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Contos-->O Pescador das Águas Sujas -- 26/08/2003 - 13:18 (FLAVIO DOS SANTOS FERREIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O PESCADOR DAS ÁGUAS SUJAS 29.8.2003


I

Se Gabriel tivesse desistido das primeiras brincadeiras de tomar alguns goles de caipirinha em uma festa com amigos, não teria gasto a manhã toda dentro do quarto escuro, deitado com os pés para cima. Saciar a curiosidade serviu apenas para se prender na teia de rede quando jogada no rio. Nunca foi de beber bebida alcóolica. Jamais foi a um bar. Tomar um pequeno copo de bebida alcoólica não vê problema nenhum. A gente vive para conhecer as coisas, não para reprimir o paladar. Bebeu semana passada e anteontem fez a mesma coisa.
Acontece que se surpreendeu com o sabor da bebida. A caipirinha é muito mais gostosa do que arroz e feijão. O segundo copo que tomou ontem somente comprovou que o organismo gostou. Miserável gosto que não devia provar!
Desde então não consegue se concentrar ou pensar em outra coisa senão na nova descoberta. A experiência foi fascinante mas o que sente na boca é igualmente pior. Se acha um peixe fisgado pelo pescador. Só ainda não foi puxado da água porque tem resistido igual a um peixe grande. Mas as forças estão minando. O pescador é muito mais forte do que ele; é hábil no uso da isca e está em todo o lugar. A presença dele que se sente pela linha do anzol é labareda de fogo para assar a vítima.
Sem alternativas, Gabriel finalmente se convenceu a tomar outro copo da bebida. Desde ontem, entretanto, o que mais tem feito é evitar o terceiro. Chorou, rezou, ajudou a mãe a limpar a casa, coisa que habitualmente não fazia. Resistiu o quanto pôde mas a força do pescador cresceu igual a incêndio na floresta. A média de um copo por dia com certeza não faz mal a ninguém. Precisa tomar para a acalmar a sensação de desvantagem – pensa. Ele é jovem e jovem é, ao contrário do que se pensa, não só capaz de abrir o próprio caminho, mas também de fechá-lo.

II

Novamente correu para o bar. Embora menor de idade, Gabriel entrou ignorando a proibição na entrada do boteco; e, como das outras vezes, o dono atendeu com cortesia. É certo que o pedido saiu tremido pois o coração batia mais descompassado do que de uma pessoa com arritmia cardíaca.
Quando o barriga de navio trouxe o pecado e pôs na mesa, o jovem ainda tremia, mais agora porque o produto estava diante dos olhos. O dono do estabelecimento fez cara de quem não se importava. E vendo o pecado bem diante dos olhos, transparente como água cristalina, Gabriel começou a suar igual a mulher grávida no momento da concepção. O coração cada vez batia mais forte. Olhou em volta para pedir ajuda, já que não conseguia se controlar. Não viu nem o dono.
Recomposto do susto, achou que pudesse fugir ou derramar a bebida. Novamente o anzol do pescador mexeu em sua garganta. Atracou-a mais profundamente deixando a certeza de que o algoz não desiste das vítimas e se quer ser impiedoso é pior do que as façanhas dos governantes cruéis. O pescador não permitiu que a presa fugisse. É muito difícil alguém fugir das ciladas e dos seus olhos.
Restava então tomar devagar cada gole. É isso – disse ele olhando fixamente para o copo – e apenas isso que o predador de todos os momentos quer. Quando tomou o primeiro trago, fechou os olhos e deu suspiro de alguém muito sedento. Saciou-se como um bebê nascendo sem os cuidados maternos. Já que bebeu bastante, pensou, não vai ser afligido tão cedo pelo pescador. Talvez por semanas, talvez por meses. Quem sabe anos.

III

A certeza é como as estações porque Gabriel se enganou e voltou a inquietar-se desenfreadamente. Havia um vulcão adormecido em seu corpo e somente agora se dava conta. O semblante voltou a ficar apreensivo com as puxadas que o pescador dava na linha. A inquietação tornava-se freqüente a cada dia pois o sadio jovem afastava-se dos amigos e se habituava às dores sem rosto.
Embora os familiares e os amigos não notassem mudança nenhuma, Gabriel sentia-se encurralado. Tinha medo de que não se controlasse já que o desejo pela caipirinha crescia. A circunstância será sem volta. Não queria agora apenas uma, nem duas, mas tomar vários copos da bebida.
E o pior é o que vem acontecendo ultimamente. Tem sonhado saindo embriagado do bar. Acha então que o pescador seja um bruxo, um feiticeiro que esteja transformando ele em um ébrio. Por ser religioso, rezou para que a desgraça para quem tem tão pouca idade não acontecesse.

IV

Não só rezou mas chorou bastante. O protesto solitário de nada adiantou pois de novo se encontrava na catacumba dos bêbados. Sentiu o cheiro fresco de cuspe assim que entrou. As narinas detectaram novidade. Como é gostoso estar em um lugar, embora proibido, onde a gente possa se sentir bem!
Como sempre, o dono atendeu o tímido rapaz com a disposição de uma mesma carta quando é aberta várias vezes. Sentou-se e, pela primeira vez, queria ir além do copo pois é além do copo que está o rosto do pescador.
Amedrontou-se mas não teve forças para fugir. Sabia que embriagar é a única maneira de desvendar o homem que vem das águas. E só pode ser das águas sujas. Então fez o pedido. Prontamente o dono do bar colocou a garrafa de caipirinha sobre a mesa mas sem abrir. Diferente das outras vezes, o atendente ficou no balcão.
A garrafa diante dos olhos de Gabriel. Aliás, diante da boca. Bastava tomar todos os 600 mililitros e talvez mais outra garrafa para conhecer o opressor dos dias e das noites. Tirou a tampa e encheu o copo. O dono ficava de longe olhando o ritual do rapaz que fechava os olhos e unia as mãos como se estivesse rezando. De vez em quando fazia menção de que ia levar o copo na boca. Uma estranha voz quebrou o silêncio e dizia que no inferno não havia chamas, mas que no céu havia fogo do inferno. Ao virar-se viu quem tinha dito a frase. Um homem gordo e bêbado tinha acabado de entrar no recinto e foi para o balcão conversar com o dono. Deu vontade de falar com o bêbado e perguntar para ele como conhecera o pescador.
— O pescador – disse-lhe o bêbado, ainda sóbrio, lá do balcão, como se conhecesse seus pensamentos – é bem mais generoso do que qualquer pai com o filho. Ele somente é terrível quando alguém rejeita a adoção dele, pois ninguém consegue fugir dos pensamentos vis que cercam qualquer um.
Se é assim não se pode derrotar o pescador. Agora é conviver com ele. Vendo o líquido da garrafa tão cristalino não dar para acreditar que no organismo ela fica suja. Se transforma em água de esgoto. O rapaz chora e o bêbado tenta acalmá-lo. Quando o peixe pega a isca meu filho – diz o bêbado – dificilmente consegue escapar. O certo é que não devia haver lei contra a saciação. Não devia haver pescador. O que é a pessoa a não ser da gula e do corpo? Não beber, é ir contra os olhos e contra o paladar; é ir contra si mesmo. Perder, não sabe se perdeu. Talvez seja bom ser derrotado porque se despe o fantasma.

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Comentários: flaviosf@tcu.gov.br

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