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Contos-->ARMANDO IMPERADOR DO MATO -- 25/08/2003 - 12:42 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ARMANDO
IMPERADOR DO MATO

João Ferreira
25 de agosto de 2003


Estou mais habituado a ver aplicado a Macunaíma o rótulo de Imperador do Mato. Não imagino na leitura de seu perfil, a aparição de um personagem nítido, fixo, igual a si mesmo.O Macunaíma de Mário de Andrade é um personagem que se metamorfoseia, se tece de cores e de mágicas, se desenvolve. Um personagem que jamais fica onde está. Móvel, dinâmico sempre acompanhado das artes de seu mano Maanape através das quais consegue vencer situações terríveis, e superar até a própria morte.
Temos de reconhecer a extrema competência e habilidade do autor de Macunaíma pela forma como concebeu e criou esse tipo exemplarmente brasileiro. Por artifícios da ficção, fê-lo nascer preto e feio. Mas logo-logo, ao entregá-lo aos cuidados de Solfará, em passeios pelo mato e pousando nas tiriricas, tornou-o Príncipe bonito que adorava brincar com a tia. Mário criou para ele imensas situações que mostram a mobilidade e inesperada ação gerada pela fantasia do realismo mágico, fazendo-o senhor do Mato virgem, no Brasil inteiro. Macunaíma estabeleceu uma relação especial com as icamiabas e fez o gigante Piaimã passar horas negras a apanhar muita pancada na macumba do Rio por causa do seqüestro de sua mágica muiraquitã.
Mas a verdade insofismável é que, ao lado do Oficial Imperador do Mato Virgem, que é Macunaíma, há outros imperadores do Mato igualmente famosos, que podemos apresentar mesmo sem a força da fantasia mágica. Há Imperadores de verdade, neste cerrado de cafundós planaltinos, cheios de graça, revestidos de uma personalidade que os torna atraentes para a narrativa e para a ficção.
Meu Imperador de hoje é o Armando. Um lusitano destemido que conquistou os matos de Goiás e com seu espírito culto e brincalhão. Um personagem criativo que desconstruiu sempre, por onde passou, a vida burguesa e o dia-a-dia irritante do habititim. Armando é um espírito muito postivo. Alegrão, sabe contar casos, tem apreço por uma piada viva e, sabe assumir os contornos ideais de um personagem que podemos colocar num conto de ficção.
Vive em sua fazenda, nos espaços amplos de Goiás, num ponto que toca as trilhas da expedição científica de Saint-Barthélemy, no século XIX, na rota do ouro e dos diamantes goianos. Tem um ar de bandeirante desbravador. Típico-típico é olhá-lo de alto a baixo. Medir sua figura no visual.
Calça botas de cano alto para visitar seus campos fazendais e põe aquele chapéu alto do Texas, em combinação com uma roupa jeans. Uma figuraça!
E então é só olhar aquele vulto, facilmente identificável com a figura mais lídima de um Imperador do Mato! Tem modos disso! De voz firme, comanda o império rural das atividades em que se envolve, desde o gado até à produção de abacaxi, numa ampla operação de quem gosta também de ser o dono do pedaço, desde a produção rural até à administração de uma pousada rural ou de um hotel-fazenda, no melhor estilo interiorano, em plenos campos de Goiás. É tão característico e insinuante que se subisse ao palco para representar Guilherme Tell o faria certamente com muita competência. Cavanhaque sólido, olhos grandes e expressivos e um corpo que se impõe pela força da iniciativa. Com um discurso persuasivo de mobilizar em causas coletivas, causas estudantis, agrárias, guerreiras, ou outras... Tem a magia de um alfabetizador rural...mas é muito mais que isso. É um guru, um implantador, um fundador, um homem com idéias.
Há uma diferença para não o considerarmos um simples fazendeiro. Ele não é apenas dono de um casarão, dono de currais e de plantações comuns, nem apenas comerciante de leite ou de carne. Armando é um líder, um formador de opinião. Um líder com mentalidade política e educacional. Na terra, ele comanda o processo da ascensão cultural dos trabalhadores e dos produtores rurais. É um homem culto que gosta de discutir assuntos profundos.
Se quisermos saber, sua curiosidade vai desde a adivinhação do tempo até à explicação profunda dos assuntos agrários, até à cultura filosófica.
Suas preocupações são as da população concretizadas no meio em que vive. Ele pensa e ama profundamente o Brasil. Preocupa-se com a cultura, com a produção e com a educação. Tem uma consciência básica de tudo. Se você lhe perguntar se vai chover por estes dias no Planalto, Armando tem uma opinião. Pragmática ou não, ele tem uma opinião, um cheiro ou um faro intuitvo, como sói acontecer com os caboclos simples. Se você quiser saber mesmo e insistir, a resposta vem:
-Eu acho que sim, que vai chover. Já viram como se comportam os sapos, as rãs, a seriema, a saracura, o sabiá... nestes tempos secos de transição para a chuva? Desde ontem, o sabiá está cantando...Olhem só como, em seu canto, ele descreve, no fio melódico de sua voz a narrativa profética de seus amores nos próximos tempos que se avizinham...
-Puxa, Armando... Bonito...
E continua:
-Olhem os bichos. Já se nota que começam a ficar mais agitados...Se é de manhã, é porque a chuva está se aproximando...Se é de tarde é porque a chuva ainda está longe... A chuva está próxima, porque os animais já andam inquietos na parte da manhã, lá nos meus sítios...
O discurso decorria entre amigos, num ambiente de churrasco, em pleno Planalto Central. Com sempre gosta de fazer, sentou a uma mesa de madeira goiana, seu copo de caipirinha está quase vazio, e está entretido desmontando uma carninha em torno de um osso de carneiro. Mostra-se galante nos modos para com as damas e soberano em suas cartadas de cultura.
Entre uma carne e outra, participa de uma cena que mostra seu talento imperial no mato! O narrador achou em seu discurso um comentário incrível que deu o tom básico deste conto.
Eis o detalhe. Lá no canto do salão, um aluno de uma Faculdade candanga, falava de uma pesquisa que teria de fazer neste final de semana. O professor tinha pedido um trabalho sobre Sócrates.
No intuito de animar o curumim, cada conviva da mesa puxou um pouco de seus cordões culturais para ajudar o calouro na sua pesquisa. Alguém o aconselhou a que não esquecesse os pré-socráticos que deixaram já meia tradição para Sócrates, e que não deixasse de fora, também, as idéias de seu discípulo Platão que imortalizou o mestre no “ Banquete”.
Aparentemente estavam ali algumas coordenadas para uma boa exposição temática. Timidamente alguém lembrou: sobretudo, você não pode esquecer o axioma de Sócrates que se tornou chave-mestra da sabedoria greco-latina e ocidental: “eu sei que nada sei”...
-Sim, há toda essa tradição filosófica da Grécia ... mas não vamos esquecer a base da pirâmide, que é próprio Sócrates, disse Armando!
Com esta pequena intervenção, o Imperador do Mato abria um diálogo profundo, fazendo um milagre incrível e raro. Aquelas mesmas bocas que estavam consumindo o churrasco eram mobilizadas agora para um ato de cultura.
-Essa frase é essencial, completou Armando. Ao dizer “Eu sei que nada sei”. Ou seja, ao declarar que nada sabe, Sócrates dá uma prova de choque genial na perspicácia humana e passa a chamar a atenção para o ato fundamental da aquisição da cultura e do saber.
Aí, o perspicaz Armando muda o eixo das atenções de todos para suas ponderações.
-Não sei bem a intenção de Sócrates ao pronunciar essa célebre frase. Tanto pode ter sido um ato de humildade por parte de Sócrates, ao ponderar que o muito que ainda não sabe reduz o que sabe para um saber insignificante ou nulo. Como pode também ser uma simples confissão de que ignorava o que lhe havia sido perguntado. Como se dissesse:- Eu não sei nada disso, meus amigos. Estou chutando. Ao pronunciar as úlimas palavras, o Armando volatiliza sua linguagem matuta para o alto e diz:
-E se o filho da puta do Sócrates tivesse razão? Já viram o recado que ele nos dá???E quem sabe se ele está falando a verdade? Quem sabe se ele nos quis dizer:
–“Tira da tua cabeça o que sobra”, diabo metido.
“Tira o entulho cultural que te sobra”.
“Limpa tua mente”.
“Alija o inútil”, meu cabra. Vai alijando devagarinho ou de uma vez, da tua mente, até chegares ao “zero socrático” ...
Quando chegou ao “zero socrático”, estacou. Olhou-me com seriedade, como se me pedisse profundidade no raciocínio. Na aura da sua exposição, os olhinhos perspicazes de Armando luziam. Lá mais adiante no canto do salão, o aluno da Faculdade seguia interessado o debate.
Quase assumindo o tom de Imperador do Mato brasileiro, desta vez faiscando cultura e capacidade crítica, em sua linguagem matuta, rural e crua rematava:
-O “zero socrático” resolve essa empáfia dos pseudo-intelectuais.
“Todo o mundo precisa de uma limpeza da empáfia”, com que se revestem os ignorantes, disse.
-Na verdade, o que eu sei e o que nós sabemos de verdade é merda, diz faiscante o Imperador!... É preciso alijar o entulho da mente e adequá-la aos novos horizontes da inteligência do futuro...
-E já agora, reparem, disse ainda o Imperador, abre-se um capítulo incrível, o mais importante na história do pensamento...
“Ligando Sócrates com Descartes, levanta-se o problema da dúvida”. E adianta: “Não há progresso se não houver quem levante a dúvida no discurso”. “A bandeira dogmática abafa o espírito”.
-“A dúvida é a mola do progresso. É o estado de graça do pensamento”.
Eu explicaria para vocês, com um exemplo quotidiano, arrematou o Imperador:
-“A dúvida é o ponto morto na caixa das marchas de um carro que pretende andar e se mover. Enquanto estiver em ponto morto estou parado. Estou em expectativa.Na dúvida, fico parado, olhando a direção de meu raciocínio. Posso ponderar razões de um lado e de outro. Depois de muita ponderação e de muita dúvida, posso engatar a marcha para primeira e acelerar na direção da estrada aberta a meus olhos”.
“Quando estiver em dúvida, pense mas não faça”, interveio o Gravia. “Reformule seu pensamento. Virá uma idéia iluminada, orientadora”, fechou Armando.
A mesa acompanhava. A caipirinha animara os motores da mente. Havia a boa disposição do banquete. Mas era incrível como de repente rolou um debate de idéias animado pelo Imperador Armando.Com todos estes argumentos, o nosso herói mostrou-se um retórico franco, competente e persuasivo. Estava virando quase um professor. Com a vantagem de conversar sem abandonar seu exemplo de participante no churrasco do Alfredo. De bem com a vida, Armando sabe beber um bom vinho português, maduro ou verde, ajudar a consumir uma boa carne de carneiro, um bom bacalhau dourado. Mas não se perde. À sua volta todo o mundo acompanha Armando que não esconde umas certas qualidades de advogado forense.
Naquele dia era o aniversário do dono da casa, micro-empresário rural. Na mesa estava o Gravia, empresário metalúrgico categorizado e grande amigo. Os outros amigos estavam muito interessados no discurso que se desenvolvia. As damas olhavam e ouviam o Armando que virou agora um Imperador do mato pela sua liderança e pela profundidade de suas idéias.
Na sobremesa, ao receber uma fatia do bolo de aniversário, pegou um cálice de vinho do Porto Sandeman, olhou os amigos Alfredo e Gravia e saudou, com um sorriso e boa disposição:
-Vamos começar pelo zero socrático, limpando as idéias. Em honra do Alfredo e de todos. Acredito que um vinho deste jaez vai ajudar a fundamentalizar nossas idéias. Até.


João Ferreira
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