiam o que sobrava do tempo, o sono chegando e o dia findando com o “click”do controle. Sexo era uma obrigação. Mais para Dona Consuelo que para seu marido, que, no íntimo, assim também o definia, pois se destinava a descarregar seus “impulsos” e a confirmar sua masculinidade. Jamais haviam conversado sobre qualquer coisa que não integrasse o mundo do que era corriqueiro, compreendido pelo concreto, pelo físico, pelo perfeito ajuste entre contas e dinheiro, passando longe do abstrato, do etéreo. E agora, sem Consuelo e sem o escritório? Começava aí, pela primeira vez na vida de Péricles, a comunhão entre seu pensamento e o etéreo a que nos referimos acima.

Os trâmites para a concessão do benefício não se alongaram muito. Dali até o dia de sua saída, Péricles experimentou momentos de muito nervosismo e ansiedade. Havia uma preocupação em deixar tudo na mais absoluta ordem, com fins de não merecer a menor censura que fosse por parte de seu sucessor. Havia, sem dúvida, concorrendo para tudo aquilo, o velho hábito, do qual Péricles amargaria muito tempo ainda para se separar. Finalmente chegou o dia da despedida. Uma festa “surpresa” foi preparada. Péricles era um bom chefe. Conseguia aliar a austeridade à solidariedade e ao companheirismo. E lá estava, em pé atrás da mesa com bolo e refrigerantes, aquele homem alto, magro e meio calvo, com um sorriso encabulado, emocionado e emocionando, escutando elogios e desculpas de ex-desafetos e recebendo sem discórdia as brincadeiras dos mais folgosos, ao som de entonações do tipo “Um bom companheiro”. Depois, discursos, lágrimas, etc.. O salão estava cheio. Súbito, surge, retardatário, seu amigo e colega de trabalho mais próximo, o Rodrigues que aproximou-se e, sem dizer nada, cumprimentou-o e abraçou-o demoradamente. Depois fitou-o com simpatia e após sorrir, disse:
_O normal seria lhe pedir pra aparecer sempre, mas sei que isso não acontecerá. Sabemos ambos, por experiências anteriores, que os amigos que se vão desaparecem sugados pelo tempo e pela mudança nos hábitos. Porque assim tem sido a vida dos que exercitam a estima. Na medida em que o tempo passa, um incontável número de pessoas sai de nossas vidas. É como se fosse uma morte lenta. O tempo e a distancia se encarregam de apagar vagarosamente de nossa memória os traços das pessoas com quem convivemos por tantos anos. Não é justo, mas é assim mesmo. Portanto, meu amigo, adeus. Que Deus o abençoe e o acompanhe.
Aquelas palavras comoveram Péricles. Percebeu então, após 20 anos, que negligenciara involuntariamente na atenção àquela pessoa, a qual estranhamente acabava de conhecer.

Enfim, lá estava o nosso amigo à porta do prédio, capa e maleta nas mãos, lançando um derradeiro olhar àquela construção a que tanto se afeiçoara e que agora lhe apontava impiedosa, o caminho de casa.
Não foram fáceis os dias subseqüentes para aquele cinqüentão. Sonhava constantemente com o escritório. Acordava no meio da noite sobressaltado e um pouco sonâmbulo ensaiava a procura de um documento que se extraviara. Em muitas manhãs, pulou agitado da cama, pensando ter perdido a hora. E o tempo, zombeteiro, não passava. Seguiu-se uma época das mais amargas na vida de Péricles. O vácuo que dele se apoderara impelia-o a procurar alívio em algum contato. Pensou em ligar para o escritório, mas deteve-se. Aguardava ansioso a visita ou o telefonema de alguém. Filhos e parentes, acostumados ao seu distanciamento, não podiam imaginar o quanto lhe fariam bem se aparecessem. Nada acontecia. Rodrigues tinha razão. A inatividade tirara-lhe o sono. Ficava acordado até altas horas, assistindo a filmes pela televisão e aos poucos ia perdendo o interesse por aquele “repeteco” de violência e de asneiras que são comuns ao monopólio americano da invasão cultural no Brasil. Perdera, há muito, o costume da leitura. Não gostava de esportes. Não praticava, no sentido amplo da palavra, nenhum tipo de religião. E assim, torturava-se com imensas noites de insônia.

E foi numa dessas, que se entregou a lembranças de Consuelo. Viu numa foto com dedicatória, sob o sorriso meigo, o nome Consuelo. Pronunciou-o lentamente, “Consuelo”. Repetiu várias vezes, cada vez mais lentamente, Consuelo. Aquele nome, há tantos anos não tinha tanta sonoridade. Havia esquecido daquele detalhe, que há tanto tempo, entre outros, levara-o a se interessar por alguém. Con-su-e-lo. E um forte sentimento de ternura há tempos guardado, exteriorizou-se numa explosão, levando-o nostalgicamente a uma dolorosa saudade. Emocionou-se. Estava confuso. Procurou por compreensão, retirando do armário uma empoeirada caixa de retratos. Vacilou um pouco, mas foi em frente. O bolor desprendia-se de entre as fotos com as imagens amareladas tais como encontravam-se em sua memória. Lá estavam pessoas que já não via há mais de 25 anos, entre amigos e parentes. Locais que há muito não frequentava e a presença de Consuelo uma constante. Eles se conheceram numa festinha de aniversário em Madureira. Ele 21, ela 17. Recordava-se agora muito bem daquele dia. Do outro lado da sala, sozinha, a mocinha fitava-o. Era baixinha, miuda e com a pele muito branca. Parecia do tipo recatada e introvertida fazendo-o com que se sentisse identificado com ela. Tomara coragem e, atravessando a pista, lhe pedira para dançar. Naquele instante, alguém trocara o disco. Calaram-se os espalhafatosos Rolling Stones e a Vanderléia iniciara com uma música lenta e melodiosa. Tantos anos depois, naquele quarto, ele podia sentir com enorme clareza o que se passara no momento em que se tocaram. A mãozinha delicada e fria. O corpinho leve, o pano sedoso do vestido. Os olhinhos pretos a brilhar e revelando, sem nenhum disfarce, a paixão que então lhe invadia. A música estava sendo ouvida agora com toda a nitidez por Péricles, bem como aquele perfume suave e gostoso estava tão presente como nunca. “Uma vez você falou. Que era meu o seu amor. Que nunca mais ..... “. Surpreendeu-se, como um insano, tentando tocar os cabelinhos negros e finos de quem já não mais existia, pois iludira-se estarem aconchegados em seu peito. É algo impressionante a força com que se revitalizam sentimentos há tanto tempo esquecidos. Aquela noite foi perdida entre fotografias, cartas, bilhetes e outras lembranças. Foi regada a lágrimas e ocupada por uma incessante batalha, em que sentimentos de prazer, nostalgia, melancolia e angústia degladiaram-se, deixando-o ao primeiro clarão da manhã afogado em um imenso desejo, o de poder fazer voltar o tempo, mesmo que só por alguns instantes, e dizer à Consuelo ainda viva, ainda que moribunda, tudo aquilo que o tempo, a rotina e o trabalho mantiveram encarcerado em seu coração.

Maio de 2000
Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br


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